Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/11.6TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS
Data do Acordão: 10/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 199º, DO C. PENAL E LEI N.º 67/98, DE 26/10 (LEI DA PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS).
Sumário: Não constitui crime (“gravações e fotografias ilícitas”, cfr. art.º 199º, do C. Penal) a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente.

A obtenção de fotogramas através do sistema de videovigilância existente num estabelecimento comercial, para protecção dos seus bens e da integridade física de quem aí se encontre, mesmo que se desconheça se esse sistema foi comunicado à CNPD, não corresponde a qualquer método proibitivo de prova, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentar a prática de uma infracção criminal, e não diga respeito ao “núcleo duro da vida privada” da pessoa visionada.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

A... veio interpor recurso da sentença que a condenou pela prática de um crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão.
Na procedência total do pedido de indemnização civil formulado por W... – Gestão de Áreas de Serviço, S.A., foi a arguida/demandada condenada a pagar-lhe a quantia de € 40,00 acrescida de juros de mora, desde a notificação até integral pagamento.

A razão da sua discordância encontra-se expressa nas conclusões da motivação de recurso onde refere que:
I- A prova que sustenta a condenação da arguida, porque desprovida de autorização prévia que a Comissão Nacional de Protecção de Dados deveria ter dado (arts 8°, n.º 2, e 28°, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 67/98, de 26/Out), foi obtida ilicitamente, e configura violação dos artºs 199° CP, e 18, n.º 2 e 26°, n.º 1, da C.R.P.
II- Constitui valoração ilícita de prova o reconhecimento pessoal da arguida efectuado mediante uma referência (vaga) ao visionamento de uma pretensas imagens, captados por um sistema de videovigilância, sem que se seguisse a "homologação" dessa identificação perante o MºPº, na fase de inquérito, ou se concedesse sequer a possibilidade desse visionamento pela defesa ou mesmo pelo Tribunal.
III- A prova testemunhal de que o tribunal se socorreu e a qual reconheceu como única fonte de conhecimentos dos factos o visionamento das imagens de sistema de videovigilância constitui mero depoimento indirecto, nos termos do art. 129º, nº 1 e 2 do CPP, equiparando-se o visionamento das imagens captadas por terceiros "à leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha".
IV- As testemunhas remeteram a correcta identificação da data e hora dos factos para os próprios autos, que refere horários contraditórios, pois que a fls. 13 menciona um abastecimento ocorrido em 06.10.2010 às 20:04h, e a fls. 28 um abastecimento ocorrido a 06.10.2010, às 19:08:59h.
V- Ao não produzir ou examinar as imagens pretensamente juntas aos autos foi violado o art. 355º, nº 1 CPP, que dispõe que não valem em julgamento "quaisquer provas que não tiverem sido produzidos ou examinadas nos autos", no qual se consagra o princípio do contraditório e da imediação da prova, e que visa que o tribunal possa formar a sua convicção alicerçando-se em material probatório não apresentado e junto ao processo pelos diversos intervenientes e relativamente ao qual não tenha sido exercido o princípio do contraditório (Ac. STJ de 25 de Fevereiro de 1993; BMJ 424,535).
VI- O tribunal a quo não se certificou quer da legalidade do sistema de videovigilância, quer da impossibilidade legal de visionamento das imagens por parte das pessoas que depuseram em face da Lei n.º 76/98, de 26/Out., nomeadamente os seus art. 14.º e 15.º
VII- Os factos imputados à recorrente devem ter-se como não provados, com consequente absolvição da recorrente.
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Respondeu a Magistrada do MºPº junto do tribunal a quo, concluindo pela improcedência do recurso.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Os autos tiveram os vistos legais.
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 417º do CPP, a arguida não respondeu.
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II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte, (por transcrição):
Produzida a prova e discutida a causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia … de 2010, cerca das 20h04, a arguida conduziu o veículo automóvel, marca Mitsubishi, com a matrícula … , até ao posto de abastecimento de combustíveis da firma “W…, S.A.” sito em .-.. ;
2. Uma vez ali, a arguida saiu do veículo e abasteceu o mesmo com 28,59 litros de gasolina sem chumbo 95, no valor global de € 40,00 (quarenta euros);
3. De seguida, a arguida voltou a entrar no carro, ligou a ignição e arrancou, sem ter efectuado o pagamento pelo abastecimento que fizera;
4. A arguida agiu com o propósito concretizado de fazer seu o combustível que introduziu no automóvel, sem efectuar o necessário pagamento;
5. Sabia que agia contra a vontade do proprietário do posto de abastecimento e que o combustível não lhe pertencia;
6. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
7. A W...- Gestão de Áreas de Serviço, S.A. é uma sociedade comercial que se dedica à exploração de estações de serviço de abastecimento de combustíveis;
8. No exercício da sua actividade, a W... explora o posto de abastecimento identificado em 1;
9. A arguida foi condenada, por sentença de 18.03.2005, pela prática em 16.03.2005, de um crime de injúria agravada, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
10. Por sentença de 28.06.21005, a arguida foi condenada, pela prática em 12.10.2004, de um crime de desobediência qualificado, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 2,00;
11. Por sentença de 31.03.2006, a arguida foi condenada pela prática, em 14.08.2004, de um crime de desobediência, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
12. Por sentença de 03.05.2007, a arguida foi condenada, pela prática em 02.09.2004, de um crime de burla, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de € 4,00;
13. Por sentença de 02.07.2008, a arguida foi condenada pela prática, em 19.02.2007, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 1,00;
14. Por sentença de 08.07.2008, a arguida foi condenada pela prática em 22.05.2006, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 175 dias de multa, à taxa diária de € 3,00;
15. Por sentença de 15.07.2008, a arguida foi condenada pela prática em 16.03.2006, de um crime de furto, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
16. Por sentença de 29.04.2008, a arguida foi condenada pela prática em 13.09.2005, de um crime de furto, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
17. Por sentença de 13.01.2009, a arguida foi condenada pela prática em 28.07.2005, de um crime de furto, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 8,00;
18. Por sentença de 29.10.2008, a arguida foi condenada pela prática em 03.03.2007, de dois crimes de emissão de cheque sem provisão, na pena única de 200 dias de multa, à taxa diária de € 3,00;
19. Por sentença de 30.04.2009, a arguida foi condenada pela prática em 19.02.2008, de um crime de burla, na pena de 7 meses de prisão suspensa por um ano, com regime de prova;
20. Por decisão de 07.09.2011 foi revogada a suspensão da referida pena;
21. Por sentença de 03.03.2009, a arguida foi condenada pela prática em 08.03.2007, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,00;
22. Por acórdão de 04.01.2010, a arguida foi condenada pela prática em 2007 de um crime de furto, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, na condição de em três meses efectuar o pagamento ao ofendido do montante constante do pedido de indemnização civil;
23. Por sentença de 26.05.2009, a arguida foi condenada pela prática, em 06.02.2007, de um crime de burla para a obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, na pena de um mês e 15 dias de prisão suspensa por um ano;
24. Por sentença de 21.07.2009, a arguida foi condenada pela prática, em 09.07.2009, de um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de injúria agravada, na pena única de um ano e um mês de prisão suspensa pelo mesmo período;
25. Por sentença de 18.05.2010, a arguida foi condenada pela prática, em 17.05.2008, de um crime de furto, na pena de seis meses de prisão, suspensa por um ano;
26. Por sentença de 04.04.2011, a arguida foi condenada pela prática, em 13.05.2009, de um crime de furto, na pena de cinco meses e 15 dias de prisão suspensa por um ano;
27. Por sentença de 22.09.2009, a arguida foi condenada pela prática, em 07.03.2008, de um crime de abuso de confiança, na pena de 10 meses de prisão, suspensa por um ano;
28. Por sentença de 23.11.2009, a arguida foi condenada pela prática, em 31.12.2007, de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, na pena de um ano de prisão, suspensa por um ano, com regime de prova;
29. Por sentença de 19.10.2010, a arguida foi condenada pela prática, em 25.07.2007, de um crime de furto, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
30. Por sentença de 18.11.2011, a arguida foi condenada pela prática, em 28.10.2010, de um crime de furto, na pena de 6 meses de prisão.
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Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base no documento de fls. 13 (talão comprovativo do abastecimento), conjugado com a análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento, analisada à luz das regras da experiência (artigo 127º do Código de Processo Penal).
Em primeiro lugar, foi considerado o depoimento espontâneo e credível da testemunha Licínio Barbosa Vidal, legal representante da W... – Gestão de Áreas de Serviço, S.A., que confirmou que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados a arguida abasteceu o veículo ali identificado com gasolina sem chumbo 95, no valor de € 40,00, sem proceder ao pagamento de tal abastecimento.
Esclareceu que viu as imagens constantes do CD junto aos autos e associou à arguida tanto mais que a mesma já é conhecida por ser autora deste tipo de incidentes, acrescentando que o encarregado viu a arguida pessoalmente e confirmou também que se tratava da arguida.
Por outro lado, o tribunal atendeu ao depoimento da testemunha João Paulo Russo Fernandes, gerente comercial da W..., que conhece a arguida pelo facto de a mesma já ter abastecido o veículo em que se faz circular e não proceder ao respectivo pagamento, demonstrando, por isso, ter conhecimento dos factos em causa nos autos.
Na verdade, o depoente viu as referidas imagens que constam do CD dos autos, comprovando que foi a arguida que procedeu ao abastecimento de combustível referido nos factos provados.
Relativamente aos antecedentes criminais da arguida foi considerado o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 260 e seguintes.
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APRECIANDO

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, de acordo com o estabelecido no artigo 412º, n.º 1 do CPP, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
In casu, a recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, imputando à sentença recorrida os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, por considerar que “foi a matéria de facto dada como provada de forma indevida e com recurso a meios de prova ilícitos e, exclusivamente, indirectos”.
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a)-
A recorrente, na motivação do recurso, procedeu à transcrição integral dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, todavia com base em tal transcrição não pode este tribunal reapreciar a prova produzida.
Já antes das alterações de 2007, não se podia atender à transcrição da prova apresentada/efectuada por iniciativa do recorrente porquanto, o ónus da transcrição da prova gravada cabia ao tribunal, conforme Assento de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 2/2003, de 16-01-03 (in DR, I Série, de 30-01-03), nos termos do qual sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal.
A Lei n.º 48/2007, de 29.8 mudou profundamente o regime de impugnação da matéria de facto. O legislador teve dois objectivos: tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida no recurso da decisão sobre a matéria de facto e pôr cobro ao dever de transcrição dos registos gravados. O novo regime articula-se com as regras novas sobre a documentação das declarações prestadas na audiência e o acesso dos sujeitos processuais a esta documentação. ( - Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª ed., Univ. Católica Editora, pág. 1131.)
Como anteriormente já havia decidido o STJ (por acórdão de 24-10-2002, no proc. 2124/2002, disponível in www.dgsi.pt): … o labor do Tribunal da 2ª Instância num recurso da matéria de facto não é uma indiscriminada expedição determinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (…) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida (art. 412º, n.º 3, als. a), b) e c) do CPP) e levam à transcrição (n.º 4 do art. 412º do CPP).
Se o recorrente não cumpre esses deveres não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe foi pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados, com referências às provas e respectivos suportes”.
No caso vertente, não tendo a recorrente impugnado a matéria de facto de acordo com o estabelecido nos n.ºs 3 e 4 do citado art. 412º, tem-se como definitivamente assente a factualidade fixada pelo tribunal de 1ª instância, estando este tribunal de recurso impossibilitado de a alterar, conforme o disposto no artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal, isto sem prejuízo da eventual alteração decorrente da existência dos vícios a que alude o artigo 410º, os quais sendo de conhecimento oficioso, foram também invocados pela recorrente.

b)-
Argumenta a recorrente que a sentença sob apreciação enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, concluindo que deveria ter sido absolvida.
Para fundamentar tais vícios alega que a decisão:
«- usou meio de prova ilícito (imagens de circuito de videovigilância), por falta de verificação de requisitos de legalidade;
- usou depoimentos indirectos baseados em meio de prova ilícito».

Ora, a existência destes vícios tem de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, sem recurso a elementos externos.
O artigo 410º do CPP, onde estão previstos os vícios da decisão recorrida, está intimamente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, n.º 2 do mesmo diploma, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido deixou de investigar matéria de facto relevante de tal forma que o que foi apurado não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação, deixando de observar o dever da descoberta da verdade material.
O Prof. Germano Marques da Silva fala em “lacuna” no apuramento da matéria de facto.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, porque violador dos dados do conhecimento público generalizado, consiste em erro de tal modo evidente que não escapa ao comum dos observadores. Estar-se-á perante tal erro quando da leitura da decisão impugnada, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, se conclua que os factos nela dados como provados não podem ter acontecido ou que os factos dados como não provados não podem deixar de ter acontecido, isto é, quando os factos dados como provados e/ou como não provados se revelam inequivocamente desconformes, impossíveis, ou seja, quando aqueles traduzem uma situação fáctica irreal ou utópica – (acórdão do STJ, de 11-3-2004, proferido no recurso 2674/02 deste TR).

Como resulta da fundamentação da matéria de facto, o Tribunal a quo formou a sua convicção com base no documento de fls. 13 (talão comprovativo do abastecimento) e no depoimento das testemunhas … (os quais visionaram as imagens que constam do CD junto aos autos, que comprovam ter sido a arguida que procedeu ao abastecimento de combustível referido nos factos provados), tendo explicado porque tais depoimentos se revelaram credíveis.
Desde já adiantamos que a fundamentação de facto, quer na enumeração dos factos provados, quer na motivação de facto, não apresenta qualquer erro, ou qualquer facto contrário às regras da lógica e da experiência comum, de que qualquer cidadão com formação média logo se aperceba e, é suficiente para a decisão de direito encontrada, pelo que improcedem os alegados vícios.
Acontece, que a recorrente confunde tais vícios com uma diferente convicção probatória sobre a suficiência da prova e a credibilidade e validade dos meios de prova apreciados em julgamento.
Com efeito,

b) 1-
Alega a recorrente que se desconhece quais foram as imagens do CD referidas pelas testemunhas, dado que as mesmas não foram reproduzidas/visionadas em audiência de julgamento, tendo sido violado o disposto no artigo 355º, n.º 1 do CPP.

O aludido CD foi indicado como prova documental na acusação (fls. 110), ainda que tenha sido junto aos autos posteriormente (fls.129), mas ainda assim em momento anterior à prolacção do despacho previsto no artigo 311º do CPP.
Ou seja, ainda que o aludido CD constituísse o único meio de prova, constando nos autos desde a fase de inquérito, teve a arguida possibilidade de o questionar em momento anterior à audiência de julgamento e na própria audiência.
Na verdade, só valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, as provas que tenham sido produzidas ou examinadas em audiência, face ao estabelecido no artigo 355º do CPP, ressalvando-se as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência seja permitida, nos termos dos artigos 356º e 357º do mesmo Código.
Porém, tratando-se de prova documental constante do processo, ainda que não tenha sido examinada em audiência de julgamento, nada obsta a que possa servir para formar a convicção do tribunal, pois está sempre garantido aos diversos sujeitos processuais o exercício do contraditório - cfr. Ac. do STJ de 23-2-2005, in CJ/STJ, tomo I, pág. 211.
Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 87/99, de 10-2-99, ao não considerar inconstitucional a norma do artigo 355º do CPP, interpretada no sentido de que os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência de julgamento, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.
Ora, não pode a recorrente invocar, neste momento, que não lhe foi possível exercer o contraditório relativamente a tal prova, porque assim não aconteceu.
Em audiência de julgamento, a arguida remeteu-se ao silêncio; mas, se tal direito não a pode prejudicar (artigo 343º, n.º 1 do CPP), o ter optado por não relatar ao tribunal a sua versão sobre os factos que lhe eram imputados (designadamente referindo-se às imagens constantes nos autos, mencionadas pelas testemunhas) não lhe confere qualquer benefício.
De qualquer forma, tendo as testemunhas ouvidas em audiência declarado que visualizaram as imagens constantes em tal CD, e que as mesmas comprovam ter sido a arguida quem procedeu ao abastecimento de combustível, foi esta prova apreciada livremente pelo tribunal nos termos do artigo 127º do CPP.
Improcede, assim, nesta parte a argumentação da recorrente.

b) 2-
Mais alega a recorrente que as referidas imagens, captadas mediante gravação em suporte audiovisual, foram obtidas ilicitamente, com violação dos artigos 199º do CP, e 18º, n.º 2 e 26°, n.º 1, da C.R.P.
E acrescenta, “mesmo que a captação de tais imagens fosse legalmente admissível (…) teria de ser objecto de uma prévia autorização por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados, que delimitaria a finalidade da captação de imagens e o tratamento das mesmas, nos termos dos artigos 8º, n.º 2, 28º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 67/98, de 26/out e do artigo 3º da Lei n.º 1/2005, de 10 de Janeiro”; nos presentes autos nada consta acerca da existência de tal autorização e, na falta de autorização da CNPD a captação de imagens deverá ter-se como não autorizada, e logo, ilícita, e assim sendo, os meios de prova obtidos mediante tal captação terão de ser considerados legalmente inadmissíveis.

Como já mencionado, o tribunal a quo formou a sua convicção com base no documento de fls. 13 (talão comprovativo do abastecimento) e no depoimento das testemunhas … , prova que apreciou livremente.
No entanto, face à questão suscitada pela recorrente cumpre-nos dizer o seguinte:
Procedeu este tribunal ao visionamento das imagens constantes do CD junto aos autos, delas resultando que foram captadas em posto de abastecimento de combustível, com recurso a sistema de videovigilância.
Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º), indicando o artigo 126º quais as provas que são nulas, e como tal, não podem ser utilizadas: as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas (n.º 1); enumerando o n.º 2 quais as provas obtidas que, mesmo com consentimento delas, são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas e, o n.º 3 quais as provas que são nulas, não podendo ser utilizadas (as obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações), se não houver o consentimento do respectivo titular.
A proibição de prova tem consagração constitucional, estatuindo o artigo 32º, n.º 8 que «São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral das pessoas, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência».
Ainda o artigo 26º da CRP garante que a todos é reconhecido o direito à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, estabelecendo o artigo 167º, n.º 1 do CPP que as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.

Ora, o tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como o tratamento por meios não automatizados, e ainda, o caso de videovigilância e outras formas de captação, tratamento e difusão de sons e imagens que permitem identificar pessoas, estão sujeitos à Lei n.º 67/98, de 26.10 (Lei da Protecção de Dados Pessoais), nos termos da qual, os dados considerados sensíveis implicam o controlo prévio por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), através da competente notificação e autorização do seu tratamento/recolha – cfr. artigos 7º, 8º, 27º e 28º.
O uso das tecnologias de informação, das comunicações e da videovigilância pode conflituar com o direito à intimidade e à vida privada. Todavia, “a videovigilância surge, simultaneamente, como uma imposição das exigências de segurança; uma forma do desenvolvimento da tecnologia da segurança e também uma consequência de novas formas de abordagem do fenómeno de criminalidade.
Assim é lógica a conclusão de que os fotogramas obtidos através do sistema de videovigilância existentes num local de acesso publico e para protecção dos bens e da integridade física de quem aí se encontre, mesmo que se desconheça se esse sistema foi comunicado à CNPD, não correspondem a qualquer método proibitivo de prova, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao “núcleo duro da vida privada” da pessoa visionada.” - cfr. decisão de 28-9-2011 proferida no proc. 22/09.6YGLSB.S2 (STJ), relator Cons. Santos Cabral, in www.dgsi,pt.
Em consequência, quanto ao crime p. e p. pelo artigo 199º do CP (Gravações e fotografias ilícitas), vem a jurisprudência entendendo que não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente.
Como foi decidido no Ac. RLx de 4-3-2010, in www.dgsi.pt «A obtenção de fotogramas através do sistema de videovigilância existente num estabelecimento comercial, para protecção dos seus bens e da integridade física de quem aí se encontre, mesmo que se desconheça se esse sistema foi comunicado à CNPD, não corresponde a qualquer método proibitivo de prova, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentar a prática de uma infracção criminal, e não diga respeito ao “núcleo duro da vida privada” da pessoa visionada».
Por conseguinte, ainda que no caso vertente a reprodução das imagens obtidas através do sistema de videovigilância tivesse constituído o único meio de prova – o que não aconteceu – sempre seria admissível e objecto de valoração.
Improcede, na totalidade, o recurso.
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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Negar provimento ao recurso.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

*****
Coimbra,