Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
82/08.7TAOBR.CI
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ELEMENTOS DO TIPO
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 69º, 292º,Nº1, 348º,Nº1 DO CP; 311ºE 500º, Nº2 E 3 DO CPP.
Sumário: 1.0 preceito que regula a execução da proibição de conduzir, não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.
2.Resulta claramente da norma (artigo 69º, nº3 do CP e 500º, nº3 do CCP) que o legislador previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão.
3.Se o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução, tem como consequência a sua apreensão, parece-nos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega, contraria manifestamente o sentido da norma
4 No caso em análise, se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente.
5.Daí que se conclua que a cominação feita carece de suporte legal e, como tal bem andou o Mmº juiz ao não ter recebido a acusação, já que os factos descritos na acusação não integram o tipo legal da desobediência.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

Em processo comum singular da comarca do Baixo Vouga, Oliveira do Bairro – 1º Juízo de Instância Criminal, o Ministério Público deduziu acusação contra R…, imputando-lhe a prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º nº 1 b) CP, com base na seguinte facticidade:
“No âmbito do Processo Abreviado n.o…/06.3GBOBR, da Secção Única do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, foi o arguido, por sentença proferida em .../….2007 e transitada em julgado em …/….2007, condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria, pelo período de 6 (seis) meses.
Naquela decisão, notificada pessoalmente ao arguido em…/… .2007, foi o arguido advertido pela Meritíssima Juiz de que ficava obrigado a entregar a sua carta de condução, no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro ou em qualquer Posto Policial, no prazo de dez dias a contar da data do trânsito em julgado de tal decisão, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
Porém, não obstante tal advertência, o arguido não procedeu à entrega de qualquer título que o habilite a conduzir veículos motorizados, dentro do prazo fixado para o efeito, nem justificou por qualquer modo tal omissão.
Ao desrespeitar a obrigação de entrega da carta de condução no prazo que lhe fora fixado para o efeito, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, ignorando a advertência que lhe fora dirigida pela Meritíssima Juiz, não obstante saber que, ao proceder dessa forma, estava a desobedecer a uma ordem regularmente emanada de autoridade competente.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.”.
Remetidos os autos ao Sr. juiz, foi por este proferido despacho em que rejeitou a acusação, por manifestamente infundada, por entender que os factos descritos não constituem crime.
Por não se conformar com o despacho do Exmº Juiz, interpôs o MP o presente recurso.
Na respectiva motivação vêm formuladas as seguintes conclusões:
“1. Em sede destes autos, vinha o arguido acusado pela prática de um crime de desobediência, porquanto, no processo abreviado nº …/06.3GBÜBR, deste Tribunal, por sentença transitada em julgado em ../….2007 foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º, nº 1, do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses.
2. Naquela mesma decisão, da qual o arguido foi pessoalmente notificado em .. de… de 2005, foi mesmo advertido da obrigação de entregar a sua carta de condução, no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da sentença, neste Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro ou em qualquer posto policial, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência não o fazendo.
3. Contudo, o arguido não entregou o seu título de condução no prazo que lhe foi fixado, nem justificou tal omissão.
4. Com o trânsito em julgado da sentença dos autos de processo abreviado nº …/06.3GBOBR, consolidaram-se na Ordem Jurídica todos os efeitos penais dali decorrentes, nos termos do art. 467º, nº 1, do Código de Processo Penal.
5. Não devia o Tribunal considerar não ser legítima nem emanar de autoridade competente aquela cominação com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art. 348.°, nº 1, al. b), do Código Penal, pela falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.
6. O nº 4 do art. 5º do DL 2/98, de 03 de Janeiro, preceitua que, na falta de entrega da carta de condução, nos termos do nº 2 daquele artigo, e sem prejuízo pela punição por desobediência, a DGV procede à apreensão daquele título, pelo que o legislador parece admitir a cominação com a prática daquele crime em caso de falta de entrega da carta de condução.
7. Não será de efectuar uma interpretação minimalista do artigo 348°, nº 1, al. b) do Código Penal, pois, caso contrário estar-se-ia a esvaziar a norma nos casos em que a advertência é feita, como o foi na sentença condenatória proferida no processo abreviado nº …/03.7GBÜBR, a fim de garantir o cumprimento da pena acessória por parte do arguido e, nessa medida, protege a autonomia intencional do Estado de Direito.
8. O crime de desobediência consumou-se com a omissão do acto determinado, consubstanciada, in casu, com a falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.
9. Se se entender que não é legítimo ao Tribunal cominar a falta de entrega com a prática do crime de desobediência, e se o arguido recusasse a entrega da carta perante a autoridade policial, nos termos do art. 500º, nº 3, do Código de Processo Penal, não haveria quaisquer consequências para o incumprimento.
10. Com efeito, se o Tribunal não puder desde logo na sentença cominar com a prática de crime a falta de entrega da carta de condução, também a autoridade policial, num segundo momento que viesse a ocorrer e na sequência do art. 500º, nº 3, do Código de Processo Penal, não poderia cominar com tal crime a eventual e reiterada falta de entrega daquele documento por parte do arguido perante as autoridades policiais.
11. A falta de entrega voluntária da carta e não se logrando proceder à apreensão daquele documento nos termos do art. 500º, nº 3, do Código de Processo Penal, levaria à ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.
12. A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais, pois, a assim não ser, equivaleria a admitir a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse, ao deixar-se impune uma eventual falta ou recusa de entrega da carta.
13. A cominação com o crime de desobediência obsta à pretensão do arguido que pretenda subtrair-se ao cumprimento da pena acessória e reforça a confiança da comunidade na validade da norma penal violada.
14. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida por violar o disposto nos art.°s 9°, nºs 1 a 3, do Código Civil, artº 348°, nº 1, al. b), do Código Penal, o artº 467.°, nº 1, do Código de Processo Penal, e o art. 5º, nº 4, do DL 2/98, e ser recebida a acusação pela prática do crime de desobediência simples por que vinha acusado.”.
Respondeu o arguido defendendo o acerto da decisão recorrida.
Nesta Relação, A Exmª Procuradora-Geral Adjunto foi do parecer de que o recurso não merece provimento.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO


A questão suscitada no presente recurso traduz-se em saber se os factos constantes da acusação pública consubstanciam ou não um crime de desobediência, o que passa por aferir da legalidade da cominação feita pela Mmº juiz.
Sobre esta matéria tivemos já oportunidade de nos pronunciar no Acs. desta Relação proferidos nos Pºs 43/08.6 TAALB.C1 e 260/08.9/AAND.C1, de 22/10/2008 e 25/11/2009, respectivamente e, que por essa razão seguiremos de perto
Vejamos.
Consagra-se no artº 348º nº 1 CP:
“ Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”.
São pois requisitos de tal crime:
- a ordem ou mandado;
- a sua legalidade substancial e formal;
- a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
- a regularidade da sua transmissão ao destinatário;
- o conhecimento pelo agente dessa ordem.
Como diz Maia Gonçalves Código Penal Português Anotado, 18ª ed., pág. 1045. “ Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência.
A amplitude deste crime voltou a ser ponderada pela CRCP, na 35ª sessão. Para boa compreensão da amplitude actual da previsão aqui estabelecida, destacamos as seguintes passagens da discussão na CRCP “.... Para o Senhor Conselheiro Sousa e Brito torna-se no entanto necessário restringir o âmbito de aplicação do artigo, pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem. Justifica-se plenamente uma restrição àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena. Por outro lado entende que o mandato, por exemplo, deveria ter lugar com a cominação da pena. O Sr. Dr. Costa Andrade, concordando no plano dos princípios com o Sr. Conselheiro Sousa e Brito, frisou o facto de se operar uma alteração muito profunda, a ponto de desarmar a Administração Pública. O mesmo tipo de considerações teceu o Professor Figueiredo Dias (a solução da exigência da norma legal seria a melhor), mas há que ter consciência da Administração Pública que temos. A Comissão acordou na seguinte solução, de molde a afastar o arbítrio neste domínio e numa tentativa de clarificar o alcance da norma para o aplicador (texto actual) ”.
Ficou, portanto, clarificado que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número”.
Acontece porém que no caso dos autos, o preceito que regula a execução da proibição de conduzir, não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.
Com efeito estabelece-se no nº 2 do artº 500º CPP, que:
“ No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo”
E acrescenta o nº 3 do mesmo preceito que “ Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.
O regime de execução desta sanção consta igualmente do artº 69º nº 3 CP. Resulta assim claramente de tal norma que o legislador previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão.
Como escreve Cristina Líbano Monteiro Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág.354. “ Em definitivo: a al. b) existe tão só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal”.
Ora se o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução, tem como consequência a sua apreensão, parece-nos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega, contraria manifestamente o sentido da norma.
Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.
Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.
Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (art. 9.º C. Civil).
Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente.
Estando pois na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia a Mmª juiz, substituir-se ao legislador, fazendo a referida cominação.
Daí que se conclua que a cominação feita carece de suporte legal e, como tal bem andou o Mmº juiz ao não ter recebido a acusação, já que os factos descritos na acusação não integram o tipo legal da desobediência
Improcede por isso o recurso.

DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)
Coimbr