Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3116/16.8T9VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONSUNÇÃO
SUBSIDIARIEDADE
Data do Acordão: 06/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 137.º, N.º 1, 291.º, N.º 1, AL. B), 294.º E 285.º, DO CP
Sumário: I – Sendo protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das comunicações, os bens jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente, ainda que estes reflexamente, se ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela conduta, os referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não só pelas disposições combinadas dos artigos 291.º, 294.º e 285.º, mas também, de forma genérica, pelos crimes dos arts. 137.º e 148.º, do CP.

II – Todavia, na descrita situação, verificada a morte da vítima, estamos em presença de um concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o de homicídio por negligência, sendo a norma do artigo 137.º, n.º 1, do CP, subsidiária da norma do artigo 291.º do mesmo diploma (conjugada com os artigos 294.º e 285.º).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

A. veio interpor recurso da sentença que o condenou pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de:
1. um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 6 Euros;
2. um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com referência ao artigo 103º, n.º 1, do Código da Estrada, e artigo 69º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 6 Euros, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, pelo período de 9 meses.
3. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 380 dias de multa, à taxa diária de 6 Euros, totalizando 2.280 Euros e, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, pelo período de 9 meses.

A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação de recurso, onde refere:

1) Com o devido respeito, entendemos que no caso concreto do concurso de crimes, não existe concurso real e efectivo de homicídio por negligência simples e de condução perigosa de veículo rodoviário, mas sim um concurso ideal ou aparente.

2) Os bens jurídicos protegidos pela norma do art. 291º n.º 1 do C. Penal, além da segurança das comunicações estão os bens jurídicos individuais da vida, (e da integridade física) postos em perigo pela conduta do agente.

3) No crime de homicídio por negligência – art. 137º n.º 1 do C. Penal – visam-se especificadamente os mesmos bens jurídicos.

4) E, por isso, as normas encontram-se numa relação de consumpção, sendo a norma prevalecente, s.m.o., no concurso a do art. 291º do C. Penal sob pena de violação do princípio ne bis in idem, só podendo o arguido ser condenado por um dos crimes. Prof. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, pág. 25.

5) Na acção (única) e na conduta do agente, não é plausível que simultaneamente e quanto ao elemento intelectual actue por negligência simples no homicídio negligente e que simultaneamente possa agir com dolo, quer na conduta, quer na situação de perigo, admitindo-se mais consentâneo uma actuação de negligência na acção e negligência no perigo integrando a conduta na norma no art. 291º n.º 4 do C. Penal.

6) Dos factos provados deu-se como provado que o arguido circulava desatento e a uma velocidade não concretamente apurada (apenas superior a 50 Km/h), desconhecendo-se o excesso.

7) A doutrina e jurisprudência entende a violação grosseira das regras da circulação com a conduta gravemente imprudente, de demissão do condutor dos cuidados mais elementares por temeridade e leviandade não sendo enquadrável, a nosso ver, neste conceito a simples condução não totalmente desatenta, não totalmente temerária e não totalmente leviana, como nos parece o caso presente.

8) Com todo o respeito por diversa opinião, parece-nos algo excessiva e desadequada a condenação do arguido em cúmulo jurídico na pena acessória de proibição de conduzir veículo a motor pelo período de 9 meses.

9) Determinam a medida da pena a culpa, as exigências da prevenção, devendo observar-se os princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade.

10) Entendemos por isso que é mais justa e adequado fixar a pena acessória de proibição de conduzir um período pelo mínimo na pena de 3 meses.

11) Quanto às condições pessoais e económicas do arguido dá-se por reproduzido os factos de 30 a 53, inclusive, e 55.

12) O arguido é condutor de veículos desde 14.05.1968, sem restrições, ou seja, há 51 anos, sempre observando as regras estradais, sendo o acidente em questão um acto isolado, o que lamenta e que não interfere nas cifras da sinistralidade.

13) Do Registo Individual do Condutor/arguido (RIC) nada consta significando que durante cinco décadas até hoje não praticou qualquer crime ou contraordenação grave ou muito grave no exercício da condução, cfr. documento junto aos autos.

14) O arguido não tem antecedentes criminais e os crimes em que foi condenado de natureza fiscal, têm diferente natureza daqueles por que foi condenado neste processo.

15) Tem boa integração social, é administrador da sua empresa que mantém também pela necessidade e vontade de assegurar os postos de trabalho.

16) Sempre se movimentou com a sua viatura da cidade de Viseu para a sua empresa a cerca de 20 Km (ida e volta), sendo aquele um instrumento de trabalho necessário nas visitas a clientes e fornecedores, representando a marca MAN em todo o distrito de Viseu.

17) A sua condição de administrador e gerente demanda essa necessidade de circulação, o que é notório.

18) Foram violadas, entre outras, o princípio ne bis in idem ou da dupla valoração, do art. 69º n.º 1 do C. Penal e do art. 71º do mesmo diploma.


*

A Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância ofereceu resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.

No mesmo sentido se pronunciou, neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, tendo, no entanto, sublinhado:

“Recorre o arguido por entender que não existe concurso real e efectivo entre o crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1, do Código Penal e o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291.°, n.º 1, alínea b), do Código Penal, por referência ao artigo 103.°, n.º 1 do Código da Estrada e artigo 69.°, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Analisando os factos dados por provados, que o arguido não impugna, verifica-se que se encontram provados todos os factos integradores de qualquer dos crimes.

Atendendo que no crime de homicídio negligente o bem protegido é unicamente a vida e no crime de condução perigosa de veículo rodoviário o bem jurídico fundamentalmente protegido é a segurança rodoviária, parece-me que, tal como decidiu o tribunal a quo, a conduta do arguido dada por provada integra a prática dos dois crimes referidos em concurso real e efectivo e não um só crime de condução perigosa de veículo rodoviário, pese embora hajam decisões que entendem, tal como o recorrente, que, nestas circunstâncias, apenas é cometido um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, face ao disposto no artigo 291.°, n.º 1, alínea b), conjugado com os artigos 294º, n.º 3 e 285.º, todos do Código Penal.”

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido respondeu, reafirmando o que alegou na motivação do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da sentença recorrida:

A. Factos provados

1. No dia 12 de Novembro de 2016, cerca das 17h45, o arguido tripulava o veículo ligeiro de passageiros, de marca Volkswagen, modelo Passat, de matrícula (...), propriedade de (...), pela Avenida (...), (...), comarca de Viseu, no sentido sul-norte, (...).

2. Neste local, a via configura uma recta de 400 metros, em pendente ascendente com 5,3% de inclinação, asfaltada, em bom estado de conservação, com duas faixas de rodagem em cada sentido, separadas entre si por um separador central em betão, e cada uma dessas faixas, possui duas vias de trânsito.

3. A faixa de rodagem ascendente, onde circulava o veículo tripulado pelo arguido, possui uma largura de 6,50 metros, incluindo as linhas contínuas divisórias da berma, sendo a largura do separador central de 0,90 metros, e duas vias de trânsito que compõem a faixa de rodagem (via da direita e via da esquerda) possuem a largura cada uma delas, de 2,80 metros.

4. Nos lados marginais à faixa de rodagem, tendo em atenção o sentido que levava o arguido, o lado direito da via é marginado com passeio para peões com 0,80 metros.

5. O limite de velocidade vigente nesta via é de 50 Km/h, por sinalização vertical (sinal C13), possui sinalização vertical de informação H7 - Passagem para peões, junto à passadeira, e a 100 metros da passadeira o sinal vertical A16 de passagem de peões com painel adicional a 100 metros.

11. Naquele dia e hora chovia e o piso estava molhado.

12. Na referida ocasião, o arguido tripulava o mencionado veículo, no sentido (...), entre a rotunda (...) para a rotunda da (...), Campo, e pouco antes de chegar à passagem para peões, aí existente, mudou de direcção para a faixa da esquerda e efectuou ultrapassem do veículo que seguia imediatamente à sua frente na faixa mais à direita.

13. Quando se aproximou da passadeira aí existente, própria para o atravessamento de peões, devidamente assinalada, tudo como acima referido, encontrava-se já a atravessar a mesma (...), nascida a (...), da direita para a esquerda – considerando o sentido de marcha do arguido-, já tendo percorrido mais de metade da faixa de rodagem.

14. No entanto, e apesar de tal circunstância, o arguido não imobilizou o veículo, parando a sua marcha, antes prosseguiu a mesma, indo embater, com a frente direita da mencionada viatura em (...), atingindo-a, projectando-a para a frente e ligeiramente para a esquerda, provocando a sua queda na via de trânsito esquerda junto ao separador central, a uma distância de, pelo menos, 22 metros do local do embate.

15. O veículo conduzido pelo arguido não deixou marcas no pavimento, nomeadamente, de travagem.

16. O veículo conduzido pelo arguido só colidiu com a vítima porque o arguido circulava desatento, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 Km/h - limite de velocidade naquela via -, em manobra de ultrapassagem do veículo que seguia à sua frente, junta a passadeira para peões, não imobilizando o veículo perante a passadeira, onde circulava a vítima.

17. Como consequência directa e necessária do embate sofreu (...) as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 95 a 98, que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais, designadamente: Cabeça: Ossos da cabeça (base) - fractura – traço do occipital em posição paramediana esquerda, temporal esquerda, grande asa do esfenóide à esquerda, fractura da parede posterior orbitária esquerda; Meninges - hemorragia subdural; Encéfalo - hemorragia dos dois lobos: frontal e temporal esquerda e frontal e temporal direita; Tórax: Esterno, Clavícula, Cartilagens e Costelas Direitas – fractura pelo 2.º espaço; fractura pelo arco anterior da 2.º e 5,º costelas com infiltração sanguínea, fractura pelo arco médio da 2.ª e 3.ª costela com infiltração sanguínea; fractura pelo arco posterior da 3.ª à 6.ª costela com infiltração sanguínea; Clavícula, Cartilagens e Costelas Esquerdas – fractura pelo arco anterior da 3.º à 6,º costelas com infiltração sanguínea, fractura pelo arco médio da 2.ª à 10.ª costelas com infiltração sanguínea; fractura pelo arco posterior da 6.ª à 8.ª com rotura da pleura, fractura da 10.ª costela com infiltração sanguínea; Abdómen: Epíploon – ruptura a vários níveis; Fígado – laceração hepática; Pâncreas – focos de contusão; Coluna Vertebral e Medula: fractura de C5-C6 e D10-D11, sem secção de medula mas com amolecimento; Membros: membro superior esquerdo – fractura do terço médio do antebraço; membro inferior direito – fractura exposta do 1/3 superior da perna direita a 40 cm do pé.

18. Tais lesões traumáticas crâneo-meningo-encefálicas, vertebro-medulares, toraco-abdominais e do membro inferior, constituíram causa necessária e adequada da morte de (...).

19. A vítima (...) após o acidente ainda foi assistida pela VMER e transportada para o Centro Hospitalar Tondela Viseu, EPE, tendo chegado a esta unidade hospitalar já cadáver.

20. Assim, a vítima (...) faleceu em consequência directa e necessária do acidente supra descrito, no dia 12 de Novembro de 2016, pelas 18h 40 minutos.

21. O arguido ao circular a velocidade superior à permitida para o local e violar assim a sinalização estradal aí existente, sem tomar as cautelas a que as circunstâncias o obrigavam - designadamente não respeitando a paragem junto a passadeira destinada à travessia de peões, efectuando junta a esta ultrapassagem, de modo a permitir a passagem segura da ofendida que se encontrava a atravessar a mesma, o arguido tornou inevitável o acidente, o qual ocorreu devido à sua falta de cuidado na condução.

22. Podia e devia ter tomado outros cuidados na sua condução, designadamente parando junto da passadeira destinada à travessia de peões, e não efectuando ultrapassagem antes desta de modo a permitir a passagem segura da ofendida.

23. O arguido tinha consciência que conduzia com desrespeito pelas regras de circulação rodoviária, em velocidade superior ao permitido, não adequando a velocidade às condições da via, molhada devido à chuva, efectuando manobra de ultrapassagem imediatamente antes da passadeira, não parando junto a passadeira de peões, designadamente quando estes já se encontram nela a atravessar, e que a sua conduta era susceptível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efectivamente colocou.

24. Actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as descritas condutas são proibidas e puníveis por lei.

25. Agiu o arguido com manifesta falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha omitindo cautelas exigíveis e indispensáveis a quem conduz veículos automóveis, tanto mais que desenvolvia uma actividade perigosa, assim vindo a causar um resultado que poderia e deveria prever.

26. Ao não actuar de acordo com as regras de cuidado que conhecia e que era capaz de cumprir o arguido veio a embater na vítima, dessa forma provocando-lhe a morte.

27. O arguido tinha consciência que conduzia com desrespeito pelas regras de circulação rodoviária (paragem antes de passadeira) e que a sua conduta era susceptível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efectivamente colocou.

28. Actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as descritas condutas são proibidas e puníveis por lei.

29. O arguido é titular da carta de condução (...), emitida em (...), pelo IMT de Viseu, categoria B, desde 14/05/1968, sem restrições.

Quanto às condições pessoais e económicas do arguido provou-se que:

(...).

54. O arguido já foi condenado:

54.1. Por acórdão proferido em 14.4.2009, no âmbito do processo comum colectivo n.º 76/99.1IDVIS, transitado em julgado em 10.9.2010, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, um crime de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, por factos praticados em 1999, nas penas de 18 meses de prisão, suspensa por 3 anos, e de 120 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, já declaradas extintas pelo cumprimento;

54.2. Por sentença proferida em 6.11.2018, no âmbito do processo comum singular n.º 2293/17.5T9VIS, transitada em julgado em 7.12.2018, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 3 anos, condicionada ao pagamento neste prazo das cotizações retidas dos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais da sociedade arguida, entre Julho de 2012 a Junho de 2016, que não foram entregues à Segurança Social, no valor de 72.684.53€, e consequentes acréscimos legais, em conformidade com o plasmado nos artigos 14.º/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 50º/1 do Código Penal.

55. Nada consta no Registo Individual do Condutor do arguido.


*

B - Factos não provados

Da prova produzida em audiência não resultaram provados quaisquer outros factos, maxime todos os que estejam em contradição com os supra enunciados e, designadamente, que:

1. O arguido tem licença de condução de veículos desde 1967.


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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, as questões suscitadas são:

- o concurso de crimes;  e,

- a redução da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.


*

A- Do concurso de crimes

Sustenta o recorrente que, relativamente aos crimes por que foi condenado, não existe concurso real e efectivo entre o crime de homicídio por negligência simples [art. 137º, n.º 1] e o crime de condução perigosa de veículo rodoviário [art. 291º, n.º 1, al. b)], mas sim um concurso ideal ou aparente, sendo, no caso concreto, a norma prevalecente a do artigo 291º do CP que tipifica o crime de condução perigosa de veículo.

Foi o arguido condenado pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1, do Código Penal e, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, n.º 1, al. b), do mesmo Código, com referência ao artigo 103º, n.º 1, do Código da Estrada.

Concluiu a sentença recorrida pelo concurso efectivo entre os referidos crimes atendendo aos bens jurídicos que foram violados e, por considerar que não existe total coincidência do fim tutelado.

Estabelece o artigo 137º, n.º 1 do Código Penal que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Como facilmente se compreende, o bem jurídico protegido por esta norma é a vida humana, a vida de outra pessoa.

E, como resulta deste preceito, o tipo de crime pressupõe que:

- o agente assuma um comportamento comissivo ou omissivo;

- esse comportamento viole o dever (objectivo e subjectivo) de cuidado;

- a verificação do resultado morte de uma pessoa;

- a imputação desse resultado à conduta do agente.

Ou seja, recaindo sobre o agente «um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado» (art. 10º do CP), para que se possa imputar a alguém uma conduta negligente, o artigo 15º do CP exige que ela tenha violado quer o dever objectivo, quer o dever subjectivo de cuidado.

Ainda neste artigo 15º se considera a “culpa consciente” – na alínea a) – quando o agente prevê a possibilidade de realização do facto ilícito e tem dela consciência; ou seja «a representa». E, na alínea b) trata-se da “culpa inconsciente”, quando o agente não previu, não teve consciência, «não representa» a possibilidade de realização do facto ilícito.

Deste modo, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo indispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente. O mesmo é dizer que a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta do agente e o evento ocorrido.

Determinada acção ou omissão será causa de certo evento se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava à face da experiência comum como adequada à produção do referido evento, havendo fortes probabilidades de o originar ([1]).

Se bem que a adequação só acontecerá num prognóstico objectivo “a posteriori” feito pelo Juiz.

A existência de nexo causal entre a acção ou omissão do agente e o resultado produzido, se é condição necessária da imputação objectiva, não o é suficientemente; é ainda necessário que o evento seja objectivamente previsível como consequência da violação do dever objectivo de cuidado, ou seja, da diligência objectiva, diligência que toma, em relação a cada espécie de crime, o sentido do cuidado exigido para evitar o mal desse crime ([2]).

O juízo de censura, nos crimes negligentes como nos crimes dolosos, representa a relação do agente com o facto injusto, enquanto lho imputa como seu e por isso que no dolo o facto é imputado ao agente enquanto previsto e querido (art. 14º), e na negligência lhe é imputado enquanto, embora não directamente querido, era previsível e em razão dessa previsibilidade deveria o agente actuar com o cuidado a que está obrigado e é capaz para evitar a produção do facto injusto (art. 15º) ([3]).

O crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º do C.P. é um crime de perigo concreto na medida em que da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efectivo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, mas o que tem de ser concreto é o perigo de tal ocorrer, não sendo necessário que se verifique efectivamente a lesão. A este propósito se pronunciaram, nomeadamente, Figueiredo Dias, na Comissão Revisora do CP/82 – Acta n.º 32 da sessão ocorrida em 17-5-90; Germano Marques da Silva, in Crimes Rodoviários – Pena Acessória e Medidas de Segurança, Univ. Católica, Lisboa, 1996, pág. 14 e segs; e Maia Gonçalves, in Código Penal Português, anotado e comentado.

Porém, não é suficiente que se violem as regras de condução. “É necessário que se trate de uma violação grosseira dessas mesmas regras, ou seja, uma violação de elementares deveres de condução, susceptível de traduzir o carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego, e para os bens jurídicos pessoais envolvidos. Em suma, exige-se um grau especial de violação de deveres (não podem ser punidas violações de pequena dimensão)” – cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág.1066.

A Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, em aditamento introduzido à alínea b) do n.º 1 do citado artigo 291º, passou a elencar quais as manobras que podem constituir violação grosseira das regras de condução. E, são elas, as relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha e à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita.

O Prof. Germano Marques da Silva referindo-se ao conceito de violação grosseira considera que “não se trata simplesmente de violação das regras de trânsito, nem da violação que ocasione um perigo concreto …, mas de temeridade, de ousadia perante o perigo quase certo, previsto e previsível atentas as circunstâncias”, in obra citada, pág. 51.

Com a violação grosseira das regras de condução que se mostram exemplificadas na alínea b) do n.º 1 do art. 291º do CP o agente terá de colocar em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado. Este perigo, concreto, traduz-se na forte probabilidade de ocorrer o dano ou o resultado desvalioso que a norma pretende evitar que aconteça.

Sobre os cuidados a observar pelos condutores, estatui o n.º 1 do artigo 103º do Código da Estrada:

«Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.»

Ora, o tribunal a quo, em função da factualidade dada como provada, considerou que o arguido tinha consciência que conduzia com desrespeito pelas regras de circulação rodoviária, em velocidade superior ao permitido, não adequando a velocidade às condições da via, molhada devido à chuva, efectuando manobra de ultrapassagem imediatamente antes da passadeira, não parando junto a passadeira de peões, designadamente quando estes já se encontram nela a atravessar, e que a sua conduta era susceptível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efectivamente colocou, tendo actuado de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as descritas condutas são proibidas e puníveis por lei.

Tendo concluído que se encontravam preenchidos, de igual modo, os elementos típicos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, de que o arguido vem acusado.

Assim, a matéria assente na decisão recorrida integra efectivamente a violação grosseira das regras de circulação rodoviária.

Mas, para além da violação grosseira das regras estradais, com a sua conduta provocou o arguido a morte da id. (…).

Daí que, seguindo de perto o entendimento do Prof. Germano Marques da Silva, afigura-se-nos que in casu estamos em presença de um concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o de homicídio negligente. E, tratando-se de homicídio por negligência simples, a norma do artigo 137º, n.º 1 é subsidiária da norma do artigo 291º (conjugado com os artigos 294º e 285º); entendendo-se que o artigo 291º, n.º 1, al. b) é mais específico na sua previsão do que a norma do artigo 137º, n.º 1.

Como sabemos o concurso aparente assenta no pressuposto de que várias normas concorrem só em aparência, porquanto uma delas há-de excluir as outras – cfr. Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, vol. II, pág. 1033.

E, tal exclusão ocorre porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.([4])

Segundo o Ac. do STJ de 22-11-2007, proferido no proc. 05P3638, disponível em www.dgsi.pt: “Sendo protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das comunicações, os bens jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente, ainda que estes reflexamente, se ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela conduta, os referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não só pelas disposições combinadas dos artigos 291º, 294º e 285º, mas também, de forma genérica, pelos crimes dos arts. 137º e 148º, do CP.

Quando tal acontece, as disposições penais encontram-se numa relação de consunção - uma, a de protecção mais ampla [lex consumens] consome a protecção que a outra [lex consunta] já visa e que deixa de ser aplicada sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem.

Deste modo, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto e punido no artigo 291º, agravado pelo resultado nos termos dos artigos 294º e 285º, todos do Código Penal.

O artigo 294º aplica-se a todos os crimes previstos nos artigos 287º a 291º e, ao remeter para o artigo 285º significa que a aplicação da agravação pelo resultado (prevista no art. 285º) a todos os casos em que a conduta do agente cause a morte ou a lesão grave da integridade de outra pessoa, tem por consequência que a punição deixa de se fazer com base nas regras do concurso de crimes para passar a ser feita nos termos desta disposição legal; ou seja, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo. ([5])

Assim,

Ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário corresponde uma moldura penal abstracta de prisão até 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias (art. 47º, n.º 1, do CP) – a que acresce a pena acessória nos termos do art. 69º, n.º 1, al. a) do CP.

O tribunal a quo no momento da escolha da pena e, tendo em conta o disposto no artigo 70º do CP, considerou que a pena de multa se revela adequada no presente caso, realizando de forma suficiente as finalidades da punição.

Pelo que, com a agravação prevista no artigo 285 do CP, o crime passa a ser punido com multa de 13 a 480 dias.

A sentença recorrida condenou o arguido na pena única de 380 dias de multa, à taxa diária de 6 Euros, totalizando 2.280 Euros.

Acontece que, tendo o recurso sido interposto pelo arguido, este não pode ver agravada a pena que lhe foi aplicada nos autos, por a tanto se opor o princípio da proibição da reformatio in pejus definido no n.º 1 do artigo 409º, do CPP, segundo o qual: Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.


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B- Da pena acessória

Por considerar que a pena acessória que lhe foi imposta, de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 9 meses, é excessiva e desajustada à situação do caso presente, pugna o recorrente pela sua redução para o mínimo legal de 3 meses.

Para tanto invoca:

- as suas condições pessoais e económicas dadas como provadas nos factos 30 a 53 e 55;

- a ausência de infracções rodoviárias;

- a boa integração social;

- é administrador da sua empresa, a qual se encontra sediada a cerca de 10/15 Km do local da sua sede familiar, em Viseu.

Aplica-se à pena acessória os mesmos critérios legalmente exigíveis para a fixação da pena principal. Deste modo, a pena acessória de proibição de conduzir traduz-se numa verdadeira pena, dotada de moldura penal própria, estabelecida entre limites mínimo e máximo, dentro dos quais tem o julgador que determinar a que se adequa ao caso concreto, em obediência ao disposto no citado artigo 71º do Código Penal.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias (Consequências Jurídicas do Crime, pág. 165) o pressuposto material de aplicação da pena acessória referida no artigo 69º do CP prende-se com o exercício da condução quando se tenha revelado, no caso concreto, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do facto. Por isso à proibição de conduzir deve assegurar-se também um efeito geral de intimidação que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro dos limites da culpa. Por fim, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano.

Deverá ter-se presente que a condução perigosa de veículo rodoviário, no caso presente com um resultado tão gravoso (a morte da id. (…)), porque viola gravemente as regras de trânsito rodoviário, é sempre, e só por si, especialmente censurável.

De realçar que, quando foi dada nova redacção ao artigo 69º do CP pela Lei 77/2001, de 13 de Julho, designadamente aumentando os limites da duração da pena acessória (até então fixados entre 1 mês e 1 ano) pretendeu-se reduzir os índices de sinistralidade, pelo aumento da «segurança rodoviária, adoptando medidas ajustadas à realidade social, à situação das infra-estruturas e à evolução do comportamento dos intervenientes no sistema de trânsito, em especial os condutores» (Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 69/VIII, que esteve na origem desta alteração legislativa, in Diário da Assembleia da República, II Série A, de 21-4-2001, pág. 1708).

Conforme o estabelecido no artigo 69º, a proibição de conduzir veículos com motor tem a duração mínima de 3 meses e máxima de 3 anos.

“A ampla margem de discricionalidade facultada ao juiz na graduação da sanção de inibição de conduzir, permite-lhe perfeitamente fixá-la, em concreto, segundo as circunstâncias do caso, desde logo as conexionadas com o grau de culpa do agente, nada na Lei Fundamental exigindo que as penas acessórias tenham de ter, no que respeita à sua duração, correspondência com as penas principais” ([6]).

Como sublinha o Exmº PGA no seu Parecer, as exigências de prevenção geral são muito elevadas, face às mortes que ocorrem diariamente e, em especial, dentro das passadeiras reservadas aos peões.

Deste modo, nenhum reparo nos merece a duração da pena acessória, fixada em 9 meses.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:

a) condenar o arguido A. pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º, n.º 1, al. b) – (com referência ao artigo 103º, n.º 1, do CE), agravado pelo resultado nos termos dos artigos 294º e 285º, todos do Código Penal, na pena de 380 dias de multa, à taxa diária de 6 Euros, totalizando 2.280 Euros.

- Mantém-se, no mais, ou seja, quanto à pena acessória, o decidido na sentença recorrida.

Sem custas (artigo 513º, n.º 1 do CPP, na redacção dada pelo DL n.º 34/2008, de 26.02).


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Coimbra, 30 de Junho de 2020

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Galvão Teles, Manual do Direito das Obrigações.
[2] - Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, 1992, pág. 304.
[3] - Germano Marques da Silva, Problemas Fundamentais de Direito Penal (Homenagem a Roxin), pág. 151.

[4] A este propósito cita-se o Ac. do STJ, de 3-4-2003, no proc. 03P853, in www.dgsi.pt:   “No caso sub judice, tendo em conta que uma das normas – condução perigosa do artigo 291º, n.º 1 – punindo a criação do perigo, nomeadamente para a vida e, também a sua própria privação, por via do disposto nos artigos 285º e 294º do Código Penal devidamente conjugados, e que a outra – art. 137º, pune essa violação (privação da vida) como resultado consumado – poderá defender-se a existência, pelo menos, de um certo grau de consunção entre ambas as normas, já que entre os valores protegidos por cada uma delas, se verifica, por essa via, uma relação de mais e menos: o do artigo 137º acaba por estar contido no âmbito mais lato da previsão do art. 291º, n.º 1 e assim «uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa …

[5] - Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., págs. 1103/1104.
[6] - Ac. TC n.º 667/94 de 14 Dez., BMJ 446º, suplemento, pág. 102.