Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
371793/08.5YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: OBRIGAÇÃO
CUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342 CC, 490, 668, 684, 685 CPC
Sumário: 1 – Numa acção que tem em vista o cumprimento de uma obrigação, incumbe ao réu devedor o ónus de alegação e prova do cumprimento (total ou parcial), como matéria de excepção (não tendo sentido falar-se de impugnação, pelo réu, do incumprimento alegado pelo autor como impugnação antecipada).

2 – As nulidades da sentença não penal (com excepção da de falta de assinatura) não são de conhecimento oficioso.

Decisão Texto Integral:

              Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              A (…), SA, requereu, em 10/11/2008, injunção contra J (…) & Filhos, Lda, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 6.030,48€, acrescida de 2.789,39€ de juros de mora, à taxa de 9,25% desde 31/10/2003 a 06/11/2008.

              Alegou para o efeito que:
         “§1 A pedido da ré, a autora fez-lhe um fornecimento de telhas em 29/03/1996, a que se refere a factura 960677, no montante de 972.545$.
         §2 A factura deveria ter sido paga em 30/03/1996.
         §3 A ré fez algumas entregas por conta, mas ficou a dever 6.030,48€, que sempre reconheceu mas nunca liquidou.”

              A ré deduziu oposição, excepcionando, já que diz, na parte que importa, que nada deve à autora seja a que título for, porquanto os últimos materiais fornecidos pela autora à ré foram liquidados em acerto de contas com o encarregado geral da ré através da entrega de barro branco nas instalações da autora. Termina dizendo que deve ser absolvida do pedido.

              Depois do julgamento foi proferida sentença julgando a acção totalmente procedente e, em conformidade, condenando a ré a pagar à autora 6.030,47€, acrescida dos juros de mora no valor de 2.789,39€, contados à taxa prevista para as transacções comerciais e reportados ao período de 31/10/2003 a 6/11/2008.

              A ré recorre desta sentença –   para que se a revogue, substituindo-a por outra que condene a ré no pagamento à autora da quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença, sob pena de se violar [ainda] o disposto no art. 712º do CPC - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
         A) A autora alegou na primeira parte do §3º da exposição dos factos que a ré “fez algumas entregas por conta” (sic) do montante das facturas em dívida do valor de 6.030,48€ (972.545$00 + 236.457$00 = 1.209.002$/6.030,48€).
         B) Tal facto foi aceite pela ré, apesar desta não ter alegado provar como lhe competia que os pagamentos por conta por si efectuados foram de modo a liquidar a totalidade dos valores das facturas peticionadas.
         C) Assim, porque a alegação feita pela autora na primeira parte do § 3º do seu requerimento inicial […] não foi impugnada, não poderia o Sr. juiz a quo como o fez dar resposta de não provada à mesma, sob pena de se violar o disposto nos arts 490º e 659º ambos do Código de Processo Civil.
         D) De igual modo, porque a autora não provou como devia quais os valores das entregas por conta feitas pela ré, nem contabilizou a tal título qualquer valor, deveria o Sr. juiz a quo ter condenado esta no pagamento da quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença – art. 661º/2 do CPC.

              Não foram apresentadas contra-alegações em condições legais.

                                                                 *

              Questões que cumpre solucionar: saber se devia ter sido dado como provado que a ré fez algumas entregas por conta; se se acrescentar este facto, põe--se então a questão de saber quais as consequências da indeterminação deste facto (: “algumas entregas”); por fim, ver-se-á se é de extrair alguma consequência de, no recurso e na sentença, se falar em “duas” ou em “facturas” (no total do pedido), respectivamente, enquanto que no requerimento inicial se falava só numa (com um valor substancialmente inferior).

                                                                 *

              Na sentença, sob a epígrafe “factualidade provada” foi dito o seguinte, na parte que importa:
         “Provada apenas a matéria de facto invocada nos §§ 1º e 2º do requerimento inicial.”
         “A restante matéria, constante da oposição, por se reportar ao pagamento cuja falta a autora invoca constitui matéria que incumbia provar pela parte contrária, isto é, à autora incumbia provar a existência do contrato e à ré cabia provar um motivo justificativo para não proceder ao seu pagamento, o que não sucedeu, visto que a esse respeito não foi feita qualquer prova.
         Não se provou ainda a 1ª parte do § 3º do requerimento inicial.
         […]
         Por inexistência de prova, considera-se como não provada a matéria constante na oposição da ré.
         A demais matéria não elencada configura conceitos de direito e/ou alegações conclusiva.”

              Os factos que a sentença considera provados são pois os seguintes:
         1. A pedido da ré, a autora fez-lhe um fornecimento de telhas em 29/03/1996, a que se refere a factura 960677, no montante de 972.545$.
         2. A factura deveria ter sido paga em 30/03/1996.

                                                                 *

              A primeira questão que as conclusões do recurso da ré levantam é a de saber se devia ter sido dado como provado que “a ré fez algumas entregas por conta” (facto alegado pela autora naquilo que se pode dizer a 1ª das quatro partes do §3 do requerimento inicial, por o mesmo ser composto de 4 frases e porque a sentença fala, na parte da fixação dos factos, na 1ª parte do §3).

              A ré considera que tal facto está provado por ter sido aceite por ela, o que, a), resultaria da não impugnação [no corpo das alegações diz que não contestou] do mesmo e da norma do art. 490º, b), devia ter sido considerado na sentença por força do art. 659º/3 e, c), deveria ser agora, neste acórdão, tido em conta por força do art. 712º, todos do CPC.

              É a matéria das conclusões A) a C) do recurso.

              No corpo das alegações, a ré ainda acrescenta “ter alegado que tais entregas por conta foram de modo a liquidar as referidas facturas peticio-nadas” (a questão decorrente do plural das “facturas”, quando no facto provado apenas se refere uma factura, será tratada mais à frente…).

              No relatório deste acórdão transcrevem-se, na íntegra, os articula-dos das partes (o da ré na parte que importa) para que se possa confrontar com o que agora é dito pela ré.

              Ora, dessa confrontação logo resulta que, primeiro, não é verdade que a ré tenha “alegado que tais entregas por conta foram de modo a liquidar as referidas facturas peticionadas” e por outro lado não é correcto dizer-se que a ré aceitou o facto alegado pela autora ou que não o impugnou ou que não o contestou (e aliás são diversos estes três tipos - aceitar, não impugnar e não contestar – de atitudes…).

              O art. 490º/2 do CPC diz que “Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto […]”.

              Ora, se a ré diz “que nada deve à autora seja a que título for, porquanto os últimos materiais fornecidos pela autora à ré foram liquidados em acerto de contas com o encarregado geral da ré através da entrega de barro branco” tal alegação está em oposição com a alegação da autora de que “a ré fez algumas entregas por conta”, expressão que tem o sentido, relativamente a dívidas pecuniárias (aquelas que, como no caso dos autos, tendo por objecto uma prestação em dinheiro, visam proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies possuam como tais – Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 9ª ed, 1998, pág. 874), de fazer pagamentos parciais, com entrega de dinheiro (art. 550º do CC), por conta daquilo que se deve, e não a de fazer entregas de coisas diversas para acerto de contas.

                                                                 *
              Para além disso, não se pode falar da não impugnação de factos que são matéria de excepções que têm de ser alegados pela parte.
              Quando o autor exige o cumprimento de uma obrigação, tem o ónus de alegação do não cumprimento (nem que seja implicitamente, apenas para evitar a inconcludência do pedido), mas daí não decorre o ónus da prova do não cumprimento (que, por isso, não deve ser quesitado). É antes ao devedor/réu que cabe o ónus de alegar e provar o cumprimento da obrigação (veja-se, neste sentido, Joaquim de Sousa Ribeiro, no seu estudo sobre as Prescrições Presuntivas, na RDE 5, 1979, págs. 402/403, nota 31: “Muito embora o incumprimento, em acções deste tipo, não tenha que ser provado pelo autor - nesse sentido, com largo desenvolvimento, Alberto dos Reis, CPC anotado, III, 3ª ed., Coimbra, 1948, pág. 285 s. - deverá ser por ele alegado, para evitar a inconcludência do pedido - Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, IV, Coimbra, 1969, pág. 123, nº.1”).
              Explica o Prof. Joaquim de Sousa Ribeiro (págs. 403/404):
         “No que ao incumprimento diz respeito, há que advertir, em primeiro lugar, que ele não constitui fundamento essencial do pedido, mas antes a resposta antecipada à afirmação de cumprimento que o réu venha eventualmente a opor. Prevendo que a parte contrária invoque esse facto extintivo, o autor adianta-se a negar a sua verificação (Castro Mendes, DPC, III, Lisboa, 1980 [AAFDL], pág. 99). O que não invalida, todavia, que, nessa qualidade, ele conserve a natureza de fundamento de uma excepção, a deduzir pelo réu, a tal não obstando a circunstância de já constar, sob a forma negativa, da petição inicial [remete para Manuel de Andrade, Anselmo de Castro e Castro Mendes].
         Por aqui se vê que não tem qualquer cabimento falar-se, a este respeito, em ónus de impugnação especificada […]. Ao réu não cabe impugnar a alegação de incumprimento, pela simples razão de que tal matéria se encontra incluída no ónus da prova a seu cargo, e, como é evidente, o ónus da impugnação não faz sentido em relação a factos cuja afirmação cabe à parte produzir […]. Mais do que negar o incumprimento, o que lhe compete é afirmar e provar que cumpriu, o que o autor, esse sim, poderá, por sua fez, impugnar”.
              E tudo isto é igualmente válido para o caso do cumprimento parcial. Tanto vale dizer que é ao réu que cumpre alegar e provar que pagou toda a dívida, como que é a ele que incumbe alegar e provar que a pagou em parte. Alguma diferença poderá haver, mas a outro nível, já não o da impugnação mas o da aceitação. Se o autor (através do seu mandatário…) alega que o réu já lhe pagou parte da dívida (ao invocar o incumprimento parcial), o réu pode aceitar tal afirmação, e então o autor fica vinculado por ela (art. 38º, com reflexos no art. 567º/2, ambos do CPC). O pagamento parcial, nesse caso, terá de ser considerado adquirido para o processo (por confissão, quando tal facto se puder considerar desfavorável à parte que a fez). Mas neste caso, ter-se-á de ter em conta o princípio da indivisibilidade da confissão (art. 360º do Código Civil). Ora, no caso, o autor, não disse apenas que “a ré fez algumas entregas por conta”. Acrescentou: “mas ficou a dever 6.030,48€, que sempre reconheceu mas nunca liquidou.” Pelo que, a ré, querendo aceitar a confissão, teria que aceitar a declaração confessória no seu todo.
              Ora, a sentença, na parte em que fixou os factos e fundamentou a respectiva decisão, actuou com base nestas ideias e disse-o expressamente, repetindo-se a citação da mesma feita acima:
         “A restante matéria, constante da oposição, por se reportar ao pagamento cuja falta a autora invoca constitui matéria que incumbia provar pela parte contrária, isto é, à autora incumbia provar a existência do contrato e à ré cabia provar um motivo justificativo para não proceder ao seu pagamento, o que não sucedeu, visto que a esse respeito não foi feita qualquer prova.”

              Assim, ao contrário do dito ou sugerido pela ré o facto em causa não foi admitido por acordo ou aceite. E não tem sentido falar na não impugnação ou na não contestação dele, porque era à ré que tinha o ónus de o alegar e provar.
                                                                  *

              A conclusão D) estava dependente da procedência das anteriores. Só no caso de se ter acrescentado o facto de ter havido entregas por conta, é que a questão da indeterminação das mesmas teria de ser considerada.

              De qualquer modo já ficou demonstrado que, ao contrário do pressuposto pela ré, não era à autora que incumbia provar quais as entregas feitas pela ré… O cumprimento, total ou parcial, é matéria de excepção, a alegar e provar pelos devedores.

                                                                 *

              Na sentença dá-se como provado que a autora fez, a pedido da ré, um fornecimento em 29/03/1996, a que se refere a factura 960677, no montante de 972.545$.

              Na parte da decisão da sentença condena-se a ré a pagar à autora, como capital em dívida, 6.030,47€.

              Como 972.545$ correspondem a 4.851,03€, é notório que a dívida dada como provada não é suficiente para fundamentar a condenação numa dívida de valor superior.
         Isto resultaria, como é sugerido pelas alegações da ré, de a autora só ter alegado no requerimento inicial uma factura quando afinal havia duas (que juntou em audiência, antes do início do julgamento, sem oposição da ré, como decorre da respectiva acta) que, somadas, já dariam o valor pedido de 6.030,74€.
         Ou melhor, como resulta facilmente indiciado pela apreciação conjunta dos articulados, da sentença e das alegações de recurso da ré, do que se trata é que a autora estabeleceu com a ré antes de 29/03/1996 uma relação de fornecimento de bens ao longo de um período de tempo, que a ré ia pagando (com entregas por conta), tendo-se chegado ao fim dessa relação em 31/10/2003 com uma dívida no valor do pedido.
         Estes dois parágrafos que antecedem são só ditos laterais para se perceber melhor as coisas, sem influência na decisão do recurso. Por isso não se fundamentam melhor. Posto isto…

              A insuficiência, a que se aludiu antes deste parágrafos, que consequências é que pode ter?

              Ela pode ser vista como um erro de julgamento, ou, mais dificil-mente, como uma nulidade da sentença [neste caso com referência à al. c) do nº. 1 do art. 668º do CPC – considerando-se que os fundamentos de facto da decisão têm de estar numa sequência lógica com a decisão e que um fornecimento de 4.851,03€ não justifica uma condenação de 6.030,74€; haveria como que uma ineptidão da petição inicial, nem que fosse como ineptidão parcial decorrente de uma omissão parcial da causa de pedir, que levaria, por arrastamento, à “ineptidão da sentença”, por falta de sequência lógica dos fundamentos com a decisão…].

              Ora, mesmo que se considerasse que se trata de uma nulidade da sentença, a questão não poderia ser conhecida oficiosamente. As nulidades da sentença têm que ser um dos fundamentos do recurso para, como objecto do mesmo, serem conhecidas (arts. 668º/4, 684º/3 e 685º-A/1, todos do CPC). [neste sentido, isto é, de que as nulidades da sentença não penal não são de conhecimento oficioso, veja-se, apenas por, por exemplo, o ac. do TRL de 15/12/1994, CJ94.5.130, 2º coluna, o acórdão do STA de 10/09/2008, 0358/08,  o ac. do TRP de 11/09/2008 (0833796) e o ac. do STA de 10/09/2010, 1228/09 -3 (este nos apêndices do DR de 26/05/2011)]. A situação é diferente no processo penal por força do inciso ‘ou conhecidas em recurso” introduzido em 1998 no nº. 2 do art. 379º do CPP.

                                                                 *

              Sumário:

              I – Numa acção que tem em vista o cumprimento de uma obrigação, incumbe ao réu devedor o ónus de alegação e prova do cumprimento (total ou parcial), como matéria de excepção (não tendo sentido falar-se de impugnação, pelo réu, do incumprimento alegado pelo autor como impugnação antecipada).

              II – As nulidades da sentença não penal (com excepção da de falta de assinatura) não são de conhecimento oficioso.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

              Custas pela ré.

              Coimbra, 12/07/2011.

              Pedro Martins ( Relator )

              Virgílio Mateus

              António Carvalho Martins