Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
743/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR.ª REGINA ROSA
Descritores: ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
RECONHECIMENTO DA INEXISTÊNCIA DE UMA SERVIDÃO DE PASSAGEM: ÓNUS DA PROVA .
Data do Acordão: 05/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTº 4º, Nº 2, AL. A), DO CPC E 343º, Nº 1, DO C.CIV.
Sumário:

I – O facto de há mais de 20 anos ser utilizado um caminho de pé e de carro, existindo nele uma faixa que se encontra batida e sem vegetação, é por si só revelador, por forma inequívoca, da existência de uma serventia a onerar esse prédio e em proveito de outro prédio .
II – Nessa medida e tendo-se provado que os R.R. e seus antecessores têm vindo a exercer, continuadamente, poderes de facto de utilização para passagem, conservação e beneficiação sobre esse caminho, imbuídos de uma convicção de estarem a agir como se exercessem um direito próprio de servidão, não pode ser proferida decisão judicial a declarar que sobre o prédio dos A.A. não incide qualquer servidão de passagem a favor do prédio dos R.R. .
III –As acções de simples apreciação visam unicamente obter uma declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto . Tratando-se de uma apreciação sob a forma negativa, compete ao R. a alegação e prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, sem que se imponha a formulação de um pedido –artº 343º, nº 1, do C. Civ..
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- AA, deduziu a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário, contra BB e esposa CC, alegando, em síntese, que é dono de um prédio rústico, adquirido por sucessão mortis causa e também por usucapião. Por seu turno, os réus são donos de um pinhal, no qual construíram a sua casa de habitação, que confina com o prédio do autor, pelos seus lados sul e poente. O autor, no seu prédio, tem um caminho de pé e carro para seu uso exclusivo. Os réus, há cerca de 3 anos e sem autorização do autor, partiram parte de um penedo situado no prédio deste e prolongaram o dito caminho, por forma a abrirem um acesso à sua casa de habitação. Desde então, têm vindo a afirmar que existe uma servidão de pé e carro que onera o prédio do autor em benefício do seu prédio, servidão essa cuja existência o autor não aceita e contesta.
Por fim, alega o autor que os réus colocaram brita no dito caminho, e depositaram areia em parte do seu prédio.
Concluindo, solicita o autor a declaração do direito de propriedade sobre o seu prédio, a declaração que sobre tal prédio não incide qualquer servidão de passagem ou outra a favor do prédio dos réus, e a condenação dos mesmos a retirarem a brita e a areia que colocaram no caminho e no seu prédio.

1.2. Citados, os réus contestaram, afirmando a existência de uma servidão de passagem de pé e carro (incluindo veículos automóveis) que onera o prédio do autor e outros e beneficia o seu prédio, servidão essa constituída por usucapião. Daí que o acto de colocação de brita, enquanto obra necessária para conservação da servidão, seja perfeitamente lícito.
Por fim, alegam que a areia, colocada no prédio do autor com a sua autorização, já foi removida.
Requereram a intervenção principal provocada de vários interessados, que veio a ser liminarmente indeferida.
Respondeu o autor, impugnando a factualidade relativa à existência da servidão invocada pelos réus.

I.3 - Foi proferido despacho saneador, procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e elaborou-se base instrutória, actividade que não mereceu qualquer censura.
Realizada a audiência final, respondeu-se aos quesitos sem qualquer reparo das partes, após o que foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a presente acção, declarando-se o autor proprietário do prédio identificado - prédio constituído por pinhal, sito ao Garfanho, freguesia de Tonda, a confrontar do norte e nascente com António Brás da Costa, do sul com Maria da Encarnação de Lemos, e do poente com Manuel Cardoso Pessoa, inscrito na matriz sob o art. 1502º, e absolvendo-se os réus do restante pedido contra eles formulado pelo autor.

I.4- Inconformado com o assim decidido, interpôs o autor recurso de apelação, concluindo as alegações pela seguinte forma:
1ª- Os recorridos alegam que a servidão de passagem de pé e carro se desenvolve pelos prédios de diversos pessoas, tendo sentido necessidade de as chamar e foi-lhes dada a possibilidade de deduzirem reconvenção; sem intervenção e também sem reconvenção, a decisão não obriga as demais pessoas donas dos terrenos por onde os RR. dizem passar a pretensa servidão;
2ª- A orientação alegada e dada por provada é meramente genérica, não referindo o “sítio” do prédio por onde passa, pelo que não pode considerar-se existir uma servidão que não seja determinada, apurada ou concretizada, e também não foram alegados os factos capazes de concretizar a pretensa servidão e portanto por onde se revelam os sinais visíveis e permanentes;
3ª- Se a alegação do lugar por onde deve passar a servidão tem interesse na constituição de uma servidão nova, certamente que o deve ter no reconhecimento das já existentes.

I.5- Os RR. contra-alegaram, batendo-se pela manutenção do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
É a seguinte a factualidade que a 1ª instância deu como provada, não posta em causa no recurso:
1.1. O autor é dono e possuidor de um prédio constituído por pinhal, sito ao Garfanho, freguesia de Tonda, a confrontar do norte e nascente com António Brás da Costa, do sul com Maria da Encarnação de Lemos, e do poente com Manuel Cardoso Pessoa, inscrito na matriz sob o art. 1502º;
2.2. Os réus são donos de um pinhal, sito ao Garfanho, freguesia de Tonda, a confrontar do norte e nascente com António da Silva Pais, e do sul e poente com o autor, inscrito na matriz sob o art. 1500º;
3.3. A ré Maria Emília de Almeida Brás da Costa Gomes construiu, há mais de 20 anos, a sua casa de habitação, de rés-do-chão e primeiro andar, no prédio descrito no ponto anterior, local em que os réus habitam, fazendo quintal no terreno adjacente;
4.4. Atravessando o pinhal referido no ponto 1.1., existe um caminho de pé e carro, que se orienta no sentido sul/norte até uma lage por sobre um penedo, que fica a norte de tal pinhal;
5.5. Há cerca de 3 anos, os réus, sem autorização do autor, partiram parte de um outro penedo situado no prédio descrito no ponto 1.1., sensivelmente a poente do penedo ou lage referidos no ponto anterior, e afastaram para poente as pedras resultantes do corte;
6.6. Foi efectuada a continuação do caminho referido no ponto 4.4. até à casa de habitação aludida no ponto 3.3.;
7.7. Em Agosto de 2001, os réus, sem autorização do autor, descarregaram brita e saibro pelo caminho referido no ponto 4.4. e pela continuação aludida no ponto anterior, espalhando-a e nivelando e dando consistência ao solo;
8.8. Há cerca de 3 meses, os réus depositaram um monte de areia a norte do pinhal descrito no ponto 1.1., sobre o penedo ou lage aludido no ponto 4.4., areia essa que vêm utilizando na construção de uma varanda, permanecendo aí parte da mesma;
9.9. O caminho referido no ponto 4.4. também é utilizado pelo autor;
10.10. Os réus efectuaram o descrito no ponto 5.5. para melhorarem o acesso ao prédio referido no ponto 2.2.;
11.11. Um dos dois acessos da via pública ao prédio descrito no ponto 2.2. inicia-se na estrada pública (em direcção ao Outeiro de Tonda), desenvolvendo-se por vários pinhais, incluindo o descrito no ponto 1.1., aí existindo uma faixa batida e sem vegetação, com 2,5 metros de largura e, nas curvas mais acentuadas, 3,5 metros de largura;
12.12. Os réus e antepossuidores transitavam e transitam sobre o caminho descrito no ponto anterior a pé, de carro de bois, de tractor, de veículo ligeiro de mercadorias, e de veículo automóvel;

13.13. O trânsito de carro de bois referido no ponto anterior destinava-se a facultar aos réus a recolha de estrumes, lenhas e madeiras no prédio descrito no ponto 2.2.;

14.14. O trânsito de tractor e de veículo ligeiro de mercadorias referido no ponto 12.12. destinou-se a transportar para o prédio descrito no ponto 2.2. os materiais necessários à construção da casa referida no ponto 3.3.;
15.15. O trânsito a pé referido no ponto 12.12. destinava-se a facultar aos réus a recolha de estrumes, lenhas e madeiras no prédio descrito no ponto 2.2.;
16.16. O trânsito a pé e de veículo automóvel referido no ponto 12.12. destina-se a facultar a utilização da casa de habitação aludida no ponto 3.3., e a conduzir para a mesma lenhas, matos e colheitas;
17.17. O trânsito referido nos pontos 12.12. a 16.16. é efectuado há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, e sem interrupção;

18.18. Ao efectuarem o trânsito referido nos pontos 12.12. a 17.17., os réus e seus antepossuidores estavam convictos de exercerem um direito de passagem, e ignoravam lesarem direitos de outrém;

19.19. A areia referida no ponto 8.8. já foi removida.

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II.2 - de direito
A questão que cumpre apreciar, considerando as conclusões acima transcritas, é a de saber se se mostra constituída, por usucapião, uma servidão de passagem de pé e carro a onerar o prédio do A./recorrente e em benefício do prédio dos RR.. E sendo assim, se se impunha, por via de reconvenção, pedido nesse sentido, bem como a intervenção de todos os proprietários dos prédios que igualmente beneficiam da mesma servidão.
O recorrente insurge-se contra o facto de não ter sido alegada uma orientação certa, concreta e precisa da servidão, sustentando ainda que não ficaram provados sinais visíveis e permanentes que revelem a existência de uma servidão aparente.
Os factos materiais acima descritos tiram-lhes razão neste aspecto.
Na realidade, ficou provada a existência de um caminho de pé e carro a atravessar o pinhal que constituiu o prédio do A., caminho que se orienta no sentido sul/norte até uma lage por sobre um penedo que fica a norte desse pinhal. E um dos acessos à via pública ao prédio dos RR., inicia-se na estrada pública, desenvolvendo-se por vários pinhais, incluindo o atrás referido, existindo aí uma faixa batida e sem vegetação, com 2.5 metros de largura, e nas curvas mais acentuadas, 3,5 metros de largura (item II.1-1.1, 4.4 e 11.11).
Por conseguinte, e em nosso ver, está suficientemente concretizado o local onde existe a passagem ou trânsito utilizada pelos RR. através do prédio do A. para acederem à via pública.
Por outro lado, e como bem se observa na sentença em face do que se provou (item II.1-12.12 a 18.18), “(…) no caso sub iudice demonstrou-se que os réus e seus antecessores têm usado o caminho em causa, que atravessa o prédio do autor, para passarem a pé, de carro de bois, de tractor, de veículo ligeiro de mercadorias, e de veículo automóvel, por forma a amanharem e retirarem proveito do seu prédio, a transportarem para o mesmo os materiais necessários à construção da sua casa de habitação, e a acederem e utilizarem tal casa. Tal trânsito tem sido efectuado há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, e sem interrupção, sendo certo que os réus e seus antecessores estavam convictos de exercerem um direito de passagem, ignorando lesarem direitos de outrem”.
Ora, pelo art.1548º/C.C., as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião, considerando-se não aparentes as servidões que não se revelem por sinais visíveis e permanentes.
Daqui resulta, pois, que as servidões não aparentes, por não se revelarem por sinais visíveis e permanentes, não podem ser adquiridas por usucapião.
Na situação em análise, o facto de há mais de 20 anos ser utilizado o dito caminho de pé e carro, existindo nele uma faixa que se encontra batida e sem vegetação, é por si só revelador, por forma inequívoca, da existência de uma serventia a onerar o prédio do A. e em proveito do prédio dos RR..
Conforme se entendeu na sentença – entendimento que merece a nossa concordância - “(…)os réus e antecessores têm vindo a exercer continuadamente poderes de facto, de utilização para passagem, conservação e beneficiação, sobre o dito caminho, imbuídos de uma convicção de estarem a agir como se exercessem um direito próprio de servidão. Conclui-se, pois, que os réus e antecessores, reunindo na sua acção sobre o dito caminho os dois elementos da posse (corpus e animus), deverão ser considerados possuidores do mesmo. Posse essa que se mostra acompanhada da evidência de sinais, visíveis e permanentes, nos prédios onde passa o caminho, e que revelam a existência da passagem. Existem, pois, sinais visíveis e permanentes da servidão, pelo que, como já se referiu, a mesma não se caracteriza como não aparente – arts.1293º, al.a) e 1548º/C.C.”. Tal posse, por outro lado, sendo pública e pacífica, prolonga-se já há mais de 20 anos (…) estes (os RR.) revelam-se titulares do direito que invocam - o direito de servidão predial de passagem de pé e carro, incluindo veículos automóveis, incidente sobre o prédio do autor, e em benefício do seu prédio - por o terem adquirido originariamente por via da usucapião (cfr. art. 1287º/ C.C.)”.
Na sequência, concluiu-se que o pedido principal do autor - o de declaração de que sobre o seu prédio não incide qualquer servidão de passagem ou outra a favor do prédio dos réus – se revela improcedente, o mesmo sucedendo com a pretensão de condenação dos réus a retirarem a brita que colocaram no caminho.
Como vimos, o apelante sustenta que os RR.deveriam ter deduzido reconvenção, e que ocorre uma situação de litisconsórcio necessário passivo, uma vez que a servidão de passagem se desenvolve através de prédios de diversas pessoas.
Também aqui lhe falta razão.
Inicialmente, os RR. suscitaram o incidente de intervenção principal dos titulares dos prédios onerados, e a final pediu que se declarasse constituída a referida servidão de passagem.
Ambas as pretensões foram indeferidas, por se ter entendido que os RR. não formularam pedido reconvencional nesse sentido, considerando-se não escrito o “pedido” de declaração de constituição da servidão. Aliás, os próprios RR. afirmaram não terem deduzido qualquer reconvenção.
Na verdade, e como acertadamente se ponderou na sentença, “o expediente processual a que o autor lançou mão revela-se como uma acção de simples apreciação negativa, destinada a afirmar que a servidão de passagem invocada pelos RR. não se encontra constituída. E em tal acção, incumbe aos RR. demonstrar que a dita servidão se constituiu, o que se traduz, in casu, na alegação e prova de que a mesma se constituiu por usucapião”.
As acções de simples apreciação visam unicamente a obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Ao pedir que se declare que sobre o seu prédio não incide qualquer servidão de passagem ou outra a favor do prédio dos RR., a presente acção não pode deixar de classificar-se de simples apreciação sob a forma negativa (art.4º/2-al.a),C.P.C.).O A. tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a constituição dum direito de servidão a onerar o seu prédio. Neste tipo de acções o fim único da actividade jurisdicional é a apreciação. Cfr. A. dos Reis, «C.P.C. anotado», Vol.I, pág.22
Ora, por aplicação da regra estabelecida no art.343º/1,C.C.,compete ao réu a alegação e prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. Alegando uma parte um facto negativo, a parte contrária é que terá de provar o facto positivo que se lhe opõe. Isto sem que se imponha a formulação de um pedido.
No caso concreto, o A. não tinha de provar a inexistência da falada servidão – facto negativo. Os RR. é que tinham de provar, como fizeram, que estava constituída, por usucapião, a servidão de passagem em causa – facto positivo.
Nesta medida, a acção necessariamente que teria de improceder.
Por conseguinte, e sem mais considerações, improcede em toda a linha o recurso do autor, confirmando-se, por correcta e legal, a decisão recorrida.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença apelada.
Custas pelo apelante.
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COIMBRA,