Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3583/16.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA INTERNACIONAL
VENDA DEFEITUOSA
LEI APLICÁVEL
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
MERCADORIA
DEFEITO
RECURSO DE FACTO
PROVA TESTEMUNHAL
RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 10/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.393, 408, 762, 799, 801, 808, 874, 879, 1222 CC, REGULAMENTO (CE) Nº 593/2008 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 17 DE JUNHO DE 2008
Sumário:
1 - Considerando as vantagens da imediação e da oralidade, a censura sobre a decisão sobre a matéria de facto apenas pode emergir se os meios probatórios invocados pelo recorrente e a interpretação que deles deve ser feita, impuseram decisão diversa.
2 - A inspecção regular no Vietnam que conclui pela conformidade de algumas amostras de pescado não faz prova plena sobre a conformidade de todo o restante produto nem inelutavelmente proíbe, vg. por aplicação do disposto no nº2 do artº 393º do CC, a prova testemunhal sobre a mesma.
3 - Na compra e venda defeituosa internacional se as partes não convencionarem a lei aplicável, rege a lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual ou a do país com que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita - artº 4º do REGULAMENTO (CE) Nº 593/2008 –, in casu a portuguesa.
4 -Em tal contrato, sendo impossível a eliminação dos vícios da coisa – atum impróprio para consumo - e inexistindo consenso quanto à redução do preço por motivos não imputáveis ao comprador, a este assiste jus à resolução do contrato, com as legais consequências: indemnização pelo interesse negativo - artºs 406º, 762, 799º, 801, 808º e 1222º do CC.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

1.1. C (…) SARL, instaurou contra CC (…) S.A. acção declarativa, de condenação, com processo comum.
Pediu:
A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 133.750,00, acrescida dos juros de mora vencidos e que ascendem a quantia de € 12.653,98 e dos vincendos até efectivo e integral pagamento, e custas.
Alegou:
No exercício da sua actividade de comércio de produtos alimentares vendeu à ré, por encomenda desta, que recebeu e aceitou, produtos alimentares - atum pré-cozinhado congelado, originário do Vietnam - constantes de duas facturas, - o 1º contentor expedido em 13/09/2014, desembarcado no Porto de Leixões em 12/10/2014, vencida a factura a 90 (noventa) dias após a respectiva emissão, e o segundo, expedido em 22/11/2014, desembarcado no Porto de Leixões em 23/12/2014, vencida 30 (trinta) dias após ETA, apondo como condições de venda INCOTERM “CFR Leixões”- isto é, cost and freight – custo e frete.
As mercadorias foram devidamente analisadas - análise que confirmou cumprirem os requisitos sanitários e de boa qualidade da UE- e certificadas pelo Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural do Vietnam - que emitiram certificado sanitário, em que se atestou que a mercadoria, uma vez controlada pelos seus laboratórios, cumpre as normas europeias, nomeadamente que os níveis de histamina são inferiores ao limite imposto pela Comunidade Europeia; ambos os contentores foram analisados e, apesar de ter sido detectada histamina, os valores ali registados são valores aceitáveis e previstos como tal pelo Regulamento (CE) n.º 2073/2005 da Comissão de 15 de Novembro de 2005.
Todos os documentos foram devidamente validados pela Ré, previamente ao envio dos originais por correio urgente DHL, e enviados pela Autora, e as autoridades competentes aceitaram a entrada dos contentores em território nacional, tendo passado pelo devido controlo sanitário.
Apenas no final de Janeiro de 2015 a ré veio reclamar que a mercadoria entregue continha valores elevados e fora do legalmente admissível de histamina, o que não lhe permitia dar o uso previsto ao atum.
Não tendo qualquer fundamento as reclamações apresentadas pela Ré, e não tendo esta procedido ao pagamento das facturas.

A ré contestou, defendendo-se por excepção e deduzindo pedido reconvencional.
Disse:
As mercadorias foram adquiridas ao abrigo da Quota/Destino Especial, por forma a evitar a taxação de 24% de direitos de importação sobre estas mercadorias e por essa razão , as mercadorias só puderam ser desalfandegadas em Janeiro de 2015;
Após o desalfandegamento definitivo, e após ter colhido determinadas amostras do produto para análise de controle de qualidade, constatou que aquelas mercadorias apresentavam índices de histamina bastantes elevados e fora do legalmente admissível pelo Regulamento CE nº. 2073/2005 de 15/11/2005.
O controlo veterinário da mercadoria só foi feito pela análise documental e não por uma análise laboratorial, donde, no acto de descarregamento, não foi possível verificar os índices altos de histamina.
Já após chegada do produto a Portugal, tomou conhecimento que o atum fornecido pela autora foi pescado no Vietnam sem que o barco tivesse congelação a bordo; a congelação a bordo é determinante para que o peixe chegue ao destino com qualidade e isento de parasitas e de contaminantes de forma a evitar índices de histamina superiores ao legalmente previsto; os testes laboratoriais e restante documento oriunda do Vietnam são de reduzida fiabilidade sendo fácil obter documentos não condizentes com a realidade.
A mercadoria foi inspeccionada pelo seu departamento de qualidade, e feita análise de histamina detectou-se de imediato problemas de qualidade, índices de histamina elevados.
A ré reclamou à autora, a qual enviou o Sr. (…) à sua fábrica que acompanhou com o departamento de qualidade, a realização de análises de histamina vários lotes de produto, tendo constatado os altos níveis de histamina no produto que foi analisado; o que levou a autora a retomar 3.500 Kgs emitindo NC nº. 0162014 datada de 20/02/2015.
Análises de histamina ao restante pescado, o qual foi feito pelo laboratório externo ((…)) confirmaram a existência de histamina fora dos parâmetros regulamentares.
Não houve alteração das condições de conservação de frio do pescado a bordo do navio, ou nas câmaras frigoríficas ou na fábrica da ré, pelo que, o atum congelado vendido já saiu de origem do Vietnam impróprio para o consumo humano de acordo com as normas europeia.
Em 16/03/2015 a ré enviou à autora carta registada com AR, considerando incumprido definitivamente o contrato de fornecimento.
Na falta de qualquer resposta por parte da autora, a ré entregou a mercadoria para destruição à Empresa F (…)
O incumprimento da autora provocou à ré diversos prejuízos nomeadamente:
1) custos com a entrada da mercadoria em Portugal - despacho para entrada em entreposto no valor de €1.174,15, factura nº. 2014/…;
2) levantamento e transporte F(…) , fact. 2014/… no valor de 489.89 euros;
3) despacho para entrada em entreposto- fact. 2014/…, no valor de 1.175.64€;
4) levantamento e transporte F(…) no valor de € 489.89- fact. 2014/…;
5) despacho de importação, assistência e controlo aduaneiro no valor de 351.14€ - fact. 2015/… e fact. … e …;
6) despesas de conservação de frio F (…)- :1.1- fact. 2014/… de 31/10/14 no valor de €726,00; 1.2- fact. 2014/… de 30/11/14 no valor de 630.00; 1.3- fact 2014/… de 31/12/14 no valor de 375.00€; 1.4- fact 2014/… de 31/12/2014- €52.47(fact …) +315.00€(fact …)
+€44.80(fact …);1.5- ft 2015/56 de 31/01/15 ( €86.80- ft …+ €542.19- fact. …+87,45€);
7) transporte do levantamento para a fábrica- 610.00€; no total de €7150.42 ( sete mil cento e cinquenta euros e quarenta e dois cêntimos).
p) Adquiriu à reconvinda 50 toneladas de atum pré congelado, e custou-lhe por kilo o valor de €2.85; e devido à sua destruição a reconvinte ficou com menos produto para comercializar; após pesquisa no mercado para aquisição de novo produto, não conseguiu encontrar outro produto pelo mesmo valor ou equivalente; para substituir a mercadoria vendida pela reconvinda, e para fazer face às necessidades de produção, socorreu-se de mercadoria que tinha em stock adquirida em regime de quota de mercado, a qual comprou a outros seus fornecedores pelo valor de €3.72 por kilo ( USD 4,7 : 1,2646); - donde, relativamente ao atum identificado na factura nº… suportou um custo superior de €21.750,00 e da factura nº. … suportou um custo superior de €31.750,00.-oque perfaz o montante de €60,650,42, traduzido no prejuízo patrimonial para a reconvinte pelo incumprimento definitivo;
Pediu:
A improcedência da acção e consequente absolvição da ré da totalidade do peticionado e a procedência da reconvenção com consequente condenação da reconvinda a pagar a indemnização no valor de €60.650,42, juros de mora desde a citação até integral e efectivo pagamento.

A autora respondeu.
Disse:
A ré invoca falsamente a zona de pesca do produto vendido e a inexistência de congelação a bordo do barco de pesca que capturou o produto vendido.
Ademais, todas as análises alegadamente realizadas pela ré, foram-no vários meses após a chegada do produto a Portugal.
Incumbia à ré celebrar adequado contrato de seguro, como lhe incumbiram as despesas de desembarque da mercadoria, suportando os riscos de perda ou dano que possam ocorrer na mercadoria, a partir do momento em que a mesma foi entregue.
Os certificados da mercadoria emitidas pelas autoridades Vietnamitas são reconhecidos pela União Europeia, produzindo efeitos jurídicos e foram emitidos pelas competentes autoridades vietnamitas, devidamente reconhecidas pela Comunidade Europeia no Tratado entre a República do Vietnam e a Comunidade.
A ré desalfandegou a mercadoria quando muito bem entendeu, e podia fazê-lo, pois era a sua dona e legitima proprietária desde o embarque da mercadoria no Vietnam.
Apesar de ter verificado a conformidade do produto para consumo humano, vários meses após a sua chegada a Portugal, o Sr. (…) aceitou fazer um gesto comercial, convencida que a ré era um importante potencial cliente, contra o pagamento imediato da mercadoria, o que a ré não aceitou.

2.
Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:
«…julgo a presente acção improcedente por não provada e parcialmente procedente a reconvenção deduzida e condeno a autora reconvinda no pagamento à ré reconvinte da quantia de € 7.150.42 ( sete mil cento e cinquenta euros e quarenta e dois cêntimos)»

3.
Inconformada recorreu a autora.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)

Contra alegou a ré pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…)
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2ª - Procedência da acção.

5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1.
No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5 do CPC.
Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.
O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed. III, p.245.
Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.
Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.
Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.
Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.
Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.
Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.
O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.
Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114.
Nesta conformidade constitui jurisprudência sedimentada, que:
«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.
5.1.2.
Por outro lado, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.
A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.
Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.
Porque, afinal, quem tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.
Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.
A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.
E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos in dgsi.pt;
5.1.3.
No caso vertente.
5.1.3.1.
(…)
Foi apreciada a prova.
Como se disse, a decisão factual encontra-se profusa e amplamente fundamentada com chamamento de uma plêiade de meios probatórios que, clara e vincadamente, alicerçam e justificam a convicção final da julgadora.
E não invocando a recorrente argumentos acerca da inidoneidade ou insuficiência da prova, bem como erro de apreciação da mesma, que, como a lei exige, imponham, ou, até, sugiram, decisão diversa.
Bem vistas as coisas, o argumento fulcral da insurgente é de cariz liminar/formal, ou seja, entende que verificada a conformidade do produto através de uma regular inspecção efectivada na origem pelas autoridades vietnamitas, tal, ipso facto, acarreta a conclusão que fica inelutávelmente vedada a possibilidade de apreciação sobre se, na realidade/verdade, algo possa ter corrido mal em tal inspecção e, assim, aquando da mesma, o peixe já estivesse estragado.
Mas não é assim.
Uma coisa é a constatação da regularidade formal da inspecção que não é colocada em crise.
Outra, e que está a ser discutida no processo, é saber se, não obstante tal regularidade, a inspecção não foi suficiente para aferir da desconformidade, naquela fase já existente.
Ora esta possibilidade de dilucidação não está liminarmente vedada pela existência da inspecção que atesta a conformidade.
Antes este processo judicial – tal como qualquer outro – é o meio próprio para se descortinar o que realmente se passou, ou seja, para se descobrir a verdade material do caso concreto.
O cumprimento formal de certos requisitos não é o bastante para se concluir definitivamente que o objectivo ou efeito pretendido pela exigência dos mesmos efectivamente foi consecutido.
O presente caso é frisante e paradigmático de tal relativismo.
Efetivamente, e não obstante a aludida inspecção, para o processo foi carreada prova suficiente, segundo a interpretação da julgadora, no sentido de se concluir que o produto já estava contaminado na origem.
Desta prova extraíram-se e firmaram-se factos dos quais essa conclusão se alcança, senão de um modo quasi obrigatório, pelo menos de um modo perfeitamente admissível.
São eles, vg. E como relatado pela julgadora, o pequeno número – para uma quantidade tão grande - das amostras analisadas; a proveniência do pescado de várias embarcações; o facto de estas não terem sistema de congelamento a bordo; o facto de estas demorarem pelo menos 3 dias a chegarem ao porto; as altas temperaturas dos locais de pesca que rondam os 30º celsius, etc.
Note-se que o outro argumento nuclear - para além da inspecção na origem -, esgrimido pela recorrente, qual seja, que a deterioração de pescado se deveu a uma quebra de frio no pós embarque no Vietname, deveria, porque por ela alegado, por ela ser provado. E não tendo cumprido este seu ónus, pois que prova convincente inexistiu.
Antes pelo contrário se dando como provado, e se corroborando, que, após o embarque no Vietname, não houve alteração das condições de conservação de frio do pescado.
Finalmente urge atentar que inexiste, em termos jurídico formais de direito probatório, qualquer impedimento à produção de outra prova, como a testemunhal, para além da inspecção que foi efectivada na origem.
Primus, é de notar que a jurisprudência se vem sedimentando no sentido da desdogmatização da prova de certos factos via documento autêntico, pois que, vg., mesmo em relação a factos atinentes ao estado civil que não façam parte do tema central da acção, é prescindível tal meio de prova – cfr. Acs. do STJ de 26.10.2010, p. 1482/08 e de 10.12.2009, in dgsi.pt.
Depois, no caso sub judice, a inspecção no Vietname, mesmo que se tenha como documento autêntico, apenas, ex vi de tal qualidade, faz prova plena sobre as amostras efetivamente inspeccionadas.
Mas já não sobre todo o remanescente do peixe não inspeccionado.
Inexiste, pois, qualquer prova plena quanto ao resto do peixe não inspeccionado.
E quedando, assim, inaplicável a invocada restrição do nº2 do artº 393º do CC.
A qual, aliás, apenas emerge de uma leitura meramente literal e restritiva de tal segmento normativo.
Pois que como é consabido, a prova testemunhal é admissível, mesmos nestes casos, vg.: «…quando complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito que constitua um suporte documental suficientemente forte para que, constituindo a base da convicção do julgador, se possa, a partir dele, avançar para a respectiva complementação, ou seja, demonstrar não ser verdadeira a afirmação produzida perante o documentador.» - Ac. do STJ de 02.03.2011, p. 758/06.3TBCBR-B.P1.S1.
Ademais, e para aferir da conformidade do produto, in casu não estamos perante qualquer exigência legal de prova taxada ou tarifada.
Pelo que e por princípio: «pode ser admitido como meio de prova, tudo quanto se mostre capaz de testemunhar a existência dos factos essenciais ou instrumentais com interesse para a decisão da causa» - Remédio Marques in A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2007, p.383.
Por outro lado, e no que tange à apreciação do valor probatório de determinado meio de prova - e salvo quando a lei lhe atribui um certo valor, vg. à confissão e aos documentos autênticos, os quais fazem prova plena quanto aos factos confessados ou referidos como praticados pelo oficial publico respetivo e que só podem ser ilididos pela prova em contrário: artºs 347º e 370º nº2 do CC - a regra é, como se disse, a da livre convicção do julgador, ou seja: «os meios de prova são apreciados livremente pelo julgador sem qualquer escala de hierarquização ou vinculação pelo tribunal» - A. e Ob. cits. p.384.
(sublinhado nosso)
É o que, no que tange à prova testemunhal, a lei, adrede e inequivocamente, admite – artº 396º do CC.
Em suma: tudo visto e ponderado conclui-se que os argumentos apresentados pela recorrente no atinente à impossibilidade de produção da prova e à sua interpretação, ou improcedem ou são insuficientes para permitir um juízo de censura sobre a convicção da julgadora e, assim, imporem uma decisão factual diversa, a qual, como se disse, se encontra amplamente respaldada no acervo probatório produzido.
5.1.4.
Decorrentemente, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:
a) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de produtos alimentares.
b) No exercício da sua actividade, a Autora vendeu à Ré, por encomenda desta, que recebeu, os produtos - atum pré-cozinhado congelado, originário do Vietnam - constantes das seguintes facturas:
- n.º …, relativa ao contentor BM…3970, datada de 16/09/2014, no valor de € 72.500,00 (setenta e dois mil e quinhentos euros), expedido em 13/09/2014, desembarcado no Porto de Leixões em 12/10/2014, vencida 90 (noventa) dias após a respectiva emissão, e - n.º 1411069, relativa ao contentor TEM…296, datada de 17/11/2014, no valor de € 61.250,00 (sessenta e um mil, duzentos e cinquenta euros), expedido em 22/11/2014, desembarcado no Porto de Leixões em 23/12/2014, vencida 30 (trinta) dias após ETA.
c) Autora e Ré acordaram a aposição das condições de venda, tal como consta das facturas, o INCOTERM "CFR Leixões".
d) Os Inconterms (International Commercial Terms) definem, nas transacções internacionais de mercadorias, as condições em que os produtos devem ser exportados, fixando direitos e obrigações, tanto para o exportador como para o importador, estabelecendo, com precisão, o significado do preço negociado entre as partes.
e) Conforme supra alegado, o Incoterm, a condição de venda dos fornecimentos, acordado entre as partes foi "CFR", isto é, cost and freight - custo e frete- significando que:
--- o exportador (aqui Autora) deve entregar a mercadoria no porto de destino escolhido pelo importador, ficando as despesas de embarque e transporte a cargo do exportador, transferindo-se a propriedade da mercadoria do exportador para o importador no momento do embarque no país de origem e os riscos por perdas e danos do vendedor para o comprador.
--- já o importador deve arcar com as despesas de seguro e de desembarque da mercadoria, suportando os riscos de perda ou dano que possam ocorrer na mercadoria, a partir do momento em que a mesma foi entregue, sem prejuízo da cobertura dos seguros que o mesmo entenda contratar.
f) No final de Janeiro de 2015, a ré veio reclamar junto da autora que a mercadoria entregue continha valores elevados e fora do legalmente admissível de histamina, o que não lhe permitia dar o uso previsto ao atum.
g) A ré rejeitou os dois contentores na sua totalidade solicitando que a autora os levantasse sob pena de ter que chamar as entidades sanitárias para a sua destruição e em 16/03/2015 enviou à autora carta registada com AR, considerando incumprido definitivamente o contrato de fornecimento, conforme doc nº. 5 junto à contestação.
h) A 12/10/2014 chegou ao porto de Leixões o contentor referente à factura nº. 1409048 e foi colocado em entreposto aduaneiro, na F (…), a aguardar desalfandegamento definitivo.
i) E em 23/12/2014 chegou ao porto de Leixões o contentor referente à factura nº. 1411069, tendo sido colocado em entreposto aduaneiro, na F (…), a aguardar desalfandegamento definitivo.
j) Conforme condições acordadas entre a ré e autora, as mercadorias foram adquiridas pela ré a esta ao abrigo da Quota/Destino Especial, por forma a evitar a taxação de 24% de direitos de importação sobre estas mercadorias e por essa razão, as mercadorias só iriam ser desalfandegadas em Janeiro de 2015- o que era do conhecimento da autora.
k) Enquanto as mercadorias estão em entreposto aduaneiro a ré não tem acesso às mesmas, não podendo verificar a qualidade do produto, ficando as mercadorias armazenadas - enquanto não foram desalfandegadas - nas câmaras de frigorifico da “F (…)”, as quais não sofreram quaisquer oscilações nas condições de frio.
l) Em Janeiro de 2015 a ré procedeu ao desalfandegamento definitivo, e transportou a mercadoria para a fábrica, em contentor frigorifico;
m) e aí chegada, após ter colhido determinadas amostras do produto para análise de controle de qualidade, constatou que aquelas mercadorias apresentavam índices de histamina bastantes elevados e fora do legalmente admissível pelo Regulamento CE nº. 2073/2005 de 15/11/2005.
n) A verificação veterinária por parte das autoridades alfandegárias portuguesas é feita na maior parte das vezes, pela da análise dos documentos que acompanham a mercadoria, verificando se o registo de temperaturas dos contentores a bordo dos navios está de acordo com os parâmetros indicados para a mercadoria e somente em casos de suspeita é que as autoridades mandam abrir os contentores para verificar o estado da mercadorias.
o) Neste caso, o controlo veterinário da mercadoria - ao entrar em Portugal- só foi feito pela análise documental e não por uma análise laboratorial da mercadoria, donde, no ato do descarregamento não foi possível verificar os índices altos de histamina.
p) O atum fornecido pela autora foi pescado no Vietnam sem que os barcos tivessem congelação a bordo.
q) A congelação a bordo é determinante para que o peixe chegue ao destino com qualidade e sem índices de histamina superiores ao legalmente previsto.
r) Por ser prática comum na empresa da ré a realização de análises laboratoriais ao produto, recepcionada a mercadoria, na fábrica da ré, foi inspeccionada pelo seu departamento de qualidade, sendo que nessa análise se inclui a realização de análises de histamina; e detectou-se de imediato problemas de qualidade, índices de histamina elevados;
s) Feitas mais análises por laboratório clinico externo - confirmou-se esses valores anómalos, o que originou a rejeição total de um dos contentores referente à factura n.º 1409048 (de lombos de atum);
t) Numa primeira fase, relativamente ao contentor da factura 1411069 (troços), a ré pensou que poderia aproveitar parte da mercadoria, pois algumas análises feitas ao produto originaram resultados de histamina superiores aos legais e outras abaixo deste limite legal, o que parecia apontar para o facto de apenas parte da mercadoria ter que ser rejeitada;
u) Na sequência da reclamação da ré, a autora enviou o Sr. (…) à fábrica da CC (…), que acompanhou com o departamento de qualidade, a realização de análises de histamina vários lotes de produto, tendo constatado os altos níveis de histamina no produto que foi analisado,
v) o que levou a autora a retomar 3.500 Kgs emitindo NC nº. 0162014 datada de 20/02/2015.
w) A ré entendeu que havia um risco elevado do restante pescado não estar próprio para consumo humano, pelo que, achou conveniente mandar repetir de novo as análises de histamina ao pescado, o qual foi feito pelo laboratório externo (S (…)), que confirmou a existência de histamina fora dos parâmetros regulamentares;
x) posteriormente, ainda a ré reconfirmou com análises e relatórios da SGS, entidade mundialmente reconhecida para estes efeitos, mantendo-se inalteráveis os resultados;
y) E em resultado, rejeitou os dois contentores na sua totalidade, comunicando por e-mail à autora que rejeitava por completo os dois contentores pelos enormes riscos de saúde pública que tal representaria, solicitando que a autora os levantasse, sob pena de ter que chamar as entidades sanitárias para a sua destruição.
z) Não houve alteração das condições de conservação de frio do pescado a bordo do navio, ou nas câmaras frigoríficas ou na fábrica da ré, o atum congelado vendido já saído de origem do Vietnam impróprio para o consumo humano de acordo com as normas europeias.
aa) O produto vendido pela reconvinda não tinha as qualidades necessárias para a realização do fim contratado, pois os lombos de atum congelado apresentavam índices de histamina superior ao limite máximo estipulado pelo Regulamento 1441/20007 (200mg/Kg), o que determinou a rejeição total do produto por parte da ré/reconvinte e consequentemente a sua destruição.
bb) A ré suportou os seguintes custos com a entrada da mercadoria em Portugal- no total de €7150.42 ( sete mil cento e cinquenta euros e quarenta e dois cêntimos):
a) despacho para entrada em entreposto no valor de €1.174,15, fact. nº. 2014/…;
b) levantamento e transporte (…), fact. 2014/…no valor de 489.89 euros;
c) despacho para entrada em entreposto, fact. 2014/… no valor de 1175.64€;
d) levantamento e transporte f(…) no valor de € 489.89, fact. 2014/…;
e)despacho de importação, assistência e controlo aduaneiro no valor de 351.14€- fact. … e fact. … e …;
f) despesas de conservação de frio F(…)-:
1.1- fact. 2014/… de 31/10/14 no valor de €726,00;
1.2- fact. 2014/… de 30/11/14 no valor de 630.00;
1.3- fact 2014/… de 31/12/14 no valor de 375.00€;
1.4- fact 2014/… de 31/12/2014- €52.47(fact. …) +315.00€(fact …) +€44.80(ft …);
1.5- ft 2015/… de 31/01/15 ( €86.80- fact …+ €542.19- fact …+87,45€);
g) transporte do levantamento para a fábrica- 610.00€;
cc) A reconvinte adquiriu à reconvinda 50 toneladas de atum pré congelado, e custou-lhe por kilo o valor de €2.85; e em virtude de o produto vendido estar impróprio para o consumo humano, tal levou à sua destruição, ficando a reconvinte com menos produto para comercializar;
dd) Na sequência de falta de resposta da autora, após comunicação de 16-2-2015 de que considerava o contrato incumprido definitivamente, a ré entregou a mercadoria para destruição à Empresa F (…).
ee) As anomalias ocorreram não obstante os fornecedores serem homologados e aprovados pela Comunidade Europeia;
ff) não obstante, antes de embarcarem no Vietnam, as mercadorias terem sido objecto de certificação pelo Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural do Vietnam [ sendo ambos os contentores ( amostras colhidas) previamente sujeitos a análise química, na sequencia da qual foi detectada histamina com valores aceitáveis e conformes aos previstos pelo Regulamento (CE) n.º 2073/2005 da Comissão de 15 de Novembro de 2005], de que cumpria as normas europeias, nomeadamente que os níveis de histamina são inferiores ao limite imposto pela Comunidade Europeia;
gg) e não obstante os documentos terem sido validados pela ré, previamente ao envio dos originais por correio urgente DHL, e enviados pela Autora, e as autoridades portuguesas competentes aceitarem a entrada dos contentores em território nacional, tendo a mercadoria passado por fiscalização sanitária aduaneira ( mera visualização, sem análise química).
ii) No final de Janeiro de 2015, após desalfandegamento definitivo, a ré reclamou junto da autora que a mercadoria entregue continha valores elevados e fora do legalmente admissível de histamina, o que não lhe permitia dar o uso previsto ao atum.
5.2.
Segunda questão.
5.2.1.
A julgadora decidiu de jure, alicerçada no seguinte discurso argumentativo:
«As regras de direito internacional privado a considerar são as resultantes do REGULAMENTO (CE) Nº 593/2008 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 17 de Junho de 2008. sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). O regulamento comunitário é uma das fontes internas do direito comunitário, conforme ressalta do artigo 249.º do Tratado da União Europeia, sendo ainda referenciado pela sua generalidade, obrigatoriedade em todos os seus elementos e aplicabilidade directa em todos os Estados-Membros, que se aplica aos contratos celebrados após 17/12/2009…
As partes não escolheram a lei substantiva (apesar da liberdade conferida pelo art. 3º de tal regulamento) limitando-se a apor a referida cláusula comercial estandardizada de Incoterms.
Rege o art. 4.º do Regulamento- sob a epígrafe de “Lei aplicável na falta de escolha”, que 1. Na falta de escolha nos termos do artigo 3.o e sem prejuízo dos artigos 5º a 8º, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo: a) O contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual;… 3. Caso resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país....
…pese embora a sede da autora vendedora se localize em França, decorre uma manifesta conexão mais estreita com Portugal, local de desembarque e entrega da mercadoria, e de sede da sociedade adquirente, sendo certo que quanto aos modos de cumprimento e às medidas que o credor deve tomar no caso de cumprimento defeituoso, deve “atender-se à lei do país onde é cumprida a obrigação” [ in casu, em território nacional], como o estabelece o nº 2 do art. 12º…
Em síntese, deve aplicar-se a lei portuguesa, acatando-se ainda a referida clausula estandardizada: as partes acordaram na aposição das condições de venda, tal como consta das facturas, o INCOTERM “CFR Leixões”…
Incoterms, ou seja, os termos ou condições de venda, que definem, nas transacções internacionais de mercadorias constituem assim as condições em que produtos devem ser exportado, e são fórmulas contratuais que definem direitos e obrigações, tanto do exportador como do importador. A importância dos Incoterms reside na determinação precisa do momento da transferência de obrigações, ou seja, do momento em que o exportador é considerado isento de responsabilidades legais sobre o produto exportado. …

A função do Incoterms e seu objectivo primeiro é, a partir da interpretação precisa dos termos utilizados nos contratos de compra e venda, promover a harmonia nos negócios internacionais, regulando (apenas) a relação entre comprador e vendedor, devendo pois, ser utilizados como cláusula contratual do contrato de compra e venda. E são apenas uma cláusula do contrato, e não o próprio contrato, pois limitamse a regular a entrega do bem, definindo o seu ponto ou local e, por extensão, seus custos e riscos.
Os Incoterms são agrupados em quatro categorias, sendo que no Grupo "C" (Transporte principal pago) que ora nos interessa, o CFR, Custo e frete traduz-se em “porto de destino designado”.
E nessa medida, o exportador deve entregar a mercadoria no porto de destino escolhido pelo importador, assegurando o transporte, donde despesas de embarque e transporte ficarem, portanto, a cargo do exportador. O importador deve arcar com as despesas de seguro e de desembarque da mercadoria…O exportador deve entregar a mercadoria a bordo do navio, no porto de embarque e a responsabilidade do exportador cessa no momento em que o produto cruza a amurada do navio/entra a bordo- no porto de destino. E esta modalidade só pode ser utilizada para transporte marítimo ou hídrico interior.
A compra e venda tem no direito português natureza real quoad effectum, operando-se neste sentido a transmissão da propriedade, em regra, por mero efeito do contrato [artigos 408º, nº. 1, 874º, 879º, alínea a), e 1317º, alínea a), todos do Código Civil…
O contrato de compra e venda é marcado por dois momentos, quais sejam: 1) a celebração do contrato constitutivo de obrigações para o vendedor e comprador; 2) efectiva transmissão da propriedade da coisa objecto do contrato pela entrega da coisa pelo vendedor ao comprador.
Nos contratos bilaterais que importam a transferência do domínio sobre certa coisa, ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, à partida o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre já por conta do adquirente (artigo 796º, nº. 1). …
É princípio fundante do direito das obrigações, o vertido no art. 406.º do CC, segundo o qual os contratos devem ser pontualmente cumpridos, só podendo modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos legalmente admitidos. Pontualidade que se não reduz ao seu cumprimento temporal, antes se configurando, mais amplamente, como a sua execução, ponto por ponto, dando guarida e satisfação a todos os deveres dele resultantes.
…o dever de entregar a coisa não se reconduz, apenas, a esse acto isolado da entrega da coisa, devendo corresponder à entrega da coisa devida, em conformidade com o programa contratual ajustado entre as partes. …
Vale neste domínio o princípio geral da boa fé que se impõe ao vendedor no acto da entrega da coisa e ao comprador, ao exigi-la (artº762º do referido diploma)…

E configura-se, na verdade, por via da entrega de atum congelado que aquando do seu embarque se encontrava com valores de histamina acima do legalmente permitido, situação de cumprimento defeituoso ou imperfeito, pelo qual, à partida, responde, presuntivamente, o devedor/vendedor (artº799º e 918ºdo CC). Presunção que este, diga-se desde já, não logrou abalar….
Em consequência, não tendo o interesse do credor obtido a adequada satisfação, não pode dizer-se que o cumprimento da obrigação da autora se tenha verificado com entrega nesses termos (artº762º 1 do CC) e, nessa mesma medida, por desconformidade com o contrato, também, a transferência do risco prevista irreleva. …«No sistema jurídico português há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o devedor está adstrito a eliminar os defeitos ou a substituir a prestação; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato. A regra que impõe este seguimento está patente no artº 1222º, nº 1, em relação ao contrato de empreitada, mas, apesar de não haver norma expressa neste sentido no contrato de compra e venda, ela depreende-se dos princípios gerais ( artºs 562º, 566º, nº 1, 801º, nº 2 e 808º, nº 1, além de ser defensável a aplicação analógica do nº 1 do artº 1222º, no que se refere à imposição desta sequência, às hipóteses de compra e venda».
Esgotadas as diligências iniciais conducentes a uma redução do preço, considerando a verificação de que ambos os lotes se encontravam inutilizados, ocorreu, efectivamente um cumprimento defeituoso - da obrigação da vendedora, que se tornou definitivo, equiparando-se ao incumprimento contratual, o que, atento o carácter sinalagmático de tal convénio, permitiu que a ré resolvesse o dito contrato. Perante esse efeito resolutivo, cessa da banda da ré a obrigação de pagamento….
O art. 799º do Código Civil, como diz A. Varela, coloca o cumprimento defeituoso da obrigação ao lado da falta de cumprimento, dentro da categoria geral da falta culposa de cumprimento a que genericamente se refere o artº 798º do mesmo…
A resolução do contrato “consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol, II, pág. 238). Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade do negócio jurídico, nos termos do art. 433 do C.C. A resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes – art. 434, nº1, do C.C.
A ré reconvinte optou pela resolução do contrato, a qual encerra a destruição da relação contratual, colocando as partes na situação que teriam se o contrato não tivesse sido celebrado.
Em caso de resolução contratual, a posição clássica e largamente dominante, é a de que a tutela se resume ao interesse contratual negativo, ou seja, ao prejuízo que o credor não teria se o contrato não tivesse sido celebrado (cf. assim, Pires e Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág.58; Antunes Varela, das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., pág.109; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed, pág. 1045 e segs…
Ora, provou-se que o produto vendido pela reconvinda não tinha as qualidades necessárias para a realização do fim contratado- apresentavam índices de histamina superior ao limite máximo estipulado pelo Regulamento 1441/20007 (200mg/Kg), o que determinou a rejeição total e consequentemente a sua destruição, sendo que nessa decorrência - a ré reconvinte suportou custos vários…que de outro modo não teria sofrido- no total de €7150.42 ( sete mil cento e cinquenta euros e quarenta e dois cêntimos).
Nessa medida, dos prejuízos alegados e elencados, à reconvinda incumbe o ressarcimento da referida quantia.»
Este discurso apresenta-se, em tese, curial, e, no caso vertente e considerando os seus contornos fáctico-circunstanciais apurados, adequado; pelo que urge corroborá-lo e chancelá-lo.
Efetivamente, do acervo factual apurado, devidamente interpretado, dimana que o produto, aquando do seu embarque no Vietnam estava já desconforme aos parâmetros fito sanitários exigíveis e, assim, em função das normas Europeias, improprio para consumo humano.
Nesta conformidade, não apenas pelas regras internacionais, como perante a legislação nacional, mostrando-se impossível e emergência dos direitos liminares do comprador, como seja, por impossibilidade lógica, a eliminação dos defeitos, e, por dissenso, a redução do preço, à ré assiste jus à resolução do contrato com os efeitos aludidos na decisão.
Aliás, a pretensão da recorrente, como ela própria admite, sempre estaria dependente da alteração do acervo factual, no sentido por ela propugnado, o que, com o se viu, não se verificou.
Improcede, brevitatis causa, o recurso.

6.
Sumariando – art- 663º nº7 do CPC.
I -Considerando as vantagens da imediação e da oralidade, a censura sobre a decisão sobre a matéria de facto apenas pode emergir se os meios probatórios invocados pelo recorrente e a interpretação que deles deve ser feita, impuseram decisão diversa.
II - A inspecção regular no Vietnam que conclui pela conformidade de algumas amostras de pescado não faz prova plena sobre a conformidade de todo o restante produto nem inelutavelmente proíbe, vg. por aplicação do disposto no nº2 do artº 393º do CC, a prova testemunhal sobre a mesma.
III - Na compra e venda defeituosa internacional se as partes não convencionarem a lei aplicável, rege a lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual ou a do país com que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita - artº 4º do REGULAMENTO (CE) Nº 593/2008 –, in casu a portuguesa.
IV -Em tal contrato, sendo impossível a eliminação dos vícios da coisa – atum impróprio para consumo - e inexistindo consenso quanto à redução do preço por motivos não imputáveis ao comprador, a este assiste jus à resolução do contrato, com as legais consequências: indemnização pelo interesse negativo - artºs 406º, 762, 799º, 801, 808º e 1222º do CC.
7.
Deliberação.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2018.10.16


Carlos Moreira ( Relator )
Moreira do Carmo
Fonte Ramos