Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
980/09.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO JESUS
Descritores: SERVIDÃO
PRÉDIO
USUFRUTO
LEGITIMIDADE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
CADUCIDADE
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1282º, 1460º, 1475º E 1480º DO C. CIV, ; 381º, Nº 1, CPC.
Sumário: I – O artº 1460º, nº 1, do C. Civ. trata de saber se, e em que termos, podem ser constituídas pelo proprietário e pelo usufrutuário servidões relativas ao prédio em regime de usufruto – tal normativo tem o alcance de equiparar, quanto às servidões activas, os poderes do usufrutuário aos do proprietário a quem não são retirados os poderes inerentes ao seu direito de propriedade.

II – Da análise de tal normativo resulta que se o proprietário pode constituir servidões activas no prédio usufruído por terceiro, também as pode defender.

III – Sempre que é lesada a forma ou substância do bem, sem atingir os poderes de que goza o usufrutuário, como está em causa apenas o direito do proprietário, só ele tem direito de demandar e ser indemnizado pelos danos causados.

IV – Se, porém, a acção de terceiro atingir simultaneamente os direitos do proprietário e do usufrutuário, da conjugação do disposto nos artºs 1475º e 1480º do C. Civ., resulta que em primeira linha será ao proprietário que competirá legitimidade para defender o bem de qualquer acto que possa prejudicar o seu exercício.

V – Na providência cautelar não especificada, relativamente ao direito que corre o perigo de lesão grave e dificilmente reparável, pede-se ao tribunal apenas uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança, pois que na acção principal o requerente terá de fazer a prova strito sensu da existência do direito acautelado, mas quanto ao periculum in mora deve usar-se um critério mais rigoroso na apreciação dos seus factos integradores.

VI – Para efeitos do decretamento de providência cautelar não especificada a que alude o nº 1 do artº 381º do CPC, a lei não estabelece um critério de aferição da gravidade da lesão, mas no caso de conflito entre direitos de personalidade e direitos patrimoniais, deve reconhecer-se, em regra, prevalência aos primeiros.

VII – Impedir na totalidade, e não apenas condicionar ou limitar, o exercício do direito de servidão de passagem, dessa forma prejudicando a exploração de um terreno agrícola, deve ser considerado uma lesão “grave”.

VIII – A lesão do direito ao aquecimento dos residentes numa habitação no decurso das estações frias é instrumental de um verdadeiro direito à qualidade de vida e mesmo do direito à saúde, e a lesão da saúde é, por natureza, uma lesão grave insusceptível de uma reparação completa.

IX – A caducidade do artº 1282º do C. Civ. não é de conhecimento oficioso.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I— RELATÓRIO


A...., residente ...., intentou o presente procedimento cautelar não especificado contra B..... e marido C...., D...., por si e em representação do seu filho menor E.... e F... e mulher G....., todos residentes em Queluz, pedindo:

a) Se reconheça que o requerente é dono e legítimo possuidor do prédio que identifica no artº 1º da petição;

b) Se ordene a restituição da posse da faixa de terreno que constitui o leito da servidão de passagem do seu prédio para a via pública, da qual foi esbulhado, por forma a que o requerente tenha livre acesso ao seu prédio a pé e de carro, com a sua consequente desobstrução, devendo, para tanto, ser ordenada a demolição e remoção dos muros nela construídos de modo a permitir a passagem do requerido e, por último, ordenar a remoção do portão em ferro colocado junto à via pública, caso não seja entregue uma cópia da chave do mesmo portão ao requerente.

Para fundamentar tal pretensão, alega, em síntese, que é dono de um prédio urbano que identifica, o qual lhe foi doado por seus pais, mediante escritura pública.

Nas traseiras da referida casa existe um pátio, currais e arrecadações, que não tem comunicação directa com a via pública e cujo acesso sempre foi feito pelo logradouro do prédio dos 1ºs e 2ºs requeridos, que identifica, por um trilho que, iniciando-se junto à via pública, seguia até um portão de madeira muito antigo, que dava acesso ao pátio do requerente, numa extensão de cerca de 15/25m e com uma largura inicial de 2,5m, ficando a casa de habitação dos requeridos a norte dessa passagem.

Acontece que entre os anos de 2002 e 2004, os requeridos transformaram uma velha adega existente a sul da passagem em causa numa casa de habitação e, de lá para cá, têm vindo através de actos sucessivos primeiro a reduzir o leito da passagem, depois a dificultar o respectivo acesso, até que, em Abril de 2008, em toda a largura da passagem, atrás dos portões (o da rua e o que dá acesso ao pátio do requerente) acabaram por construir um muro em blocos de cimento que, definitivamente bloqueou a passagem do requerente pela referida faixa de terreno, impedindo o mesmo de agricultar o terreno, de armazenar lenha no pátio para o seu aquecimento ou sequer de dali retirar os bens que ali estão colocados.

Acontece que o requerente que reside com seu pai, de idade avançada e fisicamente debilitado, necessita de armazenar lenha com vista a enfrentar o rigor do Inverno não dispondo de outro tipo de aquecimento e está impedido de o fazer, sendo que dela necessita uma vez que gastou toda a que tinha armazenada, assim estando fundamentado o recurso ao presente procedimento cautelar.

Citados, os requeridos deduziram oposição na qual alegam a falta de capacidade judiciária do requerente por ter proposto sózinho e sem o consentimento da esposa esta providência, a ilegitimidade passiva dos 3ºs requeridos que nada têm a ver com a situação em litígio, limitando-se a fazer alguns recados para os demais requeridos, a ilegitimidade activa do requerente pois que em conformidade com o art. 1460º do Código Civil cabia ao usufrutuário a legitimidade para intentar a presente providência.

Mais alegam os requeridos ser falso tudo o que é alegado na petição inicial, pretendendo o requerente apropriar-se do terreno dos requeridos ali levando a cabo vários actos destrutivos, e, não sendo o requerente dono do que quer que seja, também não tem o direito de passar em qualquer faixa de terreno ou direito a qualquer servidão, devendo, ao invés, ser condenado como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor dos requeridos.

Procedeu-se à audiência no início da qual o requerente respondeu à matéria de excepção alegada pelos requeridos, e produzida a prova oferecida veio a ser proferida decisão que concluiu pela capacidade judiciária e legitimidade do requerente, legitimidade dos 3ºs requeridos, e julgou procedente a providencia requerida: “reconhecendo-se que o requerente é dono e legítimo possuidor do prédio que identifica no artº 1º da petição, se ordena a restituição provisória da posse da faixa de terreno que constitui o leito da servidão de passagem o seu prédio para a via pública por forma a que o requerente tenha livre acesso ao seu prédio a pé e de carro, com a sua consequente desobstrução, devendo, para tanto, ser demolidos e removidos os muros nela construídos de modo a permitir a passagem do requerido e ordenando-se a remoção do portão em ferro colocado junto à via pública, caso não seja entregue uma cópia da chave do mesmo portão ao requerente. ”.

É desta decisão que vem interposta a presente apelação pelos requeridos que concluem da seguinte forma as suas alegações:

[……………………………………………………………………….]

Não houve contra- alegações.

            Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.



            É pelo teor das conclusões dos recorrentes que se afere o âmbito do recurso, à parte as questões de conhecimento oficioso (arts. 684º nº3 e 685º-A, nº 2 do CPC), e nelas suscitam-se as seguintes questões:

            a) Alteração da matéria de facto;

            b) Se o requerente tem falta de capacidade judiciária;

            c) Se o requerente tem legitimidade;

            d) Se está verificado o requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável;

            e) Se o prejuízo resultante da providência excede o dano que com ela se quis evitar;

            f) Se se verifica a caducidade do art. 1282º do Código Civil.




II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Mostram-se provados os seguintes factos:

[…………………………………………………………………………]

DE DIREITO

A) Alteração das respostas à matéria de facto

[………………………………………………………………………….]

B) Se o requerente tem falta de capacidade judiciária

[………………………………………………………………………….]

C) Se o requerente tem legitimidade

Invocam também os recorrentes que quem tem legitimidade, porque tem o direito de sequela, é o usufrutuário e não o recorrido, daí que careça este nu proprietário de legitimidade para requerer a providência, apontando como suporte legal o disposto no art. 1460º do Código Civil. E isto, porquanto a doação dos imóveis ao requerente foi feita com reserva do seu usufruto para os doadores, os pais.

Tal como observado na decisão impugnada, é ininteligível a menção ao art. 1460º do Código Civil dado que os autos se reportam a uma servidão activa (em proveito do prédio usufruído), e aquele normativo tem precisamente o alcance de equiparar, quanto a estas servidões, os poderes do usufrutuário aos do proprietário a quem não são retirados os poderes inerentes ao seu direito de propriedade.

De facto, estabelece o seu nº1 que “Relativamente à constituição de servidões activas, o usufrutuário goza dos mesmos direitos do proprietário, mas não lhe é lícito constituir encargos que ultrapassem a duração do usufruto”.

Trata este normativo de saber se, e em que termos, podem ser constituídas pelo proprietário e pelo usufrutuário servidões relativas ao prédio em regime de usufruto.

Quanto às servidões activas, caso versado nos autos, não sofre contestação a faculdade de poderem ser constituídas pelo proprietário, com ou sem consentimento do usufrutuário. “Desde que elas se destinam a valorizar o prédio e o seu exercício nem sequer pode naturalmente ser imposto ao usufrutuário, nenhuma razão haveria para, com fundamento no usufruto, cercear nesse ponto os direitos normais do proprietário.”[1].

Até porque, da constituição dessas servidões pelo nu proprietário em benefício do prédio aproveitará o usufrutuário (art. 1449º do Código Civil), como naturalmente resulta da inseparabilidade existente entre a servidão e o prédio a que ela pertence (art. 1545º, nº 1 do Código Civil).

Aquele nº1 equipara precisamente quanto às servidões activas os poderes do usufrutuário àquele direito do proprietário, pois que “além de se destinarem a valorizar o prédio, as servidões nenhum inconveniente trazem ao proprietário da raiz, que a todo o tempo, aliás, findo o usufruto, pode renunciar a elas (art. 1476º, 1, alín. e))[2].

No restante, dispõe quanto às servidões passivas (sobre o prédio usufruído em proveito de prédio alheio), mas esse não é o objecto da providência e deste recurso.

Logo, da análise deste normativo resulta que se o proprietário as pode constituir também as pode defender.

Sempre que é lesada a forma ou substância do bem, sem atingir os poderes de que goza o usufrutuário, como está em causa apenas o direito do proprietário, só ele tem direito de demandar e ser indemnizado pelos danos causados.

Mas quando acontece, e será a situação normal, de a acção de terceiro atingir simultâneamente os direitos do proprietário e do usufrutuário, quem pode reagir, então, nesta situação, contra o lesante?

Em princípio, só o proprietário. É o que resulta da conjugação do disposto nos arts. 1475º e 1480º do Código Civil.

Assim, uma das obrigações do usufrutuário é precisamente a de “avisar o proprietário de qualquer facto de terceiro, de que tenha notícia, sempre que ele possa lesar os direitos do proprietário; se não o fizer responde pelos danos que este venha a sofrer” (art.1475º).

E escrevem Pires de Lima e Antunes Varela em anotação a este artigo: “embora o usufrutuário seja livre de exercer ou não os poderes que decorrem do uso, fruição e administração da coisa, no que concerne zona dos seus interesses, já o mesmo não sucede na parte em que estão em causa os interesses do proprietário[3].

Aliás, isto mesmo é conforme ao carácter real da servidão e ao já mencionado princípio da inseparabilidade das servidões dos prédios a que pertencem. Naturalmente que em primeira linha será ao titular do prédio dominante que competirá legitimidade para a defender de qualquer acto que possa prejudicar o seu exercício.

Acresce que a posse exercida pelo usufrutuário é uma posse em nome alheio, em nome do proprietário, conforme resulta do disposto nos arts. 1252º, 1253º, al. a) e 1264º do Código Civil[4].

De quanto fica dito resulta não merecer qualquer censura o despacho recorrido.

D) Se está verificado o requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável

Na conclusão D) referem os apelantes que não estão verificados, os pressupostos e requisitos que permitem a instauração da presente providência, mormente quanto ao risco sério e grave de violação de um direito, nem sequer a sentença recorrida a eles faz menção e define.

Nos termos do preceituado no artigo 381º do CPC “1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.

     2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor”.

É pacífico o entendimento, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, que para ser decretada uma providência cautelar não especificada são necessários, além do preenchimento da condição relativa à subsidiariedade, dado que só pode ser utilizada se ao caso não competir uma providência nominada, vários pressupostos: a existência provável de um direito; o fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito do requerente; a adequação da providência concretamente requerida à efectividade do direito ameaçado; o excesso considerável do dano que se pretende evitar com a providência sobre o prejuízo resultante do seu decretamento (arts. 381º, nºs 1 e 3 e 387º, nºs 1 e 2 do CPC)[5].

Com o recurso às providências cautelares, de acordo com o art. 381º do CPC, se visa obstar a que a demora na tutela de certo direito cause lesão grave ou dificilmente reparável desse direito.

A providência cautelar não especificada está sujeita, além do interesse processual, a dois pressupostos específicos, através dos quais se objectivam os fundamentos da necessidade da composição provisória: o periculum in mora e o fumus boni iuris[6].

A finalidade específica da providência é evitar o dano proveniente da demora da tutela da situação jurídica, isto é, obviar ao periculum in mora. Se este faltar, ou seja, se o requerente da providência não se encontrar na eminência de sofrer qualquer lesão ou dano – no caso da providência não especificada, se o direito requerente não se encontrar pelo menos na eminência de sofrer uma lesão grave e dificilmente reparável – falta a necessidade da composição provisória e a providência não pode ser decretada.

A gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer acção; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito[7].

Tem, pois, de ocorrer prova que leve à formação de um juízo de certeza sobre a natureza excessiva do periculum in mora, ou, pelo menos, usar-se um critério mais rigoroso na apreciação dos seus factos integradores.

A mesma celeridade na prossecução da finalidade específica da providência cautelar, contudo, já se satisfaz com uma análise sumária da situação de facto (summario cognitio).

Consequência directa desta summario cognitio é o grau de prova que é suficiente para a demonstração da situação jurídica que se pretende acautelar ou tutelar provisoriamente. A providência cautelar não exige uma prova stricto sensu, mas apenas uma prova sumária do direito ameaçado, ou seja, a probabilidade séria da existência do direito alegado (arts. 384º nº 3 e 387º nº 1, do CPC). Numa palavra: basta um fumus boni iuris.

No caso da providência cautelar não especificada, relativamente ao direito que corre o perigo de lesão grave e dificilmente reparável, pede-se ao tribunal apenas uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança. Na acção principal, aí sim, o requerente terá de fazer a prova stricto sensu da existência do direito acautelado.

Regressando ao periculum in mora, o legislador condicionou a tutela antecipada ou conservatória à prova do aludido fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito do requerente.

Note-se que não basta um qualquer receio, subjectivo ou irreflectido, tem de ser um receio fundado, isto é, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.

Do mesmo modo, não é toda e qualquer lesão que previsivelmente ocorra que justifica o decretamento de uma providência, ou melhor, não é suficiente que a lesão seja grave assim como o não é a sua absoluta ou ao menos difícil reparabilidade: a tutela cautelar só se justifica se a lesão, para além de – objectivamente - grave, for, do mesmo passo, pelo menos, dificilmente reparável[8].

Não diz a lei o que deve entender-se por lesão grave e irreparável. Mas é intuitivo que deve ser mensurada pela repercussão que tenha na esfera jurídica do interessado, pela natureza do bem jurídico atingido, pela possibilidade da sua indemnização específica do dano ou apenas por compensação, etc.[9].

No caso em apreciação, e com eventual interesse no que a este requisito diz respeito, apenas se poderão invocar os factos indiciariamente provados acima descritos nos nºs 35 a 39 do respectivo elenco.

O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável pode surpreender-se sobretudo nas circunstâncias de o requerente necessitar de preparar o terreno para os trabalhos agrícolas, transportar e armazenar lenha nas traseiras da casa de habitação, para o seu aquecimento e do seu pai com quem vive, pessoa de idade avançada, não dispondo a casa onde residem de outro tipo de aquecimento que não seja através de queima de lenha.

Na decisão recorrida valorizaram-se os factos indiciariamente provados nestes termos: “lhe causará prejuízo grave, uma vez que, pelo menos, está impedido de retirar dos anexos os bens que ali tem guardados de maior dimensão e de ali armazenar lenha (armazenamento esse que não pode fazer noutro local uma vez que o prédio deita directamente para a via pública) ou levar a cabo o cultivo do terreno que tem nas traseiras do seu imóvel, de outra forma que não seja à mão, sendo certo que tal prejuízo será tanto maior quanto é consabido o tempo normal de duração de uma acção declarativa que definitivamente consagre o seu direito, condenando os requeridos a reconhecê-lo”.

Concorda-se, no essencial, com este juízo, ainda assim parco.

Só por si, o facto de os requeridos/recorrentes obstarem a que o requerente aceda à faixa de terreno, utilizada como passagem, e por aí ao pátio e terreno agrícola existente nas traseiras do seu prédio, de qualquer forma que não seja a pé, impedindo de todo, e não apenas cerceando ou limitando, o exercício do seu direito de servidão, no confronto com o conteúdo e extensão do direito violado, pode ser considerado uma lesão “grave”, uma vez que é todo o direito que fica não exercitável.”[10]

Mas para quem não atribua a este argumento inquestionável evidência, de tais lesões ao direito do requerente (ao direito de servidão) é indiscutivelmente grave, sobretudo, a que atinge a necessidade de assegurar o aquecimento e conforto do requerente e seu pai, particularmente nas estações frias como o Inverno que decorre, por natureza irreparável.

Os danos materiais são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva, mas o mesmo não acontece com os danos imateriais por natureza irreparáveis ou, pelo menos, de difícil reparação. No caso, não é um qualquer ressarcimento indemnizatório posterior e tardio que reporá o bem estar e a qualidade de vida na habitação a que o requerente tinha direito e se viu privado, perdeu, e se esgotaram no momento em que eram exigíveis.

 Por outro lado, no caso de conflito entre direitos de personalidade e, por exemplo, direitos patrimoniais, deve, naturalmente, reconhecer-se, em regra, prevalência aos primeiros: os direitos referidos a bens das pessoas devem levar a melhor sobre os direitos referidos a coisas corpóreas.

 Mas referem ainda os recorrentes que para a procedência da providência tem de se estar perante a “eminência de lesão grave e irreparável, o que não é manifestamente o caso…à data da instauração do procedimento, a alegada lesão já estava consumada”.

Certo que nesta providência o requisito do justo receio pressupõe que a ofensa se não acha ainda consumada, que os actos susceptíveis de produzir a lesão devem encontrar-se em potencialidade e não realizados, visam factos futuros e não passados, pois que a providência se destina a evitar o prejuízo e não a repará-lo, sob pena de não acautelar o efeito útil da acção[11].

Mas a lesão já efectuada pode constituir fundamento de justo receio de outras e, assim, basear o pedido das providências adequadas para evitar outras idênticas e futuras. Isto é, nada obsta a que relativamente a lesões continuadas e que persistam, como é o caso, seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de actos lesivos.

Ora, neste âmbito, os factos provados mostram que a obstrução da passagem pelos requeridos com a edificação dos muros e a colocação do portão em ferro continua a produzir efeitos que se prolongam no tempo, agravando o estado de afectação e insatisfação do requerente, pelo que preenchido se encontra este requisito.

E) Se o prejuízo resultante da providência excede o dano que com ela se quis evitar

Argumentam ainda os apelantes que a sentença recorrida não valorou ou considerou se o prejuízo resultante da providência excede ou não o dano que com ela se quer evitar, e isso porque terão que proceder à demolição da sua habitação.

Invocação completamente desmesurada e estranha à decisão proferida.

Os recorrentes não se estão a ater ao decidido pois que se estivessem facilmente se aperceberiam que o que o recorrido pediu e o tribunal concedeu foi tão só a demolição e remoção dos muros construídos no leito da servidão de passagem e a remoção do portão em ferro colocado junto à via pública, e mesmo esta só no caso de os recorrentes não entregarem uma cópia da chave desse portão ao requerente como o fizeram anteriormente. Portanto, não foi pedida nem ordenada a demolição da casa de habitação dos recorridos ou de alguma das suas paredes.

Mas, estatui o artigo 387º do CPC que: “1. A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.

 2. A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.

Exige-se, assim, que haja adequação da requerida providência à prevenção da lesão, respeitando-se a regra da proporcionalidade entre o dano resultante do decretamento da providência e o dano a evitar, de modo a obstar a decisões certas ou formalmente correctas mas injustas pela gravidade das consequências do deferimento da providência.

Deve, assim, o juiz colocar na balança dos interesses, a par dos prejuízos que o requerente pretende evitar, também aqueles que, porventura, a decisão possa determinar na esfera jurídica do requerido

Quer isto dizer que se torna necessário averiguar se a situação de conflito emerge de direitos iguais ou da mesma espécie ou se, ao invés, esses direitos são desiguais e de espécie diferente. Caso em que a colisão de direitos tem de ser resolvida à luz dos princípios gerais do direito substantivo, onde rege o estabelecido no art. 335º do Código Civil.

A Exma Juiza do tribunal a quo, no tocante a este ponto, fundamentou de facto de forma conclusiva que: “Por outro lado, dos autos não consta que o deferimento da providência cause aos requeridos prejuízo superior aos requeridos, assim se encontrando preenchido o requisito negativo contido no nº 3 do artº 381º [12] do CPC a este tipo de providência”.

Como acima já se evidenciou, o requerente, não só mas também, visa assegurar um direito imaterial, o direito a dispor e fruir na sua habitação do aquecimento necessário no decurso das estações frias, e o único que a mesma lhe permite é o da lareira, direito integrante do direito à qualidade de vida, e mesmo do direito à saúde (art. 64º da Constituição da República)[13], componente essencial do direito à vida, que como direito de personalidade que é, tem a sua protecção consagrada no art. 70º nº 1 do Código Civil.

E os direitos de personalidade são direitos subjectivos absolutos que visam tutelar a integridade física e moral do indivíduo e que impõem a todos o dever de se absterem de praticar actos que ofendam a personalidade alheia[14].

Para além de que a lesão da saúde é, por natureza, uma lesão grave insusceptível de uma reparação completa, também que, como direito absoluto que é, não possa ser limitado pelo direito de propriedade do vizinho, os requeridos/recorrentes, particularmente se, como é o caso, a passagem pelo prédio destes se fará numa curta distância que não excede os 20 metros, pontualmente e em muito escasso número de vezes ao longo do ano, como é regra, para o necessário abastecimento e armazenagem de lenha [15].

Também, acrescendo a este direito imaterial, o prejuízo material que advém ao requerente de não poder preparar o terreno para os trabalhos agrícolas, se apresenta de dimensão, em termos de gravidade, bem superior ao pouco relevante prejuízo económico causado pelo derrube e remoção de dois muros em blocos de cimento na estrita medida da largura dos portões que tapam, o mais largo dos quais com 2,50 m.

Sem dúvida que o dano que do decretamento da providência resulta para o direito dos requeridos não excede o prejuízo que com ela se pretende evitar.

F) Se se verifica a caducidade do art. 1282º do Código Civil

Por fim, a questão que os apelantes suscitam na alegação de recurso de que à data da instauração do procedimento já estava ultrapassado em muito o prazo de caducidade de um ano consignado no art. 1282º[16] do Código Civil é uma questão que não foi por eles levantada na oposição que deduziram, ou seja, não foi colocada ao Exmº Juíz do Tribunal recorrido, e, por isso, não foi objecto de análise na sentença final.

 Ora, é conhecida a orientação seguida na doutrina e na jurisprudência de que os recursos visam reapreciar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, não podendo tratar-se nos recursos de questões que não tenham sido suscitadas perante o Tribunal recorrido[17].

Enquanto circunstância impeditiva, pela sua própria natureza, esta excepção peremptória atípica não é de conhecimento oficioso, pois não estamos perante matéria excluída da disponibilidade das partes, necessitando, para ser eficaz, de ser invocada pelo interessado, o que não sucedeu (cfr. arts. 303º e 333º, n.º 2, ambos do Código Civil), encontrando-se sempre dependente da vontade do interessado.

No caso dos autos, os recorrentes não satisfizeram esses ónus de alegação.

Improcede, por conseguinte, a censura atinente a esta questão.

Concluindo, encontram-se, portanto, reunidos os requisitos para aplicação da medida cautelar não especificada adequada à situação, até que o litígio seja definitivamente resolvido na acção principal.

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.



Resta sumariar cumprindo o determinado pelo nº 7 do art. 713º do CPC:

1) O documento particular, mesmo que esteja reconhecida a sua autoria, apenas pode ser invocado como prova plena no âmbito das relações entre declaratário e declarante, mas já nas relações com terceiros o documento particular constitui tão só elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal;

2) Sempre que é lesada a forma ou substância do bem, sem atingir os poderes de que goza o usufrutuário, como está em causa apenas o direito do proprietário, só ele tem direito de demandar e ser indemnizado pelos danos causados;

3) Se, porém, a acção de terceiro atingir simultâneamente os direitos do proprietário e do usufrutuário, da conjugação do disposto nos arts. 1475º e 1480º do Código Civil, resulta que em primeira linha será ao proprietário que competirá legitimidade para defender o bem de qualquer acto que possa prejudicar o seu exercício;

4) Na providência cautelar não especificada, relativamente ao direito que corre o perigo de lesão grave e dificilmente reparável, pede-se ao tribunal apenas uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança, pois que na acção principal o requerente terá de fazer a prova stricto sensu da existência do direito acautelado, mas quanto ao periculum in mora deve usar-se um critério mais rigoroso na apreciação dos seus factos integradores;

5) Para efeitos do decretamento de providência cautelar não especificada a que alude o n.º 1 do art. 381º do CPC a lei não estabelece um critério de aferição da gravidade da lesão, mas no caso de conflito entre direitos de personalidade e direitos patrimoniais, deve reconhecer-se, em regra, prevalência aos primeiros;

6) Impedir na totalidade, e não apenas condicionar ou limitar, o exercício do direito de servidão de passagem, dessa forma prejudicando a exploração de um terreno agrícola, deve ser considerado uma lesão “grave”;

7) A lesão do direito ao aquecimento dos residentes numa habitação no decurso das estações frias é instrumental de um verdadeiro direito à qualidade de vida e mesmo do direito à saúde, e a lesão da saúde é, por natureza, uma lesão grave insusceptível de uma reparação completa;

8) A caducidade do art. 1282º do Código Civil não é de conhecimento oficioso.


III-DECISÃO


Pelo exposto acordam em julgar improcedente o recurso confirmando a decisão impugnada.

Custas do recurso pelos apelantes.


[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2º ed., pág. 500.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 501.
[3] Obra citada, pág. 530.
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., págs. 9 e 29.
[5] Moitinho de Almeida em Providências Cautelares Não Especificadas, pág. 18/19; Abrantes Geraldes em Temas da Reforma do Proc. Civil, 1998, vol. III, pág. 55 e segs; entre muitos outros os Acs. desta Relação de 16/12/03, Proc. 3394/03, de  22/11/05, Proc. nº 3025/05, e de 13/03/07, Proc.nº 1795/05.0TBPMS-C1, no ITIJ.
[6] Cf. Abrantes Geraldes, loc. cit., pág. 35.
[7] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, págs. 6 e 35.
[8] Abrantes Geraldes, loc.cit., pág. 83 e segs. e Ac. do STJ de 28.09.99, CJ, STJ, III, pág. 42.
[9] Moitinho de Almeida , ob. cit., pág. 22; Acs. da RP de 22.09.09, Proc nº 982/09.7TBPNF.P1, e de 19.12.07, Proc nº 2393/07-2 no ITIJ.
[10] Neste mesmo sentido considerou o Acórdão desta Relação de 22/11/05 já citado.
[11] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, 23 a 26; Anselmo de Castro, ob. cit., I, 130 e 131; Ac. RC de 29/04/08, Proc. 513/07.3TBSRT.C1, no ITIJ.
[12] Há manifesto lapso na indicação deste normativo.
[13] Recorde-se que o requerente vive com o pai, pessoa de idade avançada.
[14] Cf. Rodrigues Bastos em Das Relações Jurídicas, I, pág. 20.
[15] Referiu a testemunha Adelino Leal Marques, fornecedor do requerente, que ia 2 a 3 vezes por ano.
[16] Os apelantes mencionam o art. 1822º seguramente por lapso.
[17] Cfr., na doutrina, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, pág. 266, e, na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 21/1/93, na C.J., Ano 1º, tomo 1, pág. 71, de 19/10/04, Proc. nº 04B2638, e de 7/04/05, Proc. nº 05B175, no ITIJ.