Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
176/02.2PATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO
VIOLAÇÃO GROSSEIRA DOS DEVERES
Data do Acordão: 02/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 50.º E 55.º E 56.º, N.º 1 DO C.P..
Sumário: I. - A jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem perfilhando o entendimento de que a apreciação sobre a falta de cumprimento dos deveres impostos em sentença como condicionantes da suspensão da execução da pena deve ser cuidada e criteriosa, de tal sorte que apenas uma falta grosseira determina a revogação.
II. – Numa situação de violação dolosa e grosseira do dever condicionante da suspensão da execução da pena, subsumindo-se directa e inequivocamente à previsão do disposto na al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal, apenas se justificaria a aplicação de uma das medidas do art. 55º do Código Penal se o juiz estivesse obrigado a percorrer todas as medidas previstas no art. 55º do Código Penal antes de determinar a revogação da suspensão nos termos do art. 56º nº 1 do Código Penal.
III. – De modo que se a situação for tão grave que permita concluir que deixaram de se verificar os pressupostos em que se baseou a suspensão da execução da pena, tem o juiz o poder/dever de determinar a revogação da suspensão nos termos do art. 56º do Código Penal.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.

Por despacho de 22.9.2008 foi determinada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido … e determinado, em conformidade o cumprimento efectivo da pena de três anos de prisão em que foi condenado.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:   

1.º - O A não cumpriu efectivamente as obrigações de pagamento dos montantes em que foi condenado a pagar a título de indemnização à assistente e ao Centro Hospitalar do Médio Tejo, S.A. por manifesta dificuldade económica e financeira como atesta o relatório de fls .....

2.º - O A já pretendeu pagar há vários meses à assistente o montante de € 1.000,00 (mil euros).

3.º - Contudo esta recusou tal pagamento bem como a celebração de um acordo de pagamento dos restantes 4.000€ acrescidos dos juros vencidos através de prestações mensais iguais e sucessivas iguais de 1000 cada.

4.º - Contudo só a partir de Abril passado é que o A reuniu condições para prestar tal pagamento, visto que até esta data não dispunha de meios financeiros para tal.

5.º - O A encontra-se a pagar um crédito para aquisição de habitação própria para fazer face às necessidades de habitação do seu agregado familiar.

6.º - O A tem uma responsabilidade mensal relativa à aquisição de uma viatura por necessidade de locomoção do seu agregado familiar.

7.º - Depois de pagar encargos mensais regulares e indispensáveis a uma exigência minimamente condigna ao Agregado Familiar o A disponibiliza apenas o montante mensal de cerca de 100€ (cem euros).

8.º - O A não conseguiu ainda formalizar o acordo de pagamento com a assistente, porque este a tal se recusou.

9.º - O A também já efectuou diligências no sentido de proceder ao pagamento ao Hospital de Torres Novas, protestando juntar oportunamente comprovativo de tal pagamento.

10.º - O A ao tentar celebrar o acordo de pagamento com a assistente relativamente à totalidade do montante a que estava obrigado a pagar-lhe, e ao tentar pagar-lhe o montante de 1.000,00€ (mil euros), não violou grosseiramente as regras de conduta que lhe foram impostos pelo douto acórdão condenatório.

11.º - O A só não cumpriu com as suas obrigações de pagamento, tempestivamente, porque não dispunha de condições financeiras para tal.

12.º - Não foi culposamente que o A não cumpriu tempestivamente as suas obrigações de indemnização da assistente e do Hospital.

13.º - O incumprimento das obrigações de pagamento do A, não foi culposo nos termos do disposto do Art° 55 do C. Penal.

14.º - O A. não violou assim "culposamente" os seus deveres.

15.º - Mesmo que a violação tivesse sido culposa, o Tribunal poderia dar cumprimento ao disposto nas alíneas a), b) e c) do Art°. 55.° do C. Penal.

16.º - O comportamento do A. não integra a violação grosseira dos seus deveres, pelo que não há lugar à aplicação o disposto no n. ° 1 do Art. 56.° do C.P. Penal.

17.º - Não podendo consequentemente revogar-se a suspensão da execução da pena aplicada.

18.º - O comportamento do A constitui incumprimento tempestivo das obrigações de indemnização fixadas no acórdão condenatório.

19.º - Havendo lugar apenas à aplicação das medidas a que se refere o Art° 55 do CP, nomeadamente das constantes nas alíneas a), b) e c).

TERMOS EM QUE

Deverá o Presente Recurso merecer provimento, revogando-se a douta decisão recorrida, impondo-se ao Arguido novos deveres ou regras de conduta, nomeadamente ordenando-se o cumprimento da obrigação de indemnização da A através de pagamento do montante de 1000€ (mil euros) acrescido do montante de 100€ (cem euros) mensais até integral pagamento do montante de 5000€ (cincos mil euros) acrescido dos juros vencido nos termos do decidido no acórdão recorrido.

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.

A assistente respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e concluindo:

1. O arguido não cumpriu as suas obrigações de pagamento dos montantes a que foi condenado a pagar a título de indemnização à assistente.

2. O mesmo invoca dificuldades económicas para o não cumprimento.

3. Indica um salário muito próximo de salário mínimo (6.000,00 € anual).

4. No entanto adquiriu habitação própria, embora sendo com o recurso ao crédito,

5. E adquiriu também uma viatura automóvel de marca BMW e de matrícula 00-00-PM.

6. Viatura essa considerada de luxo.

7. Produzindo um visível sinal exterior de riqueza.

8. E além disto requereu em 19.11.2006 e 19.03.2007 duas prorrogações do prazo de pagamento das obrigações de indemnização constantes do douto acórdão condenatório, que lhe foram concedidas por despachos de 27.11.2006 e 16.04.2007.

9. Permanecendo, até ao momento, em situação de incumprimento, apesar de todas as possibilidades de liquidar o montante indemnizatório que lhe foram concedidas.

Termos em que deve a douta decisão, ora recorrida ser mantida na íntegra, julgando-se improcedente por não provado o recurso interposto pela recorrente.

Assim se fará justiça.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e concluindo:

1. O juízo de prognose em que assentou a decisão do Tribunal colectivo em suspender a pena de prisão aplicada ao arguido falhou.

2. O arguido não cumpriu, no referido período de suspensão, as obrigações de pagamento dos montantes que foi condenado a pagar a título de indemnização à assistente e ao Centro Hospitalar do Médio Tejo S.A.

3. Esse incumprimento foi culposo, na medida em que o arguido tinha condições económicas para pagar e, não obstante, assumiu encargos que o colocaram em situação económica precária.

4. Desde logo adquiriu habitação própria, um veículo automóvel de marca BMW, um motociclo de alta cilindrada e outros bens, sempre com recurso ao crédito bancário, o que inviabilizou o pagamento à assistente da indemnização que lhe foi imposta.

5. O arguido não pagou o montante de € 73,47 ao Centro Hospitalar do Médio Tejo.

6. A atitude assumida pelo arguido constituiu uma violação grosseira e repetida dos deveres que lhe foram impostos, sendo certo que o comum dos cidadãos nelas não incorreria, pelo que a referida violação não merece ser tolerada nem desculpada.

7. Acresce que o arguido não aproveitou as oportunidades que lhe foram sendo dadas para cumprir,

8. Inviabilizando, culposamente, o recurso às medidas previstas no art. 55.° do Código Penal.

9. Por outro lado, consta dos autos que o arguido aufere cerca de € 700,00 mensais e que a sua companheira aufere cerca de € 440,00 mensais, sendo que as despesas que apresentou resultam de encargos assumidos posteriormente à condenação, desproporcionados face à situação económica e aos deveres a que o arguido se encontrava obrigado, apontando no sentido de que o arguido apenas não cumpriu porque não quis.

10. Pelo que, as finalidades da punição, ou seja, a protecção dos bens jurídicos e a reinserção social do arguido - cfr. art. 40.° do Código Penal, não podiam já ser alcançadas, impondo-se a revogação da suspensão da pena, de harmonia com o disposto no art. 56.°, n." 1, al. a), do Código Penal.

11. Assim, a douta decisão recorrida, operou sábia subsunção jurídica e aplicação do direito.

12. Não tendo sido violadas quaisquer disposições legais.

Nestes termos, a decisão recorrida não merece qualquer censura, pelo que deverá ser confirmada, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso, fazendo-se assim, uma vez mais, a costumada JUSTIÇA.

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder, confirmando-se o despacho recorrido.

Foi cumprido o disposto no art. 417º nº2 do Código de Processo Penal.

Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

Conforme jurisprudência constante e pacífica (por todos, Ac. STJ 24.03.1999, CJ VII-I-247), o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do CPP e Ac do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a decidir é apenas uma e que procuramos sintetizar com a fiabilidade possível, da seguinte forma:

Se o incumprimento das obrigações de que ficou dependente a suspensão da execução da pena configura uma violação grosseira dos deveres do arguido ou se ficou a dever a incapacidade financeira não culposa.

Para melhor se compreenderem os contornos da questão importa ter presentes os seguintes actos processuais:

Por acórdão proferido a 10.1.2005 e transitado em julgado a 20.9.2005, após recurso interposto pelo arguido para este Tribunal, a que veio a ser negado provimento por acórdão de 6.7.05, o arguido foi condenado numa pena única de três anos, suspensa na sua execução pelo período de três anos, sob condição de pagar as indemnizações de € 5 000,00 à assistente e € 73,47 ao Centro Hospitalar do Médio Tejo, em ambos os casos, acrescidas de juros à taxa legal de 4% ao ano, contados a partir da notificação do arguido para contestar os referidos pedidos e até efectivo e integral pagamento, no prazo de dois anos, a comprovar nos autos, sendo que o arguido também deveria comprovar nos autos o pagamento de metade da importância devida á assistente decorrido que fosse um ano sobre o trânsito em julgado da decisão.

Na decisão de 1ª instância afirmava-se o seguinte sobre a situação económica do arguido:

Com cerca de 30 anos começou a trabalhar como motorista de longo curso, profissão que ainda exerce actualmente, registando-se ajustamento no cumprimento das funções atribuídas; aufere cerca de 700,00 euros por mês, como motorista de T….

Vive maritalmente com uma companheira, que está desempregada, e tem uma filha de 13 anos, que é estudante.

Na decisão de recurso, neste Tribunal afirma-se o seguinte sobre o facto da suspensão da pena de prisão ter ficado condicionada à reparação dos danos:

Condição esta que nem o recorrente questiona e estabelecida de forma faseada, com prazos perfeitamente ajustados ao caso (fls. 383).

O arguido não comprovou o pagamento de metade da importância devida à assistente (€ 2.500,00) até 20/09/2006.

Por despacho de 18.10.2006, foi ordenada a notificação ao arguido para comprovar esse pagamento (fls. 483).

Por requerimento de 8.11.2006 requereu a prorrogação do prazo para o pagamento da indemnização devida à assistente, pelo período de 30 dias (fls. 493) o que lhe foi deferido a 27.11.2006 (fls. 498).

Novamente notificado para comprovar o pagamento por despacho de 15.2.07 (fls. 517), mais uma vez, requereu a prorrogação do pagamento da indemnização devida à assistente, pelo prazo de dez dias (fls. 528), o que lhe foi novamente deferido em 16.4.07 (fls. 530).

Por requerimento de 10.5.07 a assistente requer a revogação da suspensão da pena, invocando o não pagamento e a aquisição recente de um motociclo de valor superior a 5.000 €, apesar das dificuldades económicas invocadas (fls. 532 a 534).

Foi junto documento comprovativo dos três veículos em nome do arguido (fls. 539 a 542).

Foi ouvido presencialmente o arguido em 25.6.07, que invocou dificuldades económicas (fls. 551 a 552).

O arguido juntou aos autos documentos comprovativos da sua situação económica:
- Prestação mensal de 340,56 € de crédito para aquisição de casa e crédito pessoal no valor de 42,79 € (fls. 554);
- Prestação mensal de 420,79 € de crédito de 21.282,26 € para aquisição de veículo, com início do contrato em 5.1.05 e última prestação em 5.1.2011 (fls. 555);
- Declaração de que a companheira requereu em 5.6.2007 subsídio de desemprego (fls. 556 a 557);

A assistente em requerimento de fls. 562 a 563 invocou que o arguido possui um BMW 316i, um motociclo de alta cilindrada Honda CBR, adquiriu recentemente uma fracção autónoma em Riachos e tem rendimentos mensais efectivos entre os 1000 e os 1500 €

A Segurança Social indicou a sua entidade patronal (a mesma referida no acórdão) e o seu último desconto no valor de 550 € respeitantes a 30 dias de trabalho (fls. 565).

Foi junto print com as características do veículo do arguido -BMW 320D de 1999 registado a favor do arguido desde 2.5.05 (fls. 569 e 580 a 581)

Foi junto aos autos relatório social elaborado pela DGRS (fls. 574 a 576) que concluiu: “… o arguido não beneficia de uma condição económica equilibrada, pelo valor elevado dos encargos que assumiu, ainda que as necessidades básicas sejam devidamente asseguradas, percepção esta corroborada pelo próprio arguido. Demonstrando parca ressonância quanto ao processo em causa, tal postura contribui para que, ao longo do tempo, não tenha delineado objectivos de gestão dos recursos económicos disponíveis para que conseguisse cumprir com a condição da suspensão da pena a que foi condenado”.

A GNR informou que o arguido é visto a conduzir o BMW mas não o motociclo, que trabalha e aufere 600 € mensais.

Foi junto print comprovativo de que o motociclo Honda RC 44A (V750 C2) do ano de 2002, de matrícula 00-00-UB está registado em nome do arguido desde 17.7.07 (fls. 584 a 585).

O Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena (fls. 586 a 587).

Notificado, pessoalmente e no seu I. Defensor, o arguido nada disse.

Nesta sequência, veio a ser proferido o despacho recorrido datado de 22.9.08, que aqui se transcreve na íntegra:

Por Acórdão proferido 10/01/2005, transitado em julgado em 20/09/2005 (fls. 396), o arguido … foi condenado, como autor material e em concurso efectivo, de dois crimes de maus tratos previstos e punidos pelo art. 152°, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, nas penas de 18 meses de prisão e 2 anos e três meses de prisão e, por via disso, em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 3 anos de prisão. No entanto, tal pena de prisão foi suspensa na sua execução pelo período de 3 anos sob a condição de o arguido pagar as indemnizações de € 5.000,00 à assistente e € 73.47 ao Centro Hospitalar do Médio Tejo, S.A, em ambos os casos, acrescidas de juros à taxa legal de 4% ao anos contados a partir da notificação do arguido para contestar os referidos pedidos e até integral e efectivo pagamento, no prazo de dois anos, a comprovar nos autos, sendo que deve também comprovar nos autos o pagamento de metade da importância devida à assistente decorrido que seja um ano, sobre o trânsito em julgado da presente decisão.

Por Acórdão datado de 6 de Julho de 2005 foi negado provimento ao recurso interposto pelo arguido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Como resulta dos autos o arguido não cumpriu até hoje as condições da suspensão da execução da pena de prisão.

Na verdade, por despacho de 18/10/2006, foi o arguido notificado para vir aos autos comprovar o pagamento efectuado à assistente de, pelo menos, metade da importância devida (cfr. fls. 483 e 485). Neste seguimento, veio o arguido, por requerimento datado de 09/11/2006, requerer lhe fosse prorrogado o prazo para efectuar o pagamento da aludida quantia, o que lhe foi deferido por despacho de 27/11/2006 (cfr. fls. 498).

Foi novamente o arguido notificado por despacho de 01/02/2007 para vir juntar aos autos documento comprovativo do pagamento de metade da importância devida à assistente (cfr. fls. 515 e 519). Mais uma vez, veio o arguido, por requerimento datado de 19/03/2007, requerer lhe fosse prorrogado o prazo para efectuar o pagamento da aludida quantia, o que lhe foi deferido por despacho de 16/04/2007 (cfr. fls. 530).

Em 21/05/2007, insistiu-se de novo com o arguido nos termos expostos e designou-se data para lhe serem tomadas declarações (cfr. fls. 536). Conforme decorre do auto de declarações de fls. 551, o arguido referiu que tem tido muitas dificuldades económicas e que, por isso, não tem dispõe de condições que lhe permitam efectuar o pagamento de uma só vez da quantia de €2.500,00, juntando documentos comprovativos da sua situação económica (fls. 553 a 557).

Posteriormente, por despacho de 14/11/2007 foi solicitado à DGRS a elaboração de relatório sobre a situação económico-profissional do arguido, tendo sido junto o relatório de fls. 574.

O Ministério público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão fixada nos presentes autos, por entender que as finalidades que estiveram na base da suspensão não foram alcançadas (cfr. fls. 596 e 587).

Cumpre apreciar e decidir.

Ao abrigo do art. 50.°, n.º 1 do Código Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Se, no decurso da suspensão da execução da pena de prisão, o arguido infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, a suspensão da execução da pena de prisão é revogada (art. 56º, n.º 1, do CP).

Nos termos do n.º 2 do citado normativo legal, a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.

No caso concreto verifica-se que o arguido foi por diversas vezes notificado para vir aos autos juntar o comprovativo do pagamento à assistente de, pelo menos, metade da importância devida à mesma, o que aquele não fez até à data de hoje.

De facto, no decurso do período de suspensão da execução da pena de que beneficiou, o arguido, desaproveitando todas as oportunidades que lhe foram sido dadas, não cumpriu as condições para a suspensão da execução da pena, sendo certo, que as finalidades que presidiram este instituto não foram por este meio alcançadas.

Como decorre do próprio relatório elaborado pela DGRS, o arguido não beneficia de uma condição económica equilibrada pelo valor elevado dos encargos que assumiu (designadamente, amortização bancária pela aquisição da habitação - €340,56, amortização de crédito pessoal realizado no Banco BES de Minde - €42,92, amortização de crédito pessoal no "Banco Mais S.A." - €36,85, amortização de crédito pessoal realizado na Financeira "Credibom" para aquisição de uma veículo automóvel de marca BMW 318 - €420,79), não obstante as necessidades básicas serem asseguradas, "demonstrando parca ressonância quanto ao processo em causa, tal postura contribui para que, ao longo do tempo, não tenha delineado objectivos de gestão dos recursos económicos disponíveis para que conseguisse cumprir com a condição da suspensão da pena a que foi condenada",

Como tal, revelam-se frustradas as finalidades que estiveram na base da suspensão da pena de prisão, designadamente ao nível da prevenção especial positiva, uma vez que a advertência ínsita na decisão de suspensão não surtiu o efeito que se pretendia atingir. Com efeito, o arguido pôs irremediavelmente em causa o juízo de prognose favorável de que beneficiou aquando da condenação.

Nestes termos, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido nos presentes autos, nos termos do art. 56°, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por se considerar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

Deverá assim o arguido cumprir a pena de 3 (três) anos de prisão em que foi condenado por Acórdão proferido 10/01/2005, transitado em julgado em 20/09/2005, nos termos do nº 2 do artigo 56° do Código Penal.

Notifique.

Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal.

Invoca o Recorrente nas suas alegações que procurou um acordo de pagamento com a assistente mas que esta o recusou.

Trata-se de argumentação nova que o Recorrente não invocou nem logrou provar em sede própria pelo que essa invocada tentativa de acordo não pode ser ponderada a favor do Recorrente.

De qualquer forma, como é óbvio, sendo o pagamento de determinada quantia a condição de suspensão de uma pena de prisão é o Tribunal o interlocutor necessário do Recorrente: Era ao Tribunal que o Recorrente tinha de expor as suas dificuldades e propor planos de pagamento. Mas, como decorre da análise dos autos, quem teve de ter a iniciativa foi o Tribunal que por duas vezes questionou o ora Recorrente sobre o pagamento e também por duas vezes acedeu ao pedido de prorrogação de prazo pedido pelo ora Recorrente e este, por igual número de vezes não cumpriu.

Da mesma maneira, o ressarcimento do pedido de indemnização deve ser procurado pela Demandante, em primeira linha, através da execução e da penhora dos bens do devedor. Só na medida em que a assistente é colaboradora do Ministério Público (art. 69º nº 1 do Código de Processo Penal) é que se pode compreender que (re)queira a revogação da suspensão da execução da pena. De tal sorte essa separação entre os interesses públicos e privados é vincada que mesmo que a suspensão da execução da pena seja revogada e o arguido venha a cumprir pena de prisão, continua o particular ofendido a poder instaurar execução, penhorar os bens do arguido/demandado sendo ressarcido por essa via.

O Recorrente invoca a insuficiência económica.

Sabido que em matéria de revogação da suspensão da execução da pena de prisão vigora [[1]] o princípio rebus sic stanntibus norteado pelos princípios da culpa e da adequação – só o incumprimento (1)reiterado e culposo ou (2)gravemente culposo ou doloso [[2]] pode determinar a revogação.

A jurisprudência dos nossos tribunais superiores é clara a este propósito, ao perfilhar o entendimento de que a apreciação sobre a falta de cumprimento dos deveres impostos em sentença como condicionantes da suspensão da execução da pena deve ser cuidada e criteriosa, de tal sorte que apenas uma falta grosseira determina a revogação, o que equivale a dizer que o arguido nunca verá a suspensão revogada por falta de pagamento da indemnização fixada, a menos que tal falta lhe seja, de todo, imputável [[3]].

Para que a indagação sobre a culpa no incumprimento seja efectivamente realizada e para que o princípio do contraditório tenha dimensão material impunha-se a recolha de prova sobre essa situação económica e a audição presencial do ora Recorrente.

Todas as diligências legalmente exigíveis [[4]] e necessárias à decisão no caso concreto foram realizadas.

A análise dos elementos existentes nos autos permitem concluir, como faz o Ministério Público nas suas alegações que o arguido, em vez de ressarcir a assistente optou por assumir vários encargos:

- Aquisição de casa própria, assumindo prestação mensal de 340,56€ (a sua residência anterior era diferente);

- Aquisição de automóvel BMW através de crédito no montante global de 21.282,26 € e prestações mensais de 427,09 €, com início do contrato em 5.1.05, estando o veículo registado em seu nome desde 2.5.05;

- Aquisição de motociclo de alta cilindrada (VT 750), com reserva de propriedade e recurso a crédito concedido pelo BPN (fls. 585);

- Outro crédito pessoal no valor de 42,79 €.

Impressiona qualquer homem de diligência e discernimento medianos que o Recorrente opte por adquirir um veículo automóvel BMW por mais de 20.000 € na altura em que estava a ser sentenciado pelo crime de maus tratos dos autos, que entretanto tenha adquirido casa própria outra vez com recurso ao crédito e, de seguida, um motociclo de alta cilindrada, com registo a seu favor datado de menos de um mês depois de ser ouvido presencialmente nos autos e ter afirmado as suas dificuldades económicas…

Por outro lado, suscitam dúvidas as informações que vão chegando aos autos sobre os rendimentos mensais do Recorrente. Se fossem os invocados pelo arguido, certamente que as instituições bancárias não lhe concederiam tanto crédito (a soma das prestações mensais conhecidas seria superior aos seus rendimentos mensais); por outro lado o montante descontado para a Segurança Social num só mês (550 €) permite concluir pela existência de um nível remuneratório claramente superior, atendendo à respectiva taxa contributiva (art. 3º do Decreto-Lei 199/99 de 8.6). Até a sua remuneração mensal provada no acórdão condenatório é superior à que agora declara apesar de continuar a trabalhar para a mesma entidade patronal.

Convém lembrar que se o arguido adquirisse o seu BMW um ano depois ou adquirisse um veículo por metade do preço, o dinheiro que assim aforraria, bastaria para poder respeitar a decisão judicial proferida nos autos; ou que a venda neste momento do BMW (seguramente) ou da Honda (provavelmente) aos preços de mercado [[5]] bastariam para satisfazer a condição de suspensão da execução da pena; ou que com o recurso ao crédito a que tem tão fácil acesso também poderia obter a quantia necessária.

É certo que o tribunal quando aprecia criticamente a conduta não pode exigir ao arguido o cumprimento de qualquer reparação que lhe seja de todo impraticável. Não pode, na apreciação do incumprimento, deixar de atender a todas as envolventes e exigir apenas o que é razoável sob pena de violar o princípio da equidade[6].

Porém, a razoabilidade das condições impostas é evidente e foi expressamente afirmada por este Tribunal na decisão que incidiu sobre o recurso interposto da decisão final.

Conclui-se, assim, que o Recorrente não pagou porque não quis, quando é evidente que o poderia ter feito. Ou seja: dolosamente – com dolo directo – infringiu de forma que não pode deixar de se qualificar como grosseira [[7]] os deveres de que dependia a suspensão da execução da pena (art. 56º nº 1 al. a) do Código Penal).

Na economia das conclusões do recurso apresentado importa saber se face ao aludido incumprimento que o Recorrente reconhece não haveria lugar apenas à aplicação de uma das medidas das als. a), b) ou c) do art. 55º do Código Penal.

Como se disse supra, a situação é de violação dolosa e grosseira do dever condicionante da suspensão da execução da pena, subsumindo-se directa e inequivocamente à previsão do disposto na al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal.

Apenas se justificaria a aplicação de uma das medidas do art. 55º do Código Penal se o juiz estivesse obrigado a percorrer todas as medidas previstas no art. 55º do Código Penal antes de determinar a revogação da suspensão nos termos do art. 56º nº 1 do Código Penal.

Todavia, não é assim. Ao apreciar a situação concreta o juiz efectua um juízo sobre a gravidade da situação, sobre o grau de violação dos deveres impostos, sobre a intencionalidade da conduta e sobre os reflexos desse comportamento sobre o juízo de prognose favorável que permitiu a suspensão da execução da pena.

Se a situação for tão grave que permita concluir que deixaram de se verificar os pressupostos em que se baseou a suspensão da execução da pena, tem o juiz o poder/dever de determinar a revogação da suspensão nos termos do art. 56º do Código Penal.

É o caso dos autos, em que o Recorrente, apesar de o poder fazer, não quis pagar a indemnização à sua ex-companheira pelos maus-tratos que lhe infligiu, usando de todos os expedientes processuais para o evitar mas não se coibindo de exibir sinais exteriores e, no caso, afrontosos, de riqueza.   

Efectivamente, consideramos [[8]] que o Tribunal não tem de aplicar todas as medidas previstas para finalmente revogar a suspensão. Basta que na apreciação da gravidade e reiteração do incumprimento se esgote o juízo de prognose favorável[9].

Como refere o Ex.mo Sr. Procurador Geral Adjunto no seu parecer, citando o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra supra referido:

"Falar agora de prorrogação de prazo ou de novas garantias não faz nenhum sentido e derroga os verdadeiros objectivos da lei. Para além do pagamento há uma política de reinserção social que está definitivamente frustrada. O arguido deu provas sobejas de que não quer pagar. Se efectivamente o pretendesse fazer, tinha solvido parcialmente o compromisso e não o fez quando tinha condições para o fazer.

( ... )

Conceder mais no tempo e na atitude seria desvirtuar os fins da pena, enquanto instrumento necessário à reinserção social do delinquente e à tutela dos bens jurídicos.

Sendo certo que nenhum ordenamento jurídico suporta pôr-se em causa a si mesmo, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa 'perda' de efeito preventivo geral – isto é conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição. Já não tolera a sua ineficácia". 

Acresce que o decurso do tempo tornou absolutamente inócua a aplicação ex novo de qualquer das medidas das al.s a), b) ou c) do art. 55º do Código Penal, pois já decorreu o período de suspensão da execução da pena.

Não pode deixar de se referir que o não cumprimento integral das condições impostas até ao trânsito em julgado da decisão de revogação da suspensão da execução da pena [[10]] implica o cumprimento da pena de prisão mas não impede que a assistente e o Demandante executem a sentença obtendo o ressarcimento através da penhora dos bens do executado.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação, em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.


[1] Neste sentido a jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça, a propósito da revogação da suspensão da execução da pena, afirma que “no momento em que o recorrente tiver de prestar contas sobre o cumprimento da condição de suspensão, o Tribunal só poderá declarar revogada a suspensão da execução da pena por incumprimento dessa condição se este for culposo. E só o fará depois de ouvir as razões que lhe forem apresentadas pelo arguido, se não resultarem as demais medidas referidas no art.º 55.º do CP e se forem infringidas grosseira ou repetidamente os deveres impostos (art.º 56.º, n.º 1, al. a), do CP)”, conforme sumariado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.1.05, no proc. 04P4204; no mesmo sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31.5.06 no proc. 06P1294 e de 13.12.06 no proc. 06P3116, todos em www.dgsi.pt.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.6.06, no proc. 147/2006-5, em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.06, referido na nota 1.
[4] Mormente a audição (presencial) do arguido nos termos do art. 495º nº 2 do Código de Processo Penal.
[5] Facto notório, constatável em qualquer pesquisa na internet ou nas revistas da especialidade.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.11.08, no proc. 1734/00.5TACBR.C1, em www.dgsi.pt, 
[7]Grosseira quer dizer grave, rude, ordinária, vil, baixa, reles” afirma-se no Código Penal Anotado e Comentado, de Sá Pereira e A. Lafayette, pg. 189.
[8] Como o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.11.08, supra referido, 
[9] A inconciabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena deve conduzir à respectiva revogação (Acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Fevereiro de 1997 na CJ XXII, T I, pg. 166)
[10] Não nos cabendo neste momento qualquer pronunciamento sobre se o cumprimento das condições de suspensão da execução da pena até ao trânsito em julgado da decisão tem a virtualidade de poder impedir o cumprimento da pena de prisão efectiva.