Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1638/07.0TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RAMO VIDA
QUESTIONÁRIO MÉDICO
OMISSÃO DE INFORMAÇÕES
NEXO DE CAUSALIDADE
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 12/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 429º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I – A “nulidade” prevista no artº 429º do C. Comercial é uma “anulabilidade”, conforme constitui entendimento unânime da jurisprudência.

II – A ocultação ou transmissão ambígua da realidade consabidamente relevante à seguradora, no quadro da relacionação entre a informação recolhida e a determinação dos factores probabilisticamente relevantes para a aferição actuarial do risco, situa-se nos preliminares do contrato e no processo de formação deste, segundo os ditames da boa fé (artº 227º, nº 1, CC).

III – A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora na recolha de informações, enquanto elemento induzido pelo contraente beneficiário no decurso do procedimento preliminar conducente à celebração do contrato, afecta a lógica existencial do próprio contrato, pondo em causa os próprios fundamentos da decisão de contratar pela seguradora ou os termos contratuais em que essa decisão assentou e se concretizou.

IV – Esta questão entronca com a do nexo causal entre o elemento omitido ou ambiguamente transmitido à seguradora e a verificação do evento desencadeador da prestação contratual desta.

V – Porém, o artº 429º do C. Comercial não continha qualquer afloramento dessa ideia de causalidade como pressuposto da anulabilidade do contrato de seguro, nas situações em que o segurado ou beneficiário prestaram à seguradora, no processo de aquisição de informação conducente à celebração do contrato com aquele conteúdo, informações inexactas ou ambíguas que sejam relevantes para a aferição do risco suportado por essa seguradora.

VI – O nexo causal, para efeitos de determinação da integração da facti species do artº 429º do C. Comercial, estabelece-se conjugando três elementos: (1) o representado pelo significado do que não se transmitiu à seguradora (o facto inexacto ou omitido); (2) o correspondente ao conteúdo do risco antevisto pela seguradora na aceitação do contrato ou na aceitação deste com determinado conteúdo (designadamente com o conteúdo que se expressou na contrapartida representada pelo prémio); (3) e, finalmente, o elemento correspondente à caracterização do evento que se pretende seja assumido como concretização do sinistro.

VII – Assim, haverá causalidade relevante para este efeito (para o efeito de anular o contrato), quando a informação sonegada retirou à fixação quantitativa daquele risco a ponderação de elementos relevantes para a definição probabilística da incidência hipotética do facto assumido como desencadeador da cobertura do seguro.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 24 de Setembro de 2007[1], A...( A. e no contexto deste recurso Apelada), demandou B...– Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A. (R. e Apelada na presente apelação) invocando ser mãe e herdeira – presentemente a única – do seu filho C..., falecido em 10 de Janeiro de 2007, vítima de peritonite bacteriana devida a cirrose hepática.

Ora, havia este último contraído, em Dezembro de 2003, um empréstimo no valor de €23.000,00 junto da entidade bancária Banco D... (não interveniente nesta acção), operação bancária à qual foi associado, como reforço de garantia exigida pelo Banco, uma apólice (a nº …) de “Seguro de Vida Associado a Créditotomada pelo indicado Banco, da qual foi beneficiário/segurado o referido de cuius da A., sendo a entidade seguradora a R.[2] [3].

            Assim, tendo ocorrido, nos termos indicados, a morte do beneficiário do seguro (do filho da A.), correspondendo tal circunstância ao evento desencadeador da cobertura, e recusando-se a R. (a seguradora) a assumir o pagamento das prestações do empréstimo em dívida à data do decesso desse beneficiário, formula a A. o seguinte pedido:


“[…]
[D]eve esta acção ser julgada procedente e provada, condenando-se a R. a pagar ao Banco D... o valor do empréstimo ainda em dívida ou a entregar à A. tal valor e a reembolsá-la do pagamento de todas as prestações que ela pagou a partir de 10/01/2007, a liquidar em execução de sentença […].
[…]”
            [transcrição de fls. 4]

            1.1. Contestou a R. a fls. 30/40, pugnando pela improcedência da acção, pedindo que o contrato de seguro em causa seja considerado nulo, em virtude de o beneficiário C... ter omitido, ao tempo da subscrição do respectivo contrato (em 10/12/2003), nas informações médicas prestadas à seguradora, a pré-existência de doença (hepatite B), evidenciada pela seropositividade ao vírus H-B (o vírus da hepatite B) desde 1996 e pela, igualmente pré-existente, adição a drogas – esta dependência, por si, consubstancia uma doença.

            1.1.1. Findos os articulados foi o processo saneado, fixados os factos desde logo assentes e elaborada a base instrutória, tudo como consta de fls. 80/82 vº.

            1.2. Realizou-se o julgamento documentado a fls. 223/227, tendo o Tribunal fixado, por referência à referida base instrutória, os factos provados (despacho de fls. 228/232). Seguidamente, foi proferida, consubstanciando o julgamento do processo na primeira instância, a Sentença de fls. 234/250corresponde esta à decisão objecto do presente recurso –, julgando a “[…] acção totalmente procedente [condenando] a R. a pagar ao Banco D... o valor do empréstimo ainda em dívida, e a reembolsar a A. das prestações pagas àquele Banco desde 10/01/2007, valores estes a apurar em incidente de liquidação de sentença” (transcrição de fls. 250).  

            1.3. Inconformada, interpôs a R. a presente apelação, adequadamente recebida pelo Tribunal a quo a fls. 258, tendo-a motivado a fls. 262/292, rematando tal peça processual com as seguintes conclusões:


“[…................................................................................]”

         A A./Apelada respondeu ao recurso a fls. 298/300, concluindo nos seguintes termos:


“[………………………………………………………….]”


II – Fundamentação


2. Encetando a apreciação da apelação, importa ter presente que as conclusões formuladas pela Apelante a rematar a respectiva motivação operaram a delimitação temática do objecto do recurso [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)].

Começando pelos factos, sublinha-se que a Apelante os não discute – rectius, não suscita a reapreciação destes por referência aos poderes de controlo desta instância previstos no artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC –, devendo o elenco fáctico fixado no Tribunal a quo ter-se por definitivamente estabelecido, nos exactos termos em que a Sentença recorrida, conjugando o teor dos despachos de fls. 81 e 82 e vº, indicou no seu texto o que chamou de “fundamentação de facto”. É esse elenco que aqui reproduzimos visando propiciar uma compreensão autónoma da situação através da simples leitura do texto do presente Acórdão:


“[……………………………………………………………..]”

            2.1. Relatado o iter da acção até à presente instância de recurso, e transcritos os factos a considerar, importa apreciar a crítica dirigida pela Apelante à Sentença recorrida, quanto à não consideração da anulabilidade do contrato de seguro aqui em causa, nos termos que a Seguradora/Apelante entende resultarem do preenchimento da facti species do artigo 429º do Código Comercial (CCom)[4].

            Sublinha-se que esta Relação, num Acórdão recente (no Acórdão de 21/09/2010, elaborado pelo ora relator, proferido no processo nº 337/08.0TBALB.C1[5]), tratou de uma questão substancialmente idêntica à que aqui se coloca, confirmando uma decisão de primeira instância antagónica da em causa no presente recurso. A ratio decidendi desse Acórdão, transponível, como se disse, para a presente situação, capta-se através do teor do respectivo sumário, nos trechos que, por pertinência aqui se transcrevem:


“[…]
II – Um contrato de seguro cuja concreta incidência (o particular risco assumido pela seguradora) se traduz na garantia de satisfação ao Banco (tomador do seguro e beneficiário) do valor subsistente de um crédito à habitação por este Banco concedido, corresponde, fundamentalmente, a um “segura de vida” do mutuário visando a satisfação da respectiva dívida (é usualmente designado por apólice “Vida Risco – Crédito à Habitação);
III – O mutuário do crédito à habitação concedido pelo Banco tomador corresponde a um interessado segurado, participante no contrato que subscreve e para cujo processo de formação concorre.
IV – A questão do risco assumido pela seguradora, no quadro de um contrato deste tipo, tem na sua base um processo preliminar de recolha de informação pela seguradora, através do preenchimento de questionários pelo mutuário/segurado, destinando-se estes à aferição dos elementos relevantes para a decisão de contratar e para a repercussão probabilística do risco assumido pela seguradora na contrapartida representada pelo prémio;
V – A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora no processo de recolha de informação conducente à celebração do contrato, enquanto elemento induzido pelo próprio beneficiário ou por quem faz o seguro através da prestação activa ou omissiva de informações não conformes à realidade, conduz a que o negócio assente, face à seguradora, numa base falseada;
VI – Este desvalor acarreta a anulabilidade do contrato, no regime do Código Comercial, por aplicação, terminologicamente actualizada, do artigo 429º deste Diploma.
[…]”

            É este sentido decisório que aqui iremos reafirmar, com o consequente atendimento do recurso da Apelante, sublinhando-se apenas os traços característicos da presente situação que nos conduzem à conclusão de que os argumentos desenvolvidos nesse Acórdão de 21/09/2010 aqui valem por identidade de razão.

            2.1.1. Aí (no Acórdão de 21/09/2010) estava em causa, tal como aqui sucede, nos termos já explicitados na nota 5, o regime do contrato de seguro disciplinado no Código Comercial, nas disposições respeitantes a este contrato, entretanto revogadas pelo Decreto-Lei nº 72/2008 [a nova – e aqui inaplicável – Lei do Contrato de Seguro (LCS)]. Trata-se aqui, portanto, de interpretar e aplicar o corpo do artigo 429º do CCom: “[t]oda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.

            Correspondendo esta “nulidade”, verdadeiramente, como correctamente se indica na Sentença (seguindo, aliás, um entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência, resultando de uma leitura actualizada do Código Comercial, coevo do Código de Seabra, onde a distinção nulidade anulabilidade não era feita[6]), tratando-se esta “nulidade”, dizíamos, de uma anulabilidade, aqui feita actuar pela Apelante na contestação, e reconhecendo-se que a omissão pelo beneficiário, de cuius da A./Apelada, da referência à pré-existente (pré-existente à data da celebração do contrato de seguro) toxicodependência e seropositividade para H-B (vírus da hepatite B), configura uma declaração reticente[7], no mínimo, reportada a circunstâncias relevantes para o contrato de seguro, assente isto[8], dizíamos, importará situar esse comportamento do beneficiário face aos concretos deveres de informação e esclarecimento da seguradora que, em função da subscrição do contrato de seguro, lhe foram assinalados com base no texto do contrato e no princípio geral de actuação, nos preliminares do contrato e no processo de formação deste, segundo os ditames da boa fé [artigo 227º, nº 1 do Código Civil (CC)].

            Do texto do contrato, considerando como tal o seu suporte documental integral, correspondente, por um lado, à “proposta de adesão” de fls. 21/22, subscrita pelo beneficiário C..., que integra o chamado “questionário médico” e a “declaração” final, datada e assinada, e, por outro lado, às “condições gerais e especiais” de fls. 57/66[9], destes documentos que plasmam o conteúdo do contrato, dizíamos, resulta que o indicado beneficiário declarou – subscrevendo essa declaração – “[…] ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato […]” (fls. 22), sendo que destas constava (artigo 6º, 6.1. a)), a não cobertura pelo seguro no caso de doença pré-existente, intuindo-se como tal a já conhecida e não declarada toxicodependência e seropositividade H-B. Isto, sendo “doença”, para este efeito – e também desta definição contratual o beneficiário tomou conhecimento –, “[t]oda a alteração involuntária do estado de saúde da Pessoa Segura, não causada por acidente e susceptível de constatação médica objectiva, e que tenha sido objecto de um diagnóstico inequívoco ou que com suficiente grau de evidência se tenha revelado, em data anterior à da celebração do presente contrato, salvo o caso em que tenha havido comunicação formal à Seguradora, e aceitação por parte desta, mediante as condições que para o efeito tenham sido estabelecidas”.

            Ora, esta pré-existente e conhecida, pelo declarante/beneficiário (item 33 dos factos)[10], infecção pelo vírus da hepatite B, afectava à partida a decisão de contratar tomada pela R. Seguradora (ou de contratar com determinado conteúdo determinado pela aferição do risco envolvido), colocando-se assim em causa os pressupostos nos quais assentou essa decisão, sendo que este desvalor originário da relação contratual foi induzido pelo comportamento do beneficiário/de cuius ao omitir importantes elementos de informação sobre o seu verdadeiro estado de saúde. Daí que a realidade da formação deste contrato seja tão simples de descrever quanto isto: a seguradora assumiu, erradamente, como risco envolvido no contrato, em função do estado de saúde do beneficiário, o risco que corresponderia a uma pessoa não toxicodependente e sem patologias associadas à função hepática. Aliás, a simples ponderação da evolução conhecida do estado de saúde do beneficiário, posterior à celebração do contrato e que conduziu ao desfecho fatal, mais não representou, como adiante veremos (cfr. nota 22, infra e o texto para o qual esta remete), que a concretização do especial risco agravado representado pela pré-existência dos dados sonegados à partida.  

A este respeito acrescentar-se-á – e trata-se de um aspecto relevante completamente omitido na Sentença –, tendo presente a toxicodependência e o tratamento com metadona (que pressupõe prescrição médica), tudo situações que já se verificavam à data da celebração do contrato de seguro em 10 de Dezembro de 2003 (v. itens 25 e 33 dos factos), o mesmo sucedendo com a seropositividade ao vírus da hepatite B[11], tendo isto presente, dizíamos, logo a resposta negativa à primeira pergunta do questionário médico – “[j]á o aconselharam a consultar um médico [e] a submeter-se a algum tratamento médico […]?” –  nos aparece como desconforme à realidade ou, se preferirmos expressar eufemísticamente essa mesma realidade, ambígua e reticente no seu sentido, preenchendo tal resposta, só por si, a facti species do artigo 429º do CCom.

Esta circunstância (ocultação ou transmissão ambígua da realidade consabidamente relevante à seguradora), no quadro da relacionação entre a informação recolhida e a determinação dos factores probabilisticamente relevantes para a aferição actuarial do risco, é caracterizado do seguinte modo por Margarida Lima Rego:


“[…]
[A] probabilidade será normalmente a extrapolação de um juízo de frequência relativa, que pode ser meramente lógico-matemático (probabilidade a priori) ou resultar da análise estatística de uma pluralidade de casos análogos e independentes observados (probabilidade a posteriori). No mundo dos seguros, tal como no dia-a-dia, a grande maioria das vezes estaremos a lidar com esta última modalidade de juízos de probabilidade. Ora, numa como na outra, a análise do risco funciona com base na chamada lei dos grandes números – princípio geral de matemática, e mais especificamente da probabilidade e da estatística, segundo o qual a frequência de determinados resultados tende a estabilizar com o aumento do número de casos observados, aproximando-se cada vez mais dos valores previstos.
Dada a lei dos grandes números, a exposição do segurador ao risco – o grau de indeterminabilidade do resultado agregado do risco individual de todos os indivíduos por este segurados – é inferior à soma das exposições ao risco de todos eles – o grau de indeterminabilidade de cada um dos resultados individuais.
[…]
[O] prémio a pagar em cada caso concreto será calculado, ou deverá sê-lo, tanto quanto possível, em função da probabilidade de ocorrência do sinistro e do grau de intensidade das suas possíveis consequências patrimoniais negativas – ou seja, em função do risco individual ou elementar medido na perspectiva neutra do segurador. […] Poderá dizer-se que as seguradoras procuram recorrer, sucessivamente, a duas práticas diversas, na avaliação do risco: (i) a definição rigorosa dos grupos de risco em que se baseiam; (ii) o ajustamento do coeficiente aplicado dentro de cada grupo de acordo com as circunstâncias particulares de cada caso.
[…]”[12] (sublinhado acrescentado)

            Assim se compreende o carácter fulcral, na lógica de funcionamento de um contrato de seguro, da informação obtida pela seguradora do beneficiário.

A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora nessa recolha de informação, enquanto elemento induzido pelo contraente beneficiário no decurso do procedimento preliminar conducente à celebração do contrato, apresenta-se-nos como óbvia, afectando a lógica existencial do próprio contrato, pondo em causa os próprios fundamentos da decisão de contratar pela seguradora ou os termos contratuais em que essa decisão assentou e se concretizou. O negócio alicerça-se, nestes casos, relativamente à seguradora, numa base falseada, porque não correspondente à realidade. Torna-se intuitivo, com efeito, que segurar o risco de vida, mediante a contrapartida de determinado prémio correspondente a esse risco, de uma pessoa que não esteja afectada por toxicodependência e por hepatite B (como o beneficiário sabia estar), é substancialmente diferente (em termos de relacionação prémio-risco) que segurar alguém afectado por estas patologias. Só um enviesamento argumentativo falseador das probabilidades nos poderá conduzir à afirmação contrária. O cálculo da relevância probabilística do risco pela seguradora foi, enfim, falseado, exprimindo uma errada percepção da realidade. 

É este o sentido do artigo 429º do CCom, já diversas vezes referido. Com efeito – e citamos de novo Margarida Lima Rego – “[cria-se] na esfera de todo o candidato a tomador do seguro – bem como na do beneficiário ou terceiro-segurado – o ónus de partilhar com o segurador toda a informação ao seu dispor sobre as circunstâncias relevantes para [o] juízo de risco”, sendo que “[e]sta regra visa proporcionar ao segurador os meios necessários à medição do risco […]”[13] (v. no regime actual o artigo 24º, nº 1 da LCS: “[o] tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”)[14].

            2.1.2. Esta questão entronca (cfr. o ponto VII do sumário do aresto transcrito na anterior nota 15) com a do nexo causal entre o elemento omitido ou ambiguamente transmitido à seguradora e a verificação do evento desencadeador da prestação contratual desta (esse evento correspondeu aqui à morte do beneficiário em resultado de uma cirrose hepática[15]).

            Tenha-se presente, desde logo, como já se indicou, estar aqui em causa o regime estabelecido no artigo 429º do CCom, sendo que este, porventura diversamente do que presentemente sucede (mas sem aplicação nesta situação) com o nº 4 do artigo 26º da LCS[16], não continha (não contém neste caso) qualquer afloramento dessa ideia de causalidade, como pressuposto da anulabilidade do contrato de seguro, nas situações em que o segurado ou beneficiário prestaram à seguradora, no processo de aquisição de informação conducente à celebração do contrato com aquele conteúdo, informações inexactas ou ambíguas que sejam relevantes para a aferição do risco suportado por essa seguradora[17].

            Todavia, mesmo que outro fosse o entendimento quanto ao que identificámos como questão do nexo causal, face ao artigo 429º do CCom, como parece entender a Sentença apelada, a negação desse nexo aparece-nos notoriamente mal equacionada no processo argumentativo da decisão apelada[18]. Esqueceu-se aí, com efeito, que a existência desse nexo se terá de aferir pelo relacionamento da “causa” – do que se refere como “causa” reportada à ocorrência do sinistro – com o conteúdo do risco assumido pela seguradora, enquanto círculo circunstancial de eventos prováveis face a determinados dados de facto previamente transmitidos à seguradora. O que neste caso se terá que relacionar com uma determinada “causa” é o conteúdo de um determinado risco assumido pela seguradora, referindo a esse conteúdo o que sucedeu, estabelecendo com ele (com o risco) uma conexão operante: se “o que sucedeu” integrava o “conteúdo” em função do qual foi definido e aceite um determinado risco, o contrato é válido e, em função disso, a cobertura pela seguradora desencadear-se-á. Diversamente, se “o que sucedeu” não foi integrado pela seguradora na aferição probabilística desse risco (porque foi ocultado ou ambiguamente transmitido), ou seja, não foi tido em conta na determinação do conteúdo do risco assumido em função da contrapartida representada pelo prémio, o contrato perde a base na qual assentou, apresentando-se como fruto de uma vontade viciada e, por isso, “nulo” com o específico sentido que o estabelecimento deste desvalor assume no artigo 429º do CCom.

            A este respeito, vale a pena ter presente a essência de um seguro, expressando-se esta na sua própria definição. Corresponde um seguro (e segue-se aqui a formulação de Margarida Lima Rego) “[ao] contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto[19]. Ora, constituindo o risco “o elemento nuclear do contrato de seguro”, referindo-se ele à “possibilidade [da ocorrência] de um evento incerto”, expressando a ideia de “possibilidade”, matematicamente, uma “probabilidade situada entre 0 (impossibilidade) e 1 (certeza)”[20], é em torno dos dados de facto com base nos quais se situou essa probabilidade dentro destes parâmetros – se definiu aquele risco – que haverá que determinar aquilo que aqui se qualifica “como nexo causal”.

Este – o nexo causal – estabelece-se, pois, para efeito de determinação da integração da facti species do artigo 429º do CCom, conjugando três elementos: (1) o representado pelo significado do que não se transmitiu à seguradora (o facto inexacto ou omitido); (2) o correspondente ao conteúdo do risco antevisto pela seguradora na aceitação do contrato ou na aceitação deste com determinado conteúdo (designadamente com o conteúdo que se expressou na contrapartida representada pelo prémio); (3) e, finalmente, o elemento correspondente à caracterização do evento que se pretende seja assumido como concretização do sinistro. Assim, haverá causalidade relevante para este efeito (para o efeito de anular o contrato), quando a informação sonegada retirou à fixação quantitativa daquele risco a ponderação de elementos relevantes para a definição probabilística da incidência hipotética do facto assumido como desencadeador da cobertura do seguro.

Ora, neste caso, tendo ocorrido o sinistro expresso na morte do beneficiário – e centramo-nos aqui na omissão da referência à pré-existente patologia hepática expressa na seropositividade H-B –, num quadro causal (cirrose hepática) que a seguradora não deixaria de associar e de repercutir no risco assumido, em termos de potenciação (aumento) das probabilidades de verificação deste, esse défice da informação prestada apresenta-se-nos como causal relativamente à ocorrência do sinistro.

Com efeito, esta asserção – a efectiva repercussão no risco de morte por cirrose hepática de um portador do vírus da hepatite B, através de um incremento desse risco – pode ser facilmente documentada, tomando por base os factos provados (sequencialmente, os que se expressam nos itens 24, 25, 26, 27, 28, 30, 31, 32 e 33 do elenco destes supra transcrito, representando essa sequência, sempre, a concretização de um risco introduzido pelo factor precedente). Com efeito, pode pesquisar-se, relativamente à associação destes factores, em termos acessíveis à generalidade das pessoas (e também a este Tribunal), as concretas incidências da existência de uma infecção primária pelo vírus da hepatite B (o dado aqui primordialmente omitido)[21].

Todavia, não deixará de se sublinhar, seguindo de perto o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2008, indicado na nota 15 supra, que o art. 429.º do CCom não exige o nexo de causalidade entre a morte e a doença não declarada à seguradora, apenas exigindo que o segurado (o beneficiário) soubesse, quando prestou as declarações, que sofria de doença susceptível de influenciar a decisão da seguradora em contratar[22]. Como acertadamente afirmou a primeira instância (v. nota 11, supra), o beneficiário sabia-se toxicodependente e conhecia a sua seropositividade H-B. Ora, expressando qualquer um destes factores uma doença, entendemos a sua ocultação – ou o comportamento reticente quanto à transmissão desse dado, como o qualifica a Sentença –, enquanto incumprimento de um dever de informação prévio, claramente estabelecido pelas condições gerais do contrato – condições conhecidas pelo beneficiário – com o consequente preenchimento da facti species do corpo do artigo 429º do CCom.  

2.2. Valem estas considerações pela afirmação da relevância da anulabilidade do seguro prevista nesse artigo 429º, invocada que foi esta pela seguradora, com o consequente afastamento da cobertura do sinistro ao abrigo do contrato, nos termos correspondentes ao pedido aqui formulado pela A.[23]. Tal pedido improcede, pois, procedendo assim a apelação, com a consequentemente absolvição da R. do pedido.

É o que, decidindo o recurso, nos resta determinar.


III – Decisão


            3. Assim, na procedência do recurso, revogando-se a Sentença apelada, decide-se julgar a acção improcedente, absolvendo-se a R. B... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A. do pedido formulado pela A. A....

            Custas em ambas as instâncias a cargo da A./Apelada.


Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] A indicação desta data evidencia que se aplica neste caso o regime processual recursório anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a). 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, qualquer disposição do Código de Processo Civil citada no presente Acórdão pressuporá a versão anterior ao DL 303/2007.
Ainda no que diz respeito a problemas de aplicação da lei no tempo suscitados por esta acção, tendo presente referir-se esta às vicissitudes de um contrato de seguro celebrado anteriormente ao Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, sendo o sinistro aqui discutido (a morte do beneficiário C..., em 10/01/2007) também anterior à entrada em vigor do mesmo Diploma, aplica-se aqui o regime do contrato de seguro anterior a este: fundamentalmente o Código Comercial (artigo 425º e seguintes, v. nota 5, infra). 
[2] A incidência deste seguro é caracterizada pela A. nos seguintes termos:
“[…]

13º
O seguro do C... […] previa que, em caso de morte, a R. pagaria ao Banco o montante ainda em dívida.
[…]”
                [transcrição da petição inicial a fls. 2] 
[3] Adiantando desde já um elemento respeitante ao enquadramento jurídico da situação, poderemos configurar o titular do empréstimo (e a aqui A. enquanto sua sucessora) como um beneficiário do seguro (a A. funciona aqui como terceira beneficiária, porque o segurado é aqui o próprio tomador, o D...: é o risco deste não ser reembolsado do valor do empréstimo que a seguradora assume e é ao Banco que as prestações em dívida são satisfeitas pela seguradora).
Estamos, pois, pelo menos no que diz respeito à A., perante uma exacta ilustração da relevância da qualificação do contrato de seguro – de determinados contratos de seguro, para sermos exactos – como contratos a favor de terceiro. Esta qualificação tem um importante esteio na nossa jurisprudência e doutrina [v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/1989 (Meneres Pimentel), publicado no BMJ 385,563 e, enquanto exemplo mais recente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/01/2009 (José Augusto Ramos), proferido no processo nº 5127/2008-1, disponível na base de jurisprudência do ITIJ nos campos indicados ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f8b69bb8694303bd; na doutrina v., por todos, o estudo de Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra, 2010, onde a questão é abordada nos seguintes trechos: pp. 25/26, 735/777 e 869/870].
[4] Tendo em conta a data da verificação do “sinistro” (do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato: aqui a morte do de cuios da A.), 10/01/2007, aplica-se na presente situação o regime do contrato de seguro constante do Código Comercial (e especificamente no Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho) e não o “Regime Jurídico do Contrato de Seguro” (Lei do Contrato de Seguro, abreviadamente LCS) aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, dado estar em causa um evento ocorrido antes da entrada em vigor deste último Diploma (v. os respectivos artigos 2º, nº 2, 6º nº 1, alínea e) e 7º; cfr. Pedro Romano Martinez, Leonor Cunha Torres, Arnaldo da Costa Oliveira, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado, José Vasques, José Alves de Brito, Lei do Contrato de Seguro anotada, Coimbra, 2009, p. 26).
[5] Disponível no sítio do ITIJ na pesquisa através destes campos ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3300e48a0bd6b9c8802577b5004d9cea
[6] V. Arnaldo Costa Oliveira, anotando o artigo 26º da nova LCS, in Lei do Contrato de Seguro anotada, cit. na nota 5, supra, pp. 123/125.
Na jurisprudência cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2008 (Moreira Camilo) e 02/12/2008 (Sebastião Povoas), respectivamente nos processos nºs 08A1373 e 08A3737, disponíveis no sítio do ITIJ nos campos aqui indicados, ou, directamente, nos seguintes endereços: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9a6cb1cb8d09ee8 e http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/29cf04af1756119c8.
[7] No sentido de ambígua, pois, num contexto significativo particular como o que se colocou na preparação da adesão ao seguro (o de recolher elementos projectivos sobre o estado de saúde de alguém) omite ou silencia algo que se devia ou podia dizer, em função da compreensão do contexto significativo em causa.
[8] E isto emerge, quanto às circunstâncias fácticas omitidas, do teor dos itens 1, 9, 24, 25, 26 e 33 do elenco fáctico acima transcrito.
[9] Tratam-se de documentos aceites por ambas as partes, que os não impugnaram, cuja valoração directa era possível na sentença, tal como aqui o é:
“[…]
A aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material. Na anterior decisão sobre a matéria de facto [a prevista no artigo 653º do CPC, aqui correspondente ao despacho de fls. 228/232], foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador […]. Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção dum meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante […], independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase de condensação […]. Ao fazê-lo, o juiz examina criticamente as provas, mas de modo diferente de como fez o julgador da matéria de facto: não se trata já de fazer jogar a convicção formada pelo meio de prova, mas de verificar atentamente se existiram os factos em que se baseia a presunção legal (lato sensu) e delimitá-los com exactidão para seguidamente aplicar a norma de direito probatório. Nomeadamente, o documento, o objecto da declaração confessória e o articulado de resposta no seu conjunto hão-de ser interpretados para se determinar o âmbito concreto dos factos abrangidos pela sua força probatória.” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 2º, 2º ed., Coimbra, 2008, p. 677).
[10] Diz-se – e cremos que acertadamente – na fundamentação da resposta que originou o item 33, “[decorrer] das regras da lógica e normalidade que quem (adulto não incapaz) efectua um tratamento o conhece, pelo que o falecido C... necessariamente conhecia que se submetia a tratamento com metadona. É igualmente consentâneo com as regras da experiência comum a comunicação ao doente do resultado das análises que revelam doenças, razão pela qual conclui o Tribunal que o C..., desde 1996, data em que lhe foi diagnosticada seropositividade para hepatite B, sabia que era portador da mesma” (transcrição de fls. 230).
[11] A seropositividade expressa a qualidade ou o estado de ter soro sanguíneo positivo no teste de determinado patogéneo, neste caso do vírus H-B (v. http://en.wiktionary.org/wiki/seropositivity); “[seropositive] a person whose blood has been tested for a specific disease […] showing a serological reaction indicating the presence of the disease” (http://www.thefreedictionary.com/seropositivity).
[12] Contrato de Seguro…, cit. na nota 4, pp. 136/139.
[13] Contrato de Seguro…, cit., p. 103.
[14] Esta mesma asserção, referida ao aqui aplicável artigo 429º do CCom, não deixa de nos aparecer, frequentemente, na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça, citando-se aqui (dado o sugestivo paralelismo com muitos dos traços marcantes do presente caso) o sumário do Acórdão do STJ de 27/05/2008, antes referido na nota 7, supra:
“[…]
I – O art. 429.º do CCom visa tutelar predominantemente interesses particulares, pelo que, de acordo com uma interpretação correctiva e teleológica, é de concluir que se pretendeu aí estabelecer um regime de anulabilidade e não uma nulidade, sendo aquele regime que melhor defende o interesse público de ressarcimento dos lesados, alheios às relações contratuais entre a seguradora e o seu segurado.
II – A sanção da anulabilidade do contrato não é aqui mais do que a previsão de um caso de erro como vício de vontade. Efectivamente, incidindo sobre a própria formação do contrato, as declarações falsas ou as omissões relevantes impedem a formação da vontade real da contraparte (a seguradora), dado que essa formação assenta em factos ou circunstâncias ignorados, por não revelados ou deficientemente revelados.
III – Daí que não seja necessário que as declarações ou omissões influam efectivamente sobre a celebração ou as condições contratuais fixadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato.
IV – É elemento decisivo para a celebração do contrato o questionário apresentado ao potencial segurado, na medida em que se presume que não são feitas aí perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato a celebrar.
V – Ao assinar o questionário já preenchido, a falecida mulher e mãe dos Autores subscreveu o conteúdo das respectivas respostas, independentemente de não ter sido ela a proceder ao seu preenchimento e não ter tido conhecimento do conteúdo das respostas, até porque, antes da data e da aposição da sua assinatura, constam declarações respeitantes à não ocultação de factos relevantes para a decisão de contratar por parte da seguradora e à exactidão e sinceridade das mesmas.
VI – Sofrendo a falecida segurada, aquando da celebração do contrato, de hipertensão arterial, tinha, pois, o dever de informar, com verdade, a seguradora da doença de que vinha padecendo.
VII – Não o tendo feito, e sabendo-se que o elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao segurado, não releva que não se tenha demonstrado que ela faleceu em consequência directa dessa doença, pois o art. 429.º do CCom não exige tal nexo de causalidade. Apenas exige que o segurado soubesse, quando prestou as declarações, que sofria de doença susceptível de influenciar a decisão da seguradora em contratar.

[…]”
[15] V. a entrada “Cirrhosis” na Wikipedia: ”Cirrhosis […] is a consequence of chronic liver disease characterized by replacement of liver tissue by fibrosis, scar tissue and regenerative nodules (lumps that occur as a result of a process in which damaged tissue is regenerated leading to loss of liver function […]” (http://en.wikipedia.org/wiki/Cirrhosis).
[16] Que estabelece, relativamente a “omissões e inexactidões negligentes”:
Artigo 26º
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4 – Se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes:
a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente;
b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.
[17] V., por todos, Arnaldo Costa Oliveira, anotando o artigo 26º da nova LCS, in Lei do Contrato de Seguro anotada, cit. na nota 5, supra, pp. 131/135, particularmente nota 198: “[a]o nível da jurisprudência portuguesa registe-se a natural larga predominância do entendimento no sentido da não-causalidade, aliás em interpretação de lei especificamente seguradora (artigo 429º CCom, precisamente) que, reconheça-se, não oferece dúvidas” (p. 132).
[18] É sem base alguma que na Sentença se diz que “[…] não foi o risco não declarado que se concretizou no evento morte do falecido”, quando este faleceu de “cirrose hepática”, manifestada na sua fase terminal por hepatopatia e hepatite crónicas (v. os itens 1, 27 e 29 dos factos provados).
[19] Contrato de Seguro…, cit., p. 66.
[20] As citações são extraídas do mesmo Estudo de Margarida Lima Rego, pp. 69 e 70 (exclui-se do seguro o “0”, porque é impossível e não traduz, por isso, o assumir de um risco; exclui-se também o “1” porque também não traduz assumir um risco o que inevitavelmente vai acontecer).

[21] Utilizámos para suportar esta asserção, três artigos científicos cuja informação transmitida é de fácil compreensão por um leigo medianamente informado, todos eles disponíveis na internet e respeitantes à história natural das hepatites virais, que nos fornecem um quadro compreensivo da incidência neste caso da modelação de um risco acrescido através do dado médico aqui primordialmente omitido (referimo-nos ao aumento do risco de cirrose hepática em portadores do vírus da hepatite B, com potenciação desse risco pela co-infecção B+C).

O primeiro destes Estudos incide precisamente sobre a questão central da hepatite B: Surakit Pungpadong, MD; Ray Kim, MD; John J. Poterucha, MD, “Natural History of Hepatitis B Virus Infection: An Update for Clinicians”, disponível em: Mayo Clin Proc., August 2007/82 (8): 967-975, www.mayoclinicproceedings.com.

O segundo Estudo refere-se à Hepatite C: Stephen L. Chen, Timoty R. Morgan, “The Natural History of Hepatitis C Virus (HCV) Infection”, disponível em: International Journal of Medical Sciences, ISSN 1449-1907, no endereço www.medsci.org, 2006 3 (2): 47-52.

E, finalmente, o terceiro Estudo refere-se à co-infecção B+C: Chi-Jen Chu, Shou-Dong Lee, “Hepatitis B Vírus/Hepatitis C Virus Coinfection: Epidemiology, Clinical Features, Viral Interactions and Treatment”, artigo publicado no Journal of Gastroentology and Hepatology, 2008, 23 (4), pp. 512/520, disponível em: http://www.medscape.com/viewarticle/575154.

Documentam estes textos (documentam para um leigo) que a infecção crónica com o vírus da hepatite B comporta, em si mesma, um risco aumentado de cirrose hepática, e que este risco é significativamente ampliado com a co-infecção B e C, sendo intuitivo que o factor primordial aqui pré-existente à celebração do contrato (a omitida infecção pelo vírus da hepatite B), constituía um elemento muito relevante para a aferição do risco pela seguradora. Neste caso, mais ainda, tendo em conta a toxicodependência, evidenciada pelo tratamento – cuja referência foi também omitida – por metadona.

Para compreensão desta posição – relevância da informação sonegada pelo beneficiário para a avaliação do risco coberto por um seguro de vida – deixa-se aqui transcrito o sumário do primeiro artigo:

“[…]

Hepatitis B virus (HBV) is a common viral pathogen that causes a substantial health burden worldwide. Significant progress has been made in the past few decades in understanding the natural history of HBV infection. A dynamic balance between viral replication and host immune response is pivotal to the pathogenesis of liver disease. In immunocompetent adults, most HBV infections spontaneously resolve. Those with chronic HBV may present in 1 of 4 phases of infection: (1) in a state of immune tolerance, (2) with hepatitis B e antigen (HBeAg)-positive chronic hepatitis, (3) as an inactive hepatitis B surface antigen carrier, or (4) with HBeAg-negative chronic hepatitis. Of these, HBeAg-positive and HBeAgnegative chronic hepatitis may progress to cirrhosis and its longterm sequelae including hepatic decompensation and hepatocellular carcinoma. Several prognostic factors, such as serum HBV DNA concentrations, HBeAg status, serum aminotransferases, and certain HBV genotypes, have been identified to predict longterm outcome. These data emphasize the importance of monitoring all patients with chronic HBV infection to identify candidates for and select optimal timing of antiviral treatment, to recognize those at risk of complications, and to implement surveillance for early detection of hepatocellular carcinoma.

[…]”

É certo que a simples infecção com o vírus H-B poderia ser “resolvida espontaneamente”, como se diz no sumário transcrito, mas o risco de evolução fatal (mais ainda se introduzíssemos o dado de facto, igualmente ocultado, que está por detrás do tratamento com metadona) é superior a quem não apresenta essa infecção primária e, nessa medida, constitui um dado relevante para a aferição do risco envolvido. Tal dado foi aqui, pura e simplesmente, omitido, face a uma proposta contratual que deixava patente a relevância desse dado.
[22] Cfr. o recente Acórdão desta Relação de 16/11/2010 (Jaime Carlos Ferreira), proferido no proc. nº 2617/03.2TBAVR.C1, disponível no sítio do ITIJ nestes campos, ou, directamente em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/44b40e317ba1c32e802577ea0058d94a.
Lê-se no sumário deste:
[…]”
V - A sanção da invalidade (por nulidade ou anulabilidade) do contrato de seguro prevista no artigo 429º do CCom reporta-se à previsão de um caso de erro como vício de vontade – declarações falsas ou omissões relevantes –, incidindo sobre a própria formação do contrato, na medida em que impedem a formação da vontade real da seguradora, uma vez que tal formação se baseia em factos ou circunstâncias ignorados (que lhe foram omitidos ou escondidos), por não terem sido devidamente indicados pelo segurado, pelo que se entende que não é necessário que as declarações ou omissões tenham efectivamente influído na celebração do contrato de seguro ou relativamente às condições contratuais acordadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato por parte da seguradora.
VI - Donde também se dever entender que não existe nem se torna necessário que exista um nexo de causalidade entre a doença/hospitalização omitida e a razão da morte do segurado para que possa ter-se como verificada a invalidade do contrato de seguro, em caso de falsas ou incompletas declarações/informações prestadas pelo segurado ao contratar o seguro de vida.
VII - Para o efeito apenas se torna necessário que o segurado soubesse que sofria de alguma doença/esteve hospitalizado, o que seria susceptível de influenciar a seguradora quanto à aceitação do seguro, à data da outorga do contrato de seguro.
[…]”
 
[23] Subsiste – poderá colocar-se –, face à anulação do seguro, a questão do possível direito da A. à devolução dos prémios pagos (artigo 289º, nº 1 do CC – projecção retroactiva da invalidação do negócio). Essa questão não foi aqui colocada pela A. (cremos que esta o poderia ter feito subsidiariamente, à partida, face ao conhecimento, anterior à propositura da acção, das razões da recusa da R. em suportar o sinistro) e, como tal, permanece como questão em aberto, não abrangida por qualquer pronunciamento judicial, nada impedindo a sua ulterior discussão noutro processo, face à consolidação do sentido da decisão aqui adoptada.