Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
566/03.3TBCVL-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL CÍVEL
Data do Acordão: 10/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ - 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 221º Nº1 E 212º Nº3 DA CRP, 18º Nº1 DA LEI 3/99, DE 13/1 (LOFTJ), 66º DO CPC E 4º AL. F) DO DL 13/2002, DE 19/2 (ETAF)
Sumário: Os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para julgar a acção proposta pelo Município da Covilhã, pessoa jurídica de direito público, para exercer a resolução de um contrato de compra e venda celebrado com uma sociedade comercial ao abrigo do princípio da liberdade contratual, dado que a relação jurídico-contratual donde emerge o litígio, objecto da acção, é uma questão de direito privado.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

O A... propôs no Tribunal Judicial da Comarca da respectiva sede uma acção ao abrigo do art. 205º do CPEREF contra a Massa falida da sociedade comercial B.... e respectivos credores, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de compra e venda que celebrou com a dita sociedade, através da escritura outorgada em 19/5/2000 e, em consequência, lhe seja restituído o lote de terreno que dele foi objecto.
Como causa de pedir, alegou, fundamentalmente:
Mediante tal contrato – conforme o que nele foi estipulado directa ou indirectamente (por remissão para as condições expressas no “Regulamento de Atribuição de Lotes nas Zonas Industriais da Covilhã”) – vendeu àquela sociedade, pelo preço simbólico de 1$00/m2, um lote de terreno destinado a construção de instalações aptas ao regular desenvolvimento da actividade económica da mesma, a qual, se obrigou, sob pena de resolução do contrato, a cumprir esse desiderato e a respeitar, para tanto, os prazos que são indicados no art. 18º da PI. Ora, a sociedade, à data em que foi decretada a respectiva falência, não respeitara qualquer desses prazos, não tendo iniciado a sua actividade no lote comprado, passados mais de 4 anos desde a escritura.

A R Massa Falida, citando o disposto no artigo 4º, al. f) do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/02, invocou ser aquele Tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar e julgar a acção porque, em face da causa de pedir deduzida pelo A, o thema decidendum prender-se-ia com questões atinentes ao contrato de compra e venda celebrado entre uma pessoa colectiva de direito público e uma pessoa colectiva de direito privado, cujos aspectos substantivos teriam ficado sujeitos, por vontade expressa das partes, a um regime previsto num conjunto de normas de direito público, o aludido “Regulamento”.

O Mmo Juiz julgou improcedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal, declarando-o competente para dirimir o litígio trazido a juízo.

Inconformada com tal decisão, agravou a R, delimitando o objecto do recurso com conclusões (arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC) que recolocam a questão da (in)competência material do Tribunal Recorrido para conhecer da causa.

Cumpre decidir.

Importa apreciar a questão enunciada, sendo os factos pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os que emergem do relatório precedente.

Está apenas em causa apurar qual das duas ordens de tribunais – a dos tribunais judiciais ou a dos tribunais administrativos – é a competente, em razão da matéria, para julgar, a acção proposta pelo A. E, como se sabe, a competência do tribunal afere-se pela pretensão do autor, compreendidos os respectivos fundamentos[ cf. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, p. 91.]. Atende-se, pois, ao pedido deduzido, ilustrado pela causa de pedir tal como o autor a configura, isto é, ao pedido identificado pelos seus fundamentos.
Entende a recorrente que a pretensão formulada na petição inicial é subsumível à alínea f) do artigo 4º do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/2002, de 19/2.
Mas, salvo o devido respeito, sem razão, embora tal como sustenta, dado que a acção foi proposta em 11/4/2005 (v. fls 56), mesmo atendendo à alteração decorrente da Lei 4-A/2003, de 19/2, já vigorava na data (a partir de 1/1/2004) o regime legal da citada Lei 13/2002, de 19/2. O artigo 4º al. f) deste diploma preceitua que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
Segundo a Constituição, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais (nº 1 do art. 211º) e compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais (nº 3 do art. 212º [ Secundado pelo art. 1º do ETAF de 2002.]. A regra geral é, pois, a subsidiariedade da jurisdição comum, confirmada pela delimitação negativa dos artigos 18º, nº 1, da Lei n.º 3/99, de 13/1 (LOFTJ) e 66º do CPC.
A competência em razão da matéria releva da eficiência da organização judiciária, de interesse público fundamental, porque, fixando-se em função da natureza da matéria a conhecer, visa a escolha do tribunal mais vocacionado para a julgar e decidir.
Mas, como é forçoso verificar, a questão colocada pelo A na acção, não obstante ser uma pessoa jurídica de direito público, é uma questão de direito privado, e não, como defende a agravante, de direito público. Manifestamente, no caso da acção em apreço, apenas está em causa o incumprimento de um contrato de compra e venda e o consequente accionamento de determinadas condições nele clausuladas, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, passíveis de serem estipuladas entre particulares no âmbito de quaisquer contratos de compra e venda, atento o disposto nos artigos 270º e 405º, nº 1, do CC.
Na verdade, o A... propôs-se na acção, com apoio no disposto nos arts 432º e ss do citado código, exercer o direito de resolução de um contrato celebrado com uma sociedade comercial ao abrigo da autonomia privada, sendo certo que essa sua pretensão é fundada no convencionado no contrato e no incumprimento deste por parte da outra contratante.
A assunção por ambos os contraentes de condições expressas no “Regulamento de Atribuição de Lotes nas Zonas Industriais da Covilhã”), por si só, não subverte a liberdade ou a paridade contratual das partes, sem embargo de um executivo camarário dever prosseguir sempre o “interesse público”, o interesse da comunidade dos seus munícipes, a satisfação das necessidades desta, pugnando, mesmo no âmbito de contratos privados, por um correcto desenvolvimento urbanístico.
Não se detecta o exercício de um poder público na conduta do A... Autor, o qual se limitou a exercer as suas atribuições despido dessa qualidade, tal como se fosse uma entidade privada, em pleno pé de igualdade com os particulares, portanto desprovido do poder de supremacia que em princípio lhe advém da sua qualidade de Ente Público Administrativo[ cf. Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, I, 10ª ed, Almedina, pág 430.], para além de que essa conduta se enquadra numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil) e não por normas, princípios e critérios de direito público (administrativo).
Ora, na relação jurídica-contratual donde emerge o litígio, objecto da acção, não se detectam os elementos que a permitam qualificar como administrativa, regulada pelo direito público administrativo, mas apenas os de uma mera relação regulada pelo direito privado[ Sublinha o sumário do acórdão do STA de 17/3/88, Proc. nº 24111, citado pelo acórdão do STJ de 26/6/2001 (www.dgsi.pt): “Constitui acto de direito privado a deliberação da Câmara municipal que, invocando cláusula de um contrato pelo qual vendeu a um particular, para a construção de hotel, um terreno do seu domínio privado, entende assistir-lhe o direito, que pretende exercer, de reversão em virtude do comprador não ter cumprido os prazos a que se obrigara. Consequentemente, os Tribunais do contencioso administrativo não são competentes para apreciar e decidir a questão em recurso contencioso interposto pelo comprador”.].

Assim sendo, independentemente do disposto na norma do art. 207º do CPEREF, é de manter a decisão criticada, ainda que por razões não totalmente coincidentes com as que a sustentaram.

Pelo exposto, negando provimento ao agravo, decide-se confirmar a decisão recorrida.

Custas pela agravante.