Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3305/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 12/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART.º 427º C.P.C.
Sumário:
I – Requerido arrolamento como preliminar a acção e divórcio, não há inutilidade superveniente da lide pelo facto de, entretanto, os divorciandos terem entregue uma relação de bens no processo de divórcio aquando da convolação do divórcio litigioso em mútuo consentimento.as partes
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de agravo nº 3305/03, vindo do Tribunal da Comarca de Ansião (arrolamento nº 52/03.1TBANS-A):
I – Relatório.
1.1. Recorrente: Cristina Maria.
1.2. Recorrido: Carlos dos Santos .
2. Objecto do recurso.
O presente recurso de agravo tem por objecto um despacho que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide fls. 28..
3. Enquadramento da pretensão da recorrente.
A recorrente requereu procedimento cautelar de arrolamento como preliminar de acção de divórcio. Instaurado este, os interessados acordaram em convolar a acção litigiosa em divórcio por mútuo consentimento, tendo, além do mais, relacionado os bens comuns do casal. Foi proferida a respectiva sentença homologatória.
No seguimento desta sentença, no procedimento cautelar, foi proferido o referido despacho a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente.
A requerente do procedimento cautelar não se conformou com este despacho e interpôs recurso, que foi admitido como agravo, a subir imediatamente e com efeito suspensivo.
4. Alegações.
4.1. Não obstante não ser necessário, a recorrente alegou factos integradores de receio de dissipação de bens por parte do requerido, o que não evitou que este tivesse citado.
4.2. Há bens comuns do casal que o requerido mantinha ocultos, pelo que a sua citação, antes do decretamento da providência, veio favorecer o requerido.
4.3. A relação de bens junta no processo de divórcio não tem ligação nem prejudica o arrolamento, porque o artigo 1419º do Código de Processo Civil sempre entrou em rota de colisão com o disposto no artigo 1.775º do Código Civil (antigo 1413º) e actual 427º do CPC.
4.4. O oferecimento de uma relação de bens comuns não torna inútil o arrolamento previsto no artigo 427º do CPC.
4.5. A recorrente não podia ser impedida de se divorciar por mútuo acordo pelo facto de desconhecer os bens que o requerido terá ocultado.
4.6. Assim participou na relacionação dos bens de que tinha conhecimento, mas tal não é determinante dos bens a partilhar.
Aponta como violadas as normas constantes dos artigos 287, al. e), 421º, 423º, 424º a 427º, 86, 1419º, nº 1,al. b), 1326º a 1405, todos do CPC e 1775, do CC.
II – Fundamentação.
5. Os factos.
5.1. A recorrente requereu o arrolamento dos bens comuns do casal em 14 de Janeiro de 2003.
5.2. Os bens objecto do pedido de arrolamento são os indicados nos artigos 38º e 39º do requerimento, e os saldos de todas as contas bancárias, carteiras de título com cotação na Bolsa e outras aplicações existentes em qualquer instituição bancária, mormente as referidas no artigo 37º.
5.3. O requerido indicou como sendo do casal dois vídeos e uma máquina de lavar roupa (artigo 9º da oposição).
5.4. Entretanto, foi instaurado processo de divórcio litigioso nº 52/03.1TBANS. no qual, em 6 de Março de 2003, recorrente e recorrido acordaram na conversão para divórcio por mútuo acordo.
5.5. Aí, relacionaram os bens constantes dos artigos 37º, 38, 39º do requerimento e 9º da oposição.
5.6. Em 17 de Março de 2003, no processo de arrolamento, foi proferido despacho a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
6. O Direito.
6.1. Nas suas alegações, a recorrente insurge-se contra o facto do requerido ter sido citado antes de decretado o arrolamento.
Contudo, tal despacho transitou em julgado, pelo que tal facto não pode ser objecto de conhecimento por este tribunal. Aliás, a requerente do arrolamento interpôs recurso da decisão de fls. 28, a que pôs termo ao processo e não da que mandou citar o requerido.
6.2. A razão de ser da decisão sob censura não está desenvolvida. No respectivo despacho, o MMº Juiz considerou que «o presente procedimento cautelar visava obter o arrolamento dos bens comuns do casal formado pela requerente e requerido e que «no decurso da tentativa de conciliação aqueles apresentaram já a relação dos bens comuns do casal», pelo que conclui: «atenta a natureza e o âmbito dos presentes autos, (que) se tornou inútil a sua continuação» fls. 28..
6.3. A inutilidade superveniente da lide é a cessação da matéria da contenda cf. Professor Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 1946, 3º vol., pág. 369.. Verifica-se a inutilidade da lide quando a pretensão do autor deixou de se poder manter, ou porque desapareceram os sujeitos ou o objecto do processo ou ela foi satisfeita fora do esquema da providência pretendida Dr. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1999, vol. I, pág. 512.. Na verdade, a relação processual tem como elementos os sujeitos - as partes ou os interessados - e o objecto - o pedido e a causa de pedir -. Se, depois de iniciada a instância, um destes elementos deixar de existir, a relação processual fica «desprovida de um dos seus elementos vitais, sucumbe, porque se tornou impossível, ou porque já é inútil a decisão final sobre a demanda» Dr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 59..
6.3.1. Ora, requerente e requerido continuam com a mesma posição que tinham no início, pelo que os sujeitos da relação processual se mantêm.
6.4. Então, ter-se-á pensado que o pedido estava já satisfeito: se se tinha vindo pedir a descrição (dos bens ou documentos), a avaliação (dos bens por avaliador) e o depósito (entrega ao depositário) artigo 424º., tudo isso tinha sido conseguido com a decisão espontânea e consensual que os interessados tiveram no processo de divórcio ao acordarem em entregar a relação dos seus bens e respectivos valores. Também se poderia admitir que a causa de pedir tinha desaparecido: se o requerido esteve de acordo em colaborar na indicação dos bens e valores, então deixou de se verificar o receio de extravio, ocultação ou dissipação.
6.5. Mas, não parece que seja assim. Nem do ponto de vista estritamente técnico-jurídico, nem do dinâmico, ou seja, do relacionamento daquele com a realidade sócio-jurídica.
6.5.1.1. Quanto ao primeiro aspecto, basta pensar que é precário o valor jurídico da relação de bens apresentada no processo de divórcio por mútuo consentimento. Os efeitos do caso julgado da sentença que decreta o divórcio não se estendem a essa relação Dr. João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Almedina, 1991, vol. III, pág. 365; Acórdãos do STJ, de 6 de Maio de 1987, in BMJ 367º, 465 e do STA, de 25 de Junho de 1986, in BMJ 358º, 458.. Os interessados têm que mostrar acordo no que respeita ao exercício do poder paternal, aos alimentos e ao destino da casa de morada de família, mas, em relação aos bens do casal, só têm que apresentar a sua relação, com os respectivos valores. Assim, temos valores diferentes para os acordos que pressupõem a homologação de divórcio por mútuo consentimento, pelo que lhe correspondem regimes também diferentes. Diz o Senhor Desembargador Jorge Augusto Pais do Amaral que se exige «apenas a relação especificada dos bens comuns e não qualquer acordo quanto à partilha dos bens comuns do casal». E explica: «se a exigência chegasse a tanto, dificultaria, em muitos casos, o divórcio por mútuo consentimento. A partilha traz, com frequência, complexos problemas que os cônjuges não estão, naquele momento, em condições de solucionar e pretende-se que o não façam de forma precipitada» Do Casamento ao Divórcio, Cosmos, 1997, pág. 62..
6.5.1.2. Por outro lado, a apresentação da relação, quando muito, cumpria o desiderato da descrição e da avaliação, mas já não o da entrega a pessoa incumbida e responsabilizada de os guardar e apresentar. E não se diga que este segmento do objecto da relação processual também era conseguido porque, manifestado o bem, era seguro que, pelo menos, o seu detentor devia o respectivo valor numa “prestação de contas” resultante da sua não apresentação. Dever a importância relativa a uma coisa é diferente de garantir a própria coisa. Depois, poderia ser difícil dirimir um eventual conflito relativo a saber quem ficara com o bem ou quem veio a ficar em momento posterior ou quem o subtraiu, etc., tanto mais que nenhum dos interessados foi incumbido de o guardar, nenhum assumiu a função de depositário.
Repare-se que qualquer dos interessados -ou ambos-, pode ter-se esquecido de um ou mais bens; mas, não fica impedido de o levar ao futuro processo de inventário para separação dos bens. Também o acordo para a apresentação da relação de bens pode “frustrar-se” com a subtracção posterior de um bem. Se um dos interessados, ou ambos, chegados a casa, receberem conselho avisado sobre o valor de um ou mais bens, não ficam vinculados ao constante da relação entregue no processo de divórcio.
6.5.1.3. Portanto, o objecto da relação processual estabelecida com o processo de arrolamento mantém-se e não foi satisfeito nem prejudicado pela apresentação da relação de bens no processo de divórcio: o pedido só parcialmente foi conseguido e o fundamento da parte do pedido que ficou por satisfazer também se mantém; parte do pedido não ficou satisfeito, nem quantitativamente, nem qualitativamente; o fundamento do pedido de arrolamento também se mantém porque o acordo que surgiu no divórcio não é necessariamente global. Estes aspectos serão complementados na segunda parte.
6.2. Sem prejuízo da importância e essencialidade da parte anterior, fazer agora a análise na perspectiva de ver como o direito se harmoniza com os interesses e necessidades das pessoas, como se encaixam as duas realidades, tem também muita importância e dará uma visibilidade mais viva à incorrecção de parar com um processo de arrolamento por se apresentar uma relação de bens num processo de divórcio.
6.2.1. Actualmente, os sistemas de divórcio-sanção tendem a desaparecer ou, pelo menos, a perder importância. Na verdade, «constata-se uma tendência para se passar de um sistema de divórcio-sanção a um sistema de divórcio-ruptura, correspondendo à evolução das concepções sobre o casamento» documento do Conselho da Europa, CCJ/BUR (76) 5 do Bureau du comité européen de coopération juridique, chapitre B. Droit du Divorce; cf. Profª Leonor Beleza, Direito da Família, apontamentos das Lições proferidas no ano lectivo de 1978/79, edição da Associação Académica, Lisboa, 1979, págs. 91 e 92.. As ciências sociais especializadas repudiam uma abordagem assente na culpa - na culpa do outro, como sugestivamente dizem os sociólogos - Professora Drª Anália Cardoso Torres, Fatalidade, Culpa, Desencontro, formas da ruptura conjugal, “Sociologia - Problemas e Práticas, Nº 11, 1992, págs. 43 a 62; Divórcio em Portugal, Ditos e Interditos, Celta Editora, Oeiras, 1996; Jack Goody, Família e Casamento na Europa, Celta Editora, Oeiras, 1995; Luiz Meyer, Família, Dinâmica e Terapia, Edições Salamandra; Edward Shorter, A Formação da Família Moderna, Terramar.. Também no campo do direito, há reparos à concepção tradicional cf. o Sr. Professor Pereira Coelho, na RLJ 117º, 96, 2ª col., quanto aos efeitos patrimoniais do divórcio. Na doutrina francesa, Alain Bénabent, Droit Civil - La famille, 3ª édition, 1988, Litec, pág 265., com críticas ao peso exagerado do divórcio-sanção No direito alemão, após a reforma de 76, desapareceu, por completo, o divórcio com base na culpa (primeira lei de reforma do direito matrimonial e de família alemão, publicada em 15 de Junho de 1976, no Bundesgezetzblatt I.S. 1421-B.G.B.C., com entrada em vigor em 1 de Julho de 1977). Passou-se de um sistema de divórcio com base na culpa para um divórcio com fundamento no fracasso matrimonial e alterou-se o conceito de culpa, para efeitos de prestações alimentares e compensatórias, adaptando o respectivo regime às necessidades sócio-políticas da mulher. Também os direitos espanhol e francês foram conhecendo uma evolução semelhante, evolução lenta mas constante, forçada pela força dos factos (Alimentos entre conyuges y entre convivientes de hecho, Maria Paz Garcia Rubio, Editorial Civitas, S.A., 1995, pág. 71, e Alain Bénabent, Droit Civil. Obra e local citados, respectivamente).
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6.2.2. Estas mudanças também já fazem parte da mentalidade e atitude das pessoas em geral; é notória a preferência pelo divórcio-remédio. Os estudos científicos mostram que só um número restrito de pessoas, inferior a 10%, tem uma necessidade social e psicológica de ver declarado culpado o outro cônjuge, de que tal seja proclamado por uma autoridade pública. A maioria prefere um processo mais pacífico e recatado, quer porque não é fácil fazer a prova de factos que ocorrem na intimidade do lar, quer porque não querem expor a sua vida publicamente, quer porque a lide judiciária aumenta o sofrimento e introduz factores belicosos numa relação que sempre manterá alguns laços quando há filhos.
6.2.3. Deste quadro - que não oferecerá muitas dúvidas -, decorre que muitas conversões de divórcios litigiosos em mútuos consentimento decorrem sob a pressão destes referidos factores e, face a um argumento ou a uma pequena mudança de posição de um deles, o outro aceita a conversão, mesmo com algum prejuízo para si. Se assim não fosse, não haveria conversões nos divórcios litigiosos, visto que os interessados, podendo socorrer-se do processo por mútuo consentimento, não intentariam acções litigiosas.
Mas esta mudança vai-se operando com vantagens para os interessados mas também com as dificuldades inerentes às deficiências e desencontros entre o percurso institucional e o material que nem sempre acertam o passo. Então, quer as exigências e delicadezas de um tal processo, que seja verdadeiramente auto-compositivo, quer a intervenção de um órgão que não está especialmente vocacionado para ele, habitualmente numa única sessão ainda não há muito tempo com os interessados de pé e num gabinete com vários estagiários., tem o valor que tem: pode acontecer que a conversão se traduza num real acordo e pacificação, mas também pode acontecer o contrário, e o resultado não depende só do bom desempenho e das boas condições de trabalho do conciliador, mas doutros factores sobre os quais ele pode não ter poder de interferência.
6.2.4. Assim, traduzir tal atitude num acto completamente livre, inequívoco e definitivo pode não ter nada a ver com a realidade das coisas. A única conclusão segura que se pode tirar de uma conversão é que um ou os dois divorciandos querem fugir ou evitar o divórcio litigioso; já se a manifestação de vontade exteriorizada traduz uma situação de pacificação entre eles e um acordo efectivo é certeza que se não pode ter.
Basta ver os incumprimentos dos acordos de regulação do exercício do poder paternal, tão frequentes que são percepcionados empiricamente. Ou seja, supostamente por acordo, os interessados convencionam um regime - e este obriga-os, diferentemente da relação de bens - e, a seguir, não o cumprem, não estão de acordo com ele. Não se pode dizer que, com a relação de bens, a situação seja mais nítida, admitindo-se mesmo que não suscite tantos desentendimentos, ulteriormente. Mas, um pormenor curioso: muitos interessados opõem-se ou resistem à conversão por causa dos bens e o que os operadores judiciários costumam dizer-lhes é que a questão dos bens não tem a ver com o divórcio porque a partilha é feita noutro processo e o seu curso é independente de se enveredar pelo litigioso ou pelo mútuo. Ou seja, os interessados partem do princípio que a conversão implica e depende de um acordo sobre várias matérias e a solução de todas as vertentes do conflito e diz-se-lhes, verdadeiramente, que a partilha dos bens é um aspecto que não interfere nos outros acordos.
6.2.5. Assim, a entrega de uma relação de bens num processo de divórcio tem o significado de um acordo ao nível do possível naquele momento, o que se harmoniza com o valor jurídico da relação de bens, mormente noutros processos.
6.2.6. E esta situação não traduz nenhuma atitude de deslealdade ou de má-fé processuais. Não pode dizer-se que haja alguma “reserva mental” na atitude de um ou dos dois interessados que entregam uma relação de bens incompleta porque o que pode estar em causa é a diferença entre os ritmos do processo judiciário e os do processo psicológico; no primeiro, traçados previamente e em abstracto, no segundo, de uma grande plasticidade. Então, conseguir-se um acordo parcial pode ser importante para este e não deve ser afastado ou diminuído por aquele, com o argumento de que as “formas” com que aquele trabalha só conhecem o acordo total ou a falta dele o que nem sequer é totalmente verdade, mas entrar nesse aspecto obrigaria a fugir demasiadamente da questão..
Não há nenhuma razão que obrigue a interpretar a entrega de uma relação de bens como uma situação de acordo global e completo: com segurança, só pode dizer-se que, no mínimo, é um acordo parcial - para além de não ser vinculativo -.
6.2.7. A não ser que o contrário resulte do que for expressamente dito ou do contexto interpretativo.
Ou seja, o que está em causa é a interpretação das declarações e atitudes dos interessados de uma forma concreta e não formal, reduzindo aquelas ao escopo abstracto de determinado processo, mas, antes, abrangendo a realização concreta dos interesses em jogo, os quais podem coincidir mais ou menos com aquele escopo. Só assim a forma serve harmoniosamente o conteúdo. Não se pode pensar que a forma é por definição sempre suficiente e eficaz. Não basta que ela disponha de meios concebidos para satisfazer os interesses das pessoas, é necessário que seja capaz de se aproximar o mais possível deles.
6.2.8. Atentemos no que se passou em concreto:
a) a requerente pediu o arrolamento dos bens «indicados nos artigos 38º e 39º do requerimento e os saldos de todas as contas bancárias, carteiras de título com cotação na bolsa e outras aplicações existentes em qualquer instituição, mormente as referidas no artigo 37º» nº 5.2..;
b) na conversão verificada no processo de divórcio, os interessados relacionaram «os bens constantes dos artigos 37º, 38º, 39º do requerimento e 9º da oposição» nº 5.5...
c) então, desta relação, faltam os saldos de todas as contas bancárias, carteiras de título com cotação na bolsa e outras aplicações existentes em qualquer instituição, à excepção das referidas no artigo 37º e juntou-se os bens do artigo 9º da oposição.
Voltamos a perguntar, porque é que se há-se partir do princípio que a requerente se desinteressou dos bens que o requerido negou existirem na sua oposição e em que se mantém o desacordo no processo de divórcio? Pensamos que o raciocínio deve ser ao contrário: sobre os constantes da relação, parece haver acordo; quanto aos outros, é no processo para partilha dos bens que o assunto será resolvido; sublinhamos parece haver acordo porque neste referido processo os interessados podem já não o conseguir ou alterá-lo.
Mesmo que assim não se entendesse, do ponto de vista jurídico, a verdade é que, do ponto de vista prático, a referida realidade pode vir sempre a verificar-se: basta que a alegada lesada na subtracção de bens, obrigada a desistir do arrolamento para conseguir um divórcio mais correcto, volte à sua posição (inicial, actual e futura) no processo de inventário para separação de bens, alegando e provando a existência de mais bens. Só que, nessa altura, numa posição mais fraca, sem o apoio dos mecanismos jurídicos que deveria ter e que se ajustavam à sua situação concreta.
6.2.9. Dir-se-á que esta perspectiva do relacionamento entre os dois processos não se harmoniza com a articulação dogmática entre eles, pois a justificação para a desnecessidade de alegar, no arrolamento, o receio de dissipação ou extravio dos bens é o facto do pedido de divórcio ser susceptível de provocar no espírito do marido uma animosidade que o possa levar a prejudicar a mulher, sendo difícil fazer a prova de uma particular situação psicológica do outro cônjuge, diferentemente do que se passa quando se requer a prova de uma administração imprevidente ou desonesta o que era mais flagrante no regime anterior à revisão do Código Civil por força da Constituição da República de 1976, no qual o marido tinha amplos poderes de administração dos bens comuns ou próprios da mulher. AUBRY-RAU-BARTIN, Cours de Droit Civil Français e PLANIOL-RIPERT-ROUAST, Traité Pratique de Droit Civil Français, ambos citados pelos Senhores Professores Pires de Lima e Vasco da Gama Lobo Xavier, na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Janeiro-Dezembro de 1971, Ano XVIII, Nºs. 1-2-3-4, págs. 275 e 276.. Então, se apesar dessa eventual animosidade, eles acabam por acordar na conversão do divórcio, deixará de haver esse perigo.
Insistimos que não tem necessariamente que ser assim: a conversão nem significa que tenha sido conseguida uma pacificação real do ponto de vista jurídico - a relação de bens não vincula os ex-cônjuges - e muito menos do ponto de vista psicológico; pode acontecer que eles já estejam divorciados na perspectiva do primeiro e ainda o não estejam na do segundo bem como o contrário, obviamente.. E não se diga que isso não interessa ao direito porque a este deve interessar tudo, mormente a sua maior adequação possível à realidade material. Aquela observação só poderia ter interesse no que respeita ao requisito da alegação e prova do receio de dissipação ou extravio. Mas, quanto a este aspecto, o normal é o arrolamento já estar executado quando se chega à conversão; na situação sui generis deste processo, está ultrapassada a fase da alegação e o que interessa é prosseguir ou não o arrolamento.
6.2.10. Mas, teremos ainda de encarar uma outra questão: se for assim, por que razão a lei exige que os interessados juntem uma «relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores» artigo 1419º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil.? Na verdade, se essa relação não vincula os seus autores noutros processos e se pode não estar completa, podendo o processo prosseguir com discussão ulterior sobre a partilha dos bens, que razão justifica a exigência da entrega da relação de bens, para que possa haver divórcio por mútuo consentimento ou conversão para este?
Se disséssemos - como eventualmente dirão os que tenham entendimento diverso do aqui defendido - que, embora não vinculativa, a relação de bens tem de traduzir um acordo existente em determinado momento, acordo completo e inequívoco, por uma razão de lealdade, quer entre os interessados, com tutela pela autoridade judiciária, quer perante esta, dispensando-se tão só o acordo sobre a partilha dos bens, perece-nos que continuaria a haver um espaço de incompreensão por causa da falta de força vinculativa da própria relação de bens, e já não da partilha sobre eles. Que respeito e lealdade eram esses que permitiam que um ou os dois interessados acordassem para fugirem às desvantagens de um divórcio litigioso, podendo depois, ou sabendo que podiam depois, desacordarem e começarem a discutir!? E, salvo melhor opinião, é esta a realidade que a leitura das normas nos oferece!
A explicação está em que o legislador quer fomentar o acordo entre os interessados, mas não mais do que isso.
Neste momento, poderíamos “pegar” naquela nota em que dizemos que não é inteiramente verdade que o processo judiciário só conhece o “tudo ou nada” nota nº 18., para frisar que a auto-composição relativamente ao fim de um casamento é uma situação complexa, em que, muitas vezes, um resultado satisfatório só é possível com acordos parcelares e progressivos, quantas vezes com recuos e avanços, sem início e fim pré-definidos. Então, o papel do direito, quer por parte do legislador, quer do aplicador da lei, é, na medida do possível, ajustar-se a esse ritmo variável de caso para caso; ritmo que depende fundamentalmente do processo individual e relacional de cada um dos interessados, mas também de impulsos exógenos facilitadores. É assim que o legislador como que exorta os interessados a pensarem na questão dos bens a partilhar, como que a sugerir que eles iniciem um processo que acabará mais tarde, no processo de separação de bens, mas em que um bom final pode depender de um início atempado. No fundo, trata-se de uma técnica usada em mediação familiar, que é a de remeter os interessados para tarefas auto-responsabilizantes que ajudem a chegar ao resultado final; por exemplo, umas vezes, calculando, em concreto, as despesas dos filhos, a fim de facilitar o acordo quanto ao montante dos alimentos; neste caso, o de irem recolhendo os bens que hão-se ser divididos. É o judiciário a incentivar os interessados a tomarem a iniciativa de irem pensando na resolução dos seus problemas: se o processo psicológico já está avançado e não há muito litígio, os interessados já trarão uma lista completa, eventualmente definitiva; caso contrário, cada um dos interessados, acaba obrigado a encarar a questão da lista de bens a dividir, começando a pensar e a decidir-se quais relaciona. Daqui a chegar a uma relação completa e definitiva vai a distância que, quer o processo psicológico, quer o jurídico, permitem ou dificultam - este na letra e no espírito da lei -.
6.3. Por último, assalta-nos a dúvida sobre o interesse em prosseguir com o arrolamento nas circunstâncias concretas deste processo.
Já atrás referimos que ele traduz uma situação sui generis, o que repetimos. Referimo-nos ao facto do requerido ter sido citado! Tal não costuma acontecer e só por ter acontecido é que, entretanto, o processo de divórcio teve um curso mais veloz do que o de arrolamento, ou seja, quando os cônjuges chegaram ao divórcio ainda não estava acautelado o que a requerente queria prevenir precisamente antes da instauração da acção. A citação frustrou a pretensão da requerente, sem ser possível saber se a sua pretensão era ou não razoável.
Ignora-se a razão de ser do despacho que ordenou a citação, que não é habitual nos processos de arrolamento de bens da natureza dos indicados neste processo. Nem é habitual, nem deve ter lugar: se efectivamente o requerido tiver bens escondidos ou se preparar para o fazer - hipótese que a lei admite em abstracto e que, em concreto, só se pode saber no final do processo -, o citado nem precisa de responder à chamada, reforça o esconderijo ou apressa-se a chegar lá, antes que o Sr. Funcionário judicial lhe descubra os bens, os relacione, avalie e lhes dê guardião! Mas, se responder, fá-lo-á sempre da mesma maneira: se não escondeu nem dissipou, dirá isso mesmo, no caso inverso, também dirá que não os escondeu nem dissipou.
Mas esta realidade só é verdadeira no plano prático, visto que, do ponto de vista estritamente jurídico, nada impede que, mesmo agora, se proceda ao arrolamento, tal como afirmámos no início; ou seja, não há nenhum factor que torne inútil supervenientemente o pedido de arrolamento (e não se diga que, agora, já separamos o plano prático do teórico, porque o desfasamento que há deriva de uma citação que não devia ter tido lugar, não fazendo sentido voltar a prejudicar a requerente depois de já ter tido um prejuízo anterior).
E, mesmo do ponto de vista prático, não é seguro que o prosseguimento do processo esteja completamente prejudicado pelo aviso feito ao requerido. Mas por aqui nos ficamos.
III – Decisão.
Nestes termos, concede-se provimento ao agravo, devendo substituir-se o despacho que declarou extinta a instância por outro que dê prosseguimento ao processo.
Custas pelo recorrido.
16 de Dezembro de 2003.