Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6102/18.0T8CBR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUA FUNDAMENTAÇÃO
BOA FÉ DO DEVEDOR
Data do Acordão: 06/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUIZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º E 238º DO CIRE.
Sumário: I – O artigo 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas) atribui ao devedor que seja uma pessoa singular a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

II - E o artigo 238º faz depender a admissibilidade de tal procedimento da não verificação de qualquer uma das situações previstas nas alíneas a) a g) do seu nº 1, sendo que o preenchimento de qualquer uma delas constituirá motivo de indeferimento liminar.

III - As alíneas b), d) e e) de tal norma respeitam a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.

IV - Constituindo a exoneração do passivo restante um benefícioextinção do passivo não satisfeito, passivo este pelo qual continuaria a responder a totalidade do património do devedor, presente e futuro, até ao fim ao fim do prazo ordinário de 20 anos (artigos 601º e 310º do CC) –, pensado e concedido exclusivamente ao devedor que se encontre de “boa fé, a exclusão de tal benefício de todos aqueles cujo comportamento tenha, de algum modo contribuído para o deflagrar ou agravar da situação de insolvência, surge como perfeitamente compreensível e justificada.

V - Considera-se de boa fé o devedor cuja situação patrimonial resultou de actos praticados sem o intuito de prejudicar os direitos dos credores, salvo se tivesse contribuído de forma consciente e censurável para gerar ou agravar o sobre-endividamento.

VI - Tal benefício há de ser concedido ao devedor honrado mas desafortunado, que conduziu honestamente a sua atividade económica e financeira, mas que sofreu um infortúnio imprevisto na sua vida pessoal ou laboral – uma situação de desemprego, divórcio, incapacidade, ou outra.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 6102/18.0T8CBR-G.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Freitas Neto

2º Adjunto: Carlos Barreira

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

P... e esposa, C..., declarados insolventes por sentença de 18 de dezembro de 2018, vieram requerer a exoneração do passivo restante, alegando factos tendentes a justificar a concessão deste benefício.

O Administrador da Insolvência apresentou Relatório a que se refere o artigo 155º  do CIRE, no qual declarou nada opor à admissão do requerido incidente.

Notificados os credores para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante:

- A C..., S.A., a fls. 240 (08.02.2019), opôs-se ao deferimento de tal pedido, alegando, em síntese, que os devedores receberam, no processo de insolvência da sociedade F..., Ld.ª, créditos de 70.084,91€ e de 13.681,81€, respetivamente, e que  perante a comunicação de apreensão dos mesmos à ordem destes autos, nada entregaram ou informaram a senhora AI, violando, assim, deveres de informação e colaboração.

- a credora P..., S.A., a fls. 243 e ss. (21.02.2019), manifestou igual oposição, alegando, em síntese:

foi já no decurso do PEAP que antecedeu estes autos insolvenciais que os devedores receberam a importância global de 83.766,72€ no processo de insolvência da sociedade F..., Ld.ª, onde eram credores, para além da quantia de 19.080,00€ paga pelo Fundo de Garantia Salarial, sem terem feito qualquer referência às mesmas;

notificados nestes autos pela senhora AI da apreensão de tais quantias, os devedores, não só, não entregaram tais quantias, como nada informaram sobre as mesmas;

no PEAP que antecedeu estes autos, foram reconhecidos dois créditos ao Banco B..., S.A., garantidos por hipoteca sobre um bem imóvel (prédio urbano sito em ..., descrito na CRPredial com o n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...), tendo o mesmo sucedido nestes autos insolvenciais, sem, contudo, os devedores serem titulares de qualquer bem imóvel e, designadamente, do que foi dado à referida hipoteca;

nos termos da certidão predial desse imóvel, os devedores adquiriam o mesmo em 02.01.1999, data em que constituíram hipotecas sobre o mesmo a favor do Banco B..., S.A., e procederam à sua venda em 05.05.2016, à sociedade T..., INC, com sede em Delaware, EUA, sem terem liquidado o empréstimo contraído junto do B..., S.A.;

em 28.10.2016 foi registada pela nova proprietária uma nova hipoteca sobre tal bem imóvel a favor de V..., Ld.ª, garantindo um empréstimo de 60.000,00€, sendo que o gerente de tal sociedade é J..., irmão do aqui devedor insolvente;

tais factos indiciam a existência de culpa na criação ou no agravamento da situação de insolvência dos devedores, pelo que deve o pedido de exoneração ser indeferido.

Na sequência da comunicação de tais factos, foram os devedores insolventes notificados para:

a) Depositarem à ordem da massa insolvente as quantias de 70.084,91€ e de 13.681,81€ que receberam, respetivamente, no dia 29.05.2018, do rateio realizado no processo n.º ... ou, caso tenham utilizado tais importâncias na amortização/pagamento de dívidas, para informarem detalhadamente quais as dívidas liquidadas, datas e meios de pagamentos, comprovando-o documentalmente;

b) Informarem o destino dado às quantias de 9.540,00€ que receberam, cada um, em 08.10.2016 e em 09.09.2016, respetivamente, do Fundo de Garantia Salarial, no âmbito do processo n.º ... (cf. despacho de 08.03.2019).

Os devedores insolventes nada vieram dizer aos autos.

Notificado o credor Banco B..., S.A., para informar se teve conhecimento da venda do bem imóvel em causa, que havido pertencido aos aqui insolventes e que foi hipotecado a seu favor, e se recebeu algum valor após a ocorrência da mesma, veio aquele responder, por requerimento de 40.04.2019, não ter tido conhecimento da sua venda e que nenhum valor foi amortizado aos empréstimos garantidos pelas hipotecas.

O Administrador de Insolvência, alterando a sua anterior posição, veio, então, pugnar pela improcedência do pedido de exoneração do passivo restante, alegando verificarem-se as causas de indeferimento liminar previstas nas alíneas e) e g) do artigo 238º do CIRE (cf. fls. 260 – 24.05.2019).

Desta vez vieram os devedores insolventes, em 06.06.2019, dizer-se merecedores do benefício da exoneração do passivo restante, alegando que o requerimento da senhora AI se mostrava conclusivo e absolutamente omisso de factos que justificassem o indeferimento do referido pedido. Mais referiram que à data venda do bem imóvel em causa já o Banco B..., S.A., não detinha qualquer hipoteca sobre o mesmo e que não recebeu qualquer quantia após tal alienação, porquanto as prestações acordadas continuavam a ser pagas (o que sucedeu até à declaração de insolvência).

Por requerimento de 17.06.2019 veio ainda a senhora AI alegar (e comprovar documentalmente) que, após ter sido informada pelo processo de insolvência da sociedade F..., Lda., de que os aqui devedores haviam ali recebido as quantias de 70.084,91€ e de 13.681,81€, respetivamente, os notificou da apreensão de tais valores, sendo que os mesmos nada lhe entregaram ou informaram sobre tal matéria.

Responderam então os devedores insolventes (requerimento de 25.06.2019), alegando que tendo a situação de insolvência sido declarada em dezembro de 2018, tais valores foram por si recebidos muito antes de tal data, podendo fazer o que entendessem com tais quantias, valores que usaram para cumprir com obrigações que tinham, para o seu sustento e da sua família e para ajudar familiares próximos.

O Juiz a quo proferiu despacho a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento no artigo 230º, nº1, al. e) do CIRE.

Inconformados com tal decisão, os insolventes dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

I) Mal andou o Tribunal “a quo” a decidir pelo indeferimento inicial do incidente de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, alegando que os factos indiciam a existência de culpa na criação ou no agravamento da situação de insolvência dos devedores.- Por tal não corresponder à verdade.

II) Os motivos para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante estão plasmados no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, enumerados de forma taxativa, não tendo o Tribunal Recorrido invocado quaisquer das circunstâncias ali expressamente previstas - ou pelo menos não subsume os factos que alega em nenhuma delas, fazendo incorrer a sentença em nulidade por falta de fundamentação.

III) Os factos provados na sentença em crise de 1 a 22 não são de molde suficiente a fundamentar uma recusa da exoneração do passivo restante dos devedores

IV) A venda do único imóvel dos devedores, em 05.05.2016, mais de dois anos antes da declaração de insolvência, que os devedores não estavam impedidos de vender já que sobre o Prédio em causa não incidia qualquer ónus (designadamente hipoteca alguma); não foi prejudicial aos credores e à massa, porque os devedores continuaram a efetuar o pagamento das prestações devidas pela compra do mesmo.

V) Também o facto de que em 29.05.2018, encontrando-se os devedores em PEAP, receberam a quantia global de 83.766,72€, por decorrência da homologação do mapa de rateio elaborado no processo de insolvência n.º ... não pode servir de fundamento ao indeferimento proferido, uma vez à data do recebimento daquele valor, os devedores não estavam impedidos de se apropriar do mesmo, dando-lhes o fim que entendessem, porque ainda não se encontravam em processo de insolvência.

VI) Tal valor não foi entregue à massa, porque quando foi recebido nem sequer havia massa; e nesse sentido, mal andou a Sra. AI em ordenar a sua apreensão, uma vez que a massa insolvente é um património autónomo composto por todos os bens e direitos (ativo) que integram o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como pelos bens e direitos que este adquira na pendência do processo de insolvência, que não aconteceu no caso do valor em causa.

VII) Não se provou nos autos que tal recebimento foi um acto doloso, que agravou, necessariamente, a situação de insolvência dos devedores e que os factos vertidos causaram, necessária e diretamente, prejuízo aos credores e, igualmente, uma maior dificuldade de os devedores solverem as suas dívidas, pelo que deveria o Tribunal “a quo” deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante requerido

Normas violadas: A sentença recorrida violou os art 238 do CIRE

Termos em que deve o presente recurso ser admitido, e por via do mesmo, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine o deferimento liminar da exoneração do passivo restante dos insolventes, por força da não verificação e prova de qualquer dos fundamentos enumerados no art. 238 do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 657º do CPC cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se existem nos autos “elementos que iniciem com toda a probabilidade, a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.”
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 O Tribunal a quo deu como provado os seguintes factos, com interesse para a decisão recorrida e que não foram objeto de impugnação:
1) O insolvente marido nasceu no dia 15.06.1970 e desde 2018 que se encontra empregado na sociedade D..., Ld.ª, com a categoria de carregador/servente, auferindo rendimentos não concretamente apurados, porque não alegados;
2) A insolvente mulher nasceu em 27.12.1971 e encontra-se desempregada;
3) Casaram-se entre si no dia 28.05.1994, no regime supletivo de bens de comunhão de adquiridos, sendo que o seu agregado familiar é atualmente composto pelos próprios e por um dependente;
4) Os insolventes foram trabalhadores da sociedade F..., Ld.ª, a qual foi declarada insolvente por sentença de 23.10.2015, transitada em julgado, proferida no processo especial de insolvência n.º ..., que correu termos pelo J1 deste Juízo de Comércio de Coimbra;
5) Os sócios gerentes da F..., Ld.ª, eram os pais do aqui devedor insolvente, sendo que este era igualmente sócio da sociedade;
6) Por sentença de 14.06.2016, transitada em julgado, proferida no apenso de reclamação de créditos do processo de insolvência n.º ..., foram reconhecidos créditos laborais aos ora devedores insolventes;
7) No âmbito do mesmo processo de insolvência n.º ..., por despacho de 20.02.2017 foi admitida a sub-rogação do Fundo de Garantia Salarial relativamente aos direitos e privilégios creditórios de ex-trabalhadores da F..., Ld.ª, na medida dos pagamentos efetuados, designadamente, em relação às quantias de 9.540,00€ paga a P..., e de 9.540,00€ paga a C...;
8) Após a homologação do mapa de rateio elaborado no âmbito do aludido processo de insolvência n.º ..., procedeu-se à entrega da quantia de 70.084,91€ a P..., e da quantia de 13.681,81€ a C..., no dia 29.05.2018;
9) No dia 25.01.2018, P... e esposa, C..., interpuseram processo especial para acordo de pagamento (PEAP), que correu termos pelo J2 deste Juízo de Comércio de Coimbra com o n.º ..., alegando que se encontravam em situação económica difícil, porquanto ficaram desempregados (auferindo, então, o subsídio de desemprego nos valores mensais de 777,30€ e de 621,00€, respetivamente), tendo o devedor marido avalizado várias operações financeiras da empresa cujas obrigações não lograva cumprir, sendo que também não conseguiam cumprir com as obrigações decorrentes do contrato de crédito à habitação que haviam celebrado;
10) No âmbito do aludido processo especial de revitalização foram reconhecidos créditos no valor global de 212.888,05€, sendo que apenas o crédito reconhecido ao B..., S.A., se encontrava ainda a ser cumprido;
11) O PEAP veio a ser encerrado, sem aprovação do plano de recuperação, no dia 29.06.2018, tendo tal facto sido publicitado em 12.07.2018;
12) Nessa sequência, e após a oposição dos ora requerentes à sua declaração de insolvência, veio a mesma a ser declarada, por sentença de 18.12.2018, transitada em 09.01.2019;
13) Nestes autos insolvenciais foram reconhecidos créditos sobre os insolventes na importância total de 226.704,93€, por sentença de 29.04.2019, já transitada em julgado;
14) Também nestes autos insolvenciais, a senhora AI notificou os devedores, cujos avisos de receção foram assinados em 07.01.2019, da apreensão dos valores recebidos por ambos no processo de insolvência n.º ..., sendo que os mesmos nada responderam àquela;
15) Igual comunicação foi efetuada ao Ilustre mandatário dos devedores, por email de 31.12.2018, que também não teve resposta;
16) O Tribunal, em 08.03.2019, notificou os devedores insolventes para depositarem à ordem da massa insolvente as quantias de 70.084,91€ e de 13.681,81€ que receberam, respetivamente, no dia 29.05.2018, do rateio realizado no processo n.º ... ou, caso tenham utilizado tais importâncias na amortização/pagamento de dívidas, para informarem detalhadamente quais as dívidas liquidadas, datas e meios de pagamentos, comprovando-o documentalmente; bem como para informarem o destino dado às quantias de 9.540,00€ que receberam, cada um, em 08.10.2016 e em 09.09.2016, respetivamente, do Fundo de Garantia Salarial, no âmbito do processo n.º ... (cf. despacho de 08.03.2019;
17) Os devedores insolventes, no prazo então concedido para o efeito, nada vieram dizer aos autos;
18) Os devedores não são atualmente titulares de qualquer bem imóvel, pese embora o crédito reconhecido ao B..., S.A., no valor de 44.498,98€, tenha origem num contrato de mútuo celebrado com aqueles, o qual se mostrava garantido por um bem imóvel (prédio urbano sito em ..., descrito na CRPredial com o n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...) que foi transmitido pelos devedores, em 5 de maio de 2016, à empresa T..., Inc, com sede em Delaware, EUA, mantendo, todavia, o contrato de mútuo em vigor;
19) Em 28.10.2016 foi registada uma nova hipoteca sobre tal bem imóvel a favor de V..., Ld.ª, garantindo um empréstimo de 60.000,00€, sendo que o gerente de tal sociedade é J..., irmão do aqui devedor insolvente;
20) Contra os devedores havia sido movido pela P..., S.A., um processo de execução ordinária, com o n.º ..., que corria termos pelo Juízo de Execução de Coimbra – J2, para cobrança da quantia de 92.417,17€;
21) Os créditos reconhecidos à C..., S.A., e à P...., S.A., têm origem em livranças subscritas pela sociedade F..., Ld.ª, avalizadas pelo devedor marido, em incumprimento desde 2010 e 2013, respetivamente;
22) Os insolventes não apresentam antecedentes criminais e nunca beneficiaram da exoneração do passivo restante.
 Com base em tais factos, o juiz a quo veio a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com o fundamento previsto na al. e) do artigo 238º do CIRE – “Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador de insolvência, elementos que iniciem com toda a probabilidade, a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.”
E o juiz a quo faz a seguinte análise da situação em apreço:
Ora, perante o que fica dito, conclui-se que ambos os insolventes, devedores de uma importância global superior a 200.000,00€, com origem essencialmente em garantias pessoais prestadas para financiamento de uma sociedade de que devedor marido era sócio, alienaram, em 2016, o único bem imóvel que possuíam, em claro prejuízo dos seus credores.
A aludida venda implicou a saída do património dos Insolventes de um bem imóvel (único) que facilmente poderia ser apreendido e vendido em benefício dos credores e a substituição desse bem pelo respetivo preço que, correspondendo a um valor monetário, facilmente escapou à ação dos credores, sendo certo que não há rasto desse valor. Por outro lado, o preço obtido com tal alienação não foi utilizado para pagamento aos credores, sendo que, se conjugarmos esse facto com as demais circunstâncias em que o negócio foi realizado (pontos 18. e 19.), tudo aponta para o facto de o mesmo ter sido realizado com o único propósito de subtrair o imóvel à ação dos credores.
Acresce que o facto de terem recebido, em plena pendência do PEAP que antecedeu o presente processo insolvencial, a significativa quantia global de 83.766,72€, sem que tivessem feito diminuir, em que medida fosse, o seu passivo, vencido em parte relevante, desde 2010 e de 2013, é manifestamente demonstrativo de uma conduta dolosa que agravou, necessariamente, a sua situação de insolvência.
Decorre, pois, de todo o acima exposto que a conduta dos devedores causou, necessária e diretamente, prejuízo aos credores e, igualmente, uma maior dificuldade de os devedores solverem as suas dívidas.”
Insurgem-se os Insolventes/Apelantes contra tal decisão, com a seguinte alegação:
- a venda do seu único imóvel dois anos antes da declaração de insolvência não importou um prejuízo para os credores, porquanto, sobre aquele não incidia qualquer hipoteca ou outro ónus, tendo continuado a proceder ao pagamento das prestações do empréstimo resultante da compra do mesmo;
- o facto de terem recebido as quantias de 70.084,91€ e 13.681,81€,  no âmbito do processo de insolvência da sociedade comercial, não pode servir de fundamento ao indeferimento proferido uma vez que, àquela data, os agora insolventes não se encontravam impedidos de se apropriar do mesmo.
Desde já se adianta não podermos dar razão aos Apelantes.
O artigo 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)[1] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
E o artigo 238º faz depender a admissibilidade de tal procedimento da não verificação de qualquer uma das situações previstas nas alíneas a) a g) do seu nº 1, sendo que o preenchimento de qualquer uma delas constituirá motivo de indeferimento liminar.
As alíneas b), d) e e) de tal norma respeitam a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.
Constituindo a exoneração do passivo restante um benefícioextinção do passivo não satisfeito, passivo este pelo qual continuaria a responder a totalidade do património do devedor, presente e futuro, até ao fim ao fim do prazo ordinário de 20 anos (artigos 601º e 310º do CC) –, pensado e concedido exclusivamente ao devedor que se encontre de “boa fé, a exclusão de tal benefício de todos aqueles cujo comportamento tenha, de algum modo contribuído para o deflagrar ou agravar da situação de insolvência, surge como perfeitamente compreensível e justificada.
Considera-se de boa fé o devedor cuja situação patrimonial resultou de atos praticados sem o intuito de prejudicar os direitos dos credores, salvo se tivesse contribuído de forma consciente e censurável para gerar ou agravar o sobre-endividamento[2].
Tal benefício há de ser concedido ao devedor honrado mas desafortunado, que conduziu honestamente a sua atividade económica e financeira, mas que sofreu um infortúnio imprevisto na sua vida pessoal ou laboral – uma situação de desemprego, divórcio, incapacidade, ou outra[3].
A exoneração do passivo restante não é um direito de todo e qualquer devedor insolvente, mas apenas daquele que o mereça[4], merecimento que abrange não só o comportamento que levou à situação de insolvência a que se respeita o pedido de exoneração do passivo restante, mas igualmente outros comportamentos do devedor suscetíveis de comprometer o juízo de merecimento.
E se a exoneração do passivo restante constitui uma vantagem para o devedor de se livrar do passivo não satisfeito, essa vantagem tem a correspondente desvantagem para os credores que verão extintos os respetivos créditos, ficando-lhes vedada a possibilidade de os vir a cobrar no futuro[5].
Distingue a doutrina dois modelos ou conceções deste instituto, o modelo da reeducação – assente na ideia de que o devedor, para beneficiar da exoneração deve merecê-lo, através de um comportamento passado, presente e futuro –, característico da europa continental, por contraposição ao regime do fresh start – no qual o que importa é a rápida recuperação do devedor, através da liquidação do seu património  e a liquidação quase imediata das suas dívidas –, com origem nos sistemas anglo-saxónicos[6].
Temos, assim, alguns ordenamentos jurídicos que concedem um perdão imediato e incondicional do remanescente da dívida e outros regimes, mais penalizadores e responsabilizadores dos sobreendividados, impondo um período longo durante o qual o devedor deve afetar a parte penhorável do seu salário ao pagamento das dívidas não pagas no decurso do processo de insolvência[7].
O nosso regime consagra um modelo de recuperação (também denominado de responsabilidade ou de reabilitação), ou uma “versão bastante mitigada[8] do modelo do fresh start, na medida em que a seguir à liquidação decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago[9].
De qualquer modo, e independentemente de se sujeitar ou não o devedor a um período de prova – o que pressupõe a existência de um bom comportamento futuro –, em qualquer um dos modelos acima referidos não se prescinde, nunca, da sua sujeição a determinados requisitos, entre os quais se inclui o não ter cometido qualquer crime insolvencial, não ter ocultado ou dissipado o seu património, bem como relevantes elementos contabilísticos e financeiros, e a inexistência de culpa no do devedor na criação ou agravamento da insolvência[10].
A criação ou agravamento da situação de insolvência pode ocorrer por uma de duas vias: pela criação ou aumento significativo do passivo existente ou pela diminuição do património do devedor.
No caso em apreço temos por relevante a seguinte factualidade, que se alinhará por um critério temporal, para melhor compreensão da imputabilidade da situação de insolvência aos devedores/Requerentes:
1. A declaração de insolvência da sociedade de que o insolvente era sócio foi decretada a 23 de outubro de 2015;
2. A transmissão do único imóvel propriedade do casal ocorre a 16 de maio de 2016;
3. A 25 de janeiro de 2016 os devedores/Insolventes instauram um PEAP;
4. A 25 de maio de 2018 recebem no processo de insolvência determinados créditos enquanto trabalhadores desta sociedade;
5. Na inviabilização da aprovação de um plano, vêm a ser declarados insolventes por sentença de dezembro de 2018.
Relativamente às causas de acumulação do passivo, a factualidade em causa não nos permite extrair qualquer juízo de censura sobre o comportamento dos insolventes: como é salientado pelo AI no relatório que apresentou em sede de PEAP, “o passivo existente, no montante global de cerca de 462.000,00 €, resultou do facto de os devedores terem assumido pessoalmente diversos créditos e garantias pessoais, nomeadamente como avalistas em alguns contratos de crédito junto das instituições financeiras, nomeadamente, ao nível do crédito à habitação, assumiram estas garantias pessoais a fim de verem aprovados os financiamentos em nome da empresa referida”.
A tal respeito distingue a doutrina entre sobreendividamento ativo e sobreendividamento passivo. Por sobreendividamento passivo entendem-se as situações em que a impossibilidade de pagamento decorre da verificação de um acontecimento anormal da vida do devedor, um acidente de vida ou infortúnio, que, seja através de uma diminuição do rendimento do devedor, seja através de um aumento das suas despesas, o impedem de continuar a cumprir as suas obrigações financeiras[11]. Fala-se de sobreendividamento ativo quando as dificuldades financeiras que comprometem o pagamento regular das obrigações resultam de um comportamento doloso ou negligente do devedor, em que este contribuiu de forma intencional ou por incúria para a situação de insolvência[12].
A situação em apreço corresponde a um dos muitos casos de endividamento de pessoa singular “forçado” na sequência da sua qualidade de gerente ou sócio de uma pessoa coletiva, endividamento derivado do comportamento habitual do sistema financeiro de exigir sistematicamente a prestação de fianças ou avais dos sócios e gerentes, e em que a insolvência da pessoa física surge por arrastamento da insolvência da pessoa coletiva. Ou seja, os elementos do processo levam-nos a enquadrar a insolvência dos insolventes como resultante de um “sobreendividamento passivo”, na medida em que a sua situação de insolvência se deveu a fatores, de certo modo, alheios à sua vontade – à situação de insolvência da sociedade de que ambos eram trabalhadores e o insolvente marido também sócio, que os levou à situação de desemprego e de endividamento resultante dos avais por este prestados à C... e à P..., relativamente a livranças subscritas por aquela sociedade.
Já quanto à diminuição do ativo temos que os insolventes, a 5 de maio de 2016 – numa altura em que havia sido já declarada a insolvência da sociedade/”devedora principal” (a 23 de outubro de 2015), relativamente aos créditos de que são titulares a C... e a P..., e em que se encontrava pendente contra si uma execução instaurada por esta –, procederam à transmissão do único imóvel de que eram proprietários, e que se encontrava livre de qualquer ónus e encargos, à sociedade T..., Inc., sem que aleguem ter aproveitado para proceder, com o respetivo produto (se é que o houve) ao abatimento do respetivo passivo.
Atentar-se-á ainda em que tal venda ocorreu menos de dois anos antes da sua apresentação ao PEAP (cujo pedido deu entrada em tribunal a 25 de janeiro de 2018), pelo que se nos afigura que tal ato será inclusive suscetível de resolução por parte do Administrador de Insolvência (AI)[13].
Na sequência de tal venda o património dos insolventes ficou diminuído do respetivo valor, diminuição esse que não é afetada pelo facto, invocado a seu favor pelos Apelantes, de tal imóvel se encontrar então não sujeito a qualquer ónus ou encargo (antes pelo contrário, o desaparecimento de um bem não onerado representa uma perda ainda maior para a generalidade dos credores, do que se sobre o mesmo incidisse alguma hipoteca, caso em que responderia preferencialmente perante o credor hipotecário).
Por outro lado, quando se encontrava pendente o PEAP por si interposto, os insolventes receberam, no dia 25 de maio cerca de 2018, a quantia de 83.000 € no âmbito do processo de insolvência da referida sociedade, por créditos laborais aí reclamados e reconhecidos, sem que, mais uma vez, os insolventes tenham aproveitado pelo menos uma parte de tais créditos para abatimento do seu passivo.
Como tal, e independente da questão de saber se, quando, cerca de 8 meses depois, foram notificados pelo AI, para procederem ao depósito de tais quantias, se encontravam, ou não, obrigados à sua entrega no processo de insolvência e se encontravam abrangidas por qualquer impenhorabilidade relativa, o certo é que na altura, os insolventes não só não procederam à entrega de qualquer valor, como nada vieram dizer aos autos.
Concluindo, temos por indiscutível que os insolventes assumiram comportamentos que se relevaram prejudiciais para a massa insolvente – atos estes cometidos dentro do intervalo temporal dos três anos anteriores à insolvência –, acarretando uma diminuição da garantia patrimonial dos credores e contribuindo, assim, para o agravamento da sua situação de insolvência.

A apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, e confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela massa insolvente.    

                                                                Coimbra, 22 de junho de 2020


[1] Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de origem.
[2] Cfr., Paulo Mota Pinto, segundo o qual, “a boa fé dever-se-ia presumir quando a insuficiência patrimonial resultasse de doença grave ou prolongada, acidente ou outro evento fortuito ou imprevisto, de modificação imprevisível da situação laboral, de alteração significativa do agregado familiar ou das suas condições de existência, ou de exploração, pelo credor, da situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter da  contraparte” –“Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade”, III Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina 2015, p.177.
[3] Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade falam a tal propósito do sobreendividamento ativo – quando o devedor contribui ativamente para se colocar em situação de impossibilidade de pagamento, por exemplo, não planeando os compromissos assumidos –, e de sobreendividamento passivo – casos em que essa impossibilidade de cumprimento resulta da ocorrência de circunstancias imprevistas como o divórcio, o desemprego, a morte ou uma doença (os chamados “acidentes de vida), que determinam um aumento de despesas excecional ou uma quebra de rendimento habitual do devedor – “Regular o Sobreendividamento”, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete da Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, p.82.
[4] Cfr., Matilde Cuena Casas, “Regularization, aclaration y armonizaión de la legislation concursal” (1ªedition, 1 janeiro 2018), p.3.
[5] Gonçalo Gama Lobo, “Exoneração do passivo restante e causas de indeferimento liminar do despacho inicial”, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Coord. Catarina Serra, Almedina 2014, p.259.
[6] Gonçalo Gama Lobo, artigo citado, p.261.
[7] Catarina Serra e Maria Leitão Marques, dando como ex. do primeiro o norte-americano e, em certa medida o inglês, e integrando o segundo, a Alemanha e a Áustria – Regular o sobreendividamento”, in “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o Anteprojecto do Código”, Ministério da Justiça – Gabinete da Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, p. 94-95, nota (5).
[8] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, artigo e local citados, pág. 94.
[9] Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código da Insolvência, “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça, durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
[10] Quanto à exigência de tais pressupostos no modelo do fresh start, cfr., Lectícia Marques, “Fresh Start: a exoneração do passivo restante ou uma nova oportunidade concedida a pessoas singulares?”, in repositório-aberto.up.pt de L.Marques 2009, p. 7.
[11] Catarina Frade dá como exemplos de sobreendividamento passivo, por diminuição do rendimento do devedor, os casos de perda de emprego pelo devedor ou por alguém do seu agregado familiar, de deterioração das condições laborais, como a redução das horas de trabalho suplementar, perda de subsídios, morte de alguém que contribuía financeiramente para o agregado, de um divórcio, de uma incapacidade por acidente ou doença. Como agravamento da situação financeira derivado de um aumento das despesas dá como exemplo o nascimento de um filho, a entrada de um idoso no agregado familiar, gastos em medicamentos e terapias em caso de doença ou invalidez, ou até gastos com um casamento – Sobreendividamento e Soluções Extrajudiciais e Mediação de Dívidas”, I Congresso de Direito da Insolvência”, Coordenação Catarina Serra, Almedina 2013, p.13. Inúmeros são ainda os casos de endividamento de pessoa singular forçado na sequência da sua qualidade de gerente ou sócio de uma pessoa coletiva, endividamento derivado do comportamento habitual do sistema financeiro de exigir sistematicamente a prestação de fianças ou avais dos sócios e gerentes, e em que a insolvência da pessoa física surge por arrastamento da insolvência da pessoa coletiva.
[12] Cfr., Catarina Frade, segundo a qual, seja porque o devedor sabia que não poderia pagar nem tinha intenção de o fazer, seja porque fez uma gestão imprudente do seu orçamento, a situação de rutura financeira tem causa direta e imediata na vontade e no comportamento do próprio sobreendividado e não uma causa exterior – artigo e obra citados, p. 13.
[13] A situação em apreço – insolvência declarada na sequência da não aprovação do PER –  suscita a questão da determinação da data que releva como correspondendo ao “inicio de processo de insolvência, para efeitos de determinação de quais os atos resolúveis para a massa, nos termos dos arts. 120º e 121º. A insolvência por apresentação é facultada, não só ao devedor que se encontre em situação de insolvência, mas também àquele que se encontre em situação de insolvência iminente (artigo 4º, nº3 CIRE). Por sua vez, o processo especial de revitalização destina-se aquele que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou sem situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação (artigo 17º-A, nº1 CIRE). Assim sendo, quando o devedor se encontre tal situação de insolvência iminente oferecem-se ao devedor dois procedimentos distintos, o da sua apresentação à insolvência ou a sua apresentação a um PER. Como tal, afigura-se-nos que em tais casos, a data que releva para efeitos de contagem do prazo de dois anos será a da apresentação ao PER.