Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1923/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: SIMULAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 256º, N.º 1, AL. B) E N.º 3, DO C. PENAL E 23º DO RJIFNA
Sumário: I- A simulação em negócio constitui realidade conceptual distinta da falsidade de documento. É um vício interno dos actos jurídicos, contrariamente à falsificação, que é um vício externo do acto jurídico, pois verifica-se em relação ao próprio título escrito.
II- Na redacção saída da revisão do C. Penal de 1995 a simulação não é punida no âmbito da falsidade intelectual. A simulação do negócio não é punível.

III- E se o preço declarado for superior ao real, não havendo prejuízo para o Estado, está também afastado o crime de fraude fiscal.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Findo o inquérito preliminar, o digno magistrado do MºPº deduziu acusação (fls. 68 -71) contra o arguido A..., imputando-lhe a prática, em concurso efectivo, de dois crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, n.º 1 al. b) do C Penal.
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Notificado da acusação, o arguido requereu a abertura da instrução, alegando que a simulação de preço não constitui crime, nem mesmo, no caso, para efeitos fiscais, uma vez que não causou prejuízo ao Estado.
Finda a instrução, após debate, foi proferido despacho de não pronúncia.
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Recorre o digno magistrado do MºPº do referido despacho de não pronúncia, terminando a motivação com as seguintes CONCLUSÕES:
1 — O Ministério Público imputou ao arguido a prática de dois crimes de falsificação, previstos no art. 256º nº 1 b) e 3 do C. Penal.
2 — Radica tal imputação no facto do arguido, em duas ocasiões distintas, ter nos Serviços de Finanças e Cartório Notarial, indicado como de aquisição, um preço superior ao efectivamente pago, levando a que tal preço ficasse a constar do conhecimento de sisa e da escritura pública de compra e venda de metade indivisa de um prédio rústico.
3 — O arguido utilizou este estratagema com o intuito de prejudicar/dificultar, torrando-o mais oneroso, o exercício do direito de preferência que existia a favor de um comproprietário do terreno indiviso que adquiria na ocasião, e dessa forma consolidar a sua posição de adquirente.
4 — Os crimes de falsificação imputados assentam no facto do arguido ter falsamente declarado um preço que sabia não corresponder á realidade, visando, dessa forma que, dos documentos públicos referidos ficasse a constar o mesmo, sendo que tal facto, falso, se apresentava com relevância jurídica inquestionável, o que, em termos de enquadramento penal nos leva par ao art. 256º, nº 1, b) do C. Penal.
5 - O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 256º, nº 1, b) do C. Penal e 308º, n.º1 do C.P.P., devendo ser revogado e substituído por outro que determine a pronúncia do arguido como autor dos dois crimes imputados na acusação.
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Respondeu o arguido pugnado pela manutenção da decisão recorrida, renovando os argumentos que já tinha invocado no requerimento de abertura da instrução. Mais alega que no caso nenhum dos eventuais preferentes foi prejudicado, tanto que renunciaram ao eventual direito, tendo a queixa sido apresentada pelo marido da vendedora que pretende enriquecer, prevalecendo-se do preço declarado para receber maior fatia nos bens do casal.
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No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual pondera, em resumo: a questão não é tanto a de saber se a simulação relativa ao preço do imóvel pode valer como falsificação intelectual penalmente relevante, analisada de forma isolada e desfasada do seu suporte documental, mas, mais do que isso, saber até que ponto a divergência entre a vontade real e a declarada traduz e deve ser perspectivada como expressão indiciária de uma declaração intencionalmente desconforme com a realidade. E quando assim equacionada a resposta só pode ser afirmativa, devendo assim o recurso proceder.
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Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, cumpre conhecer e decidir.
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Conforme resulta da acusação pública, que nesta parte não é questionada, os factos constitutivos dos crimes imputados ao arguido traduzem-se, em resumo, no seguinte:
Tendo pago, pela compra de metade indivisa de determinado prédio rústico, a quantia global de € 5.985,99 o arguido declarou, quer no conhecimento da Sisa, quer na escritura pública de compra e venda que titula o contrato, ter pago a quantia de € 24.940,00, procurando, desse modo, “dificultar o exercício de qualquer eventual direito de preferência, devido ao facto de o prédio em causa fazer parte de uma realidade indivisa.
Não está em causa a referida matéria de facto indiciada, mas tão-só apurar se tal matéria integra o crime de falsificação de documento.
Trata-se portanto, no caso, de uma típica simulação de preço, em contrato, tal como é definida, para efeitos civis, pelo art. 240º do C. Civil.
Sendo pois a questão a decidir a de saber se a simulação preenche os elementos do tipo objectivo do crime de falsificação agora previsto no artigo 256º, n.º 1 al. b) do C. Penal vigente (falsidade intelectual).
A simulação em negócio constitui realidade conceptual distinta da falsidade de documento.
“A falsidade nada tem a ver com o negócio jurídico realizado, e supõe sempre, ou uma desarmonia entre a declaração e o que consta do documento (falsidade intelectual) ou uma suposição ou viciação do próprio documento (falsidade material), enquanto que a simulação (divergência entre vontade real e declarada) incide sobre o próprio acto jurídico; e é anterior cronológica e logicamente à manifestação de vontade. Pode, portanto, uma escritura falsa dizer respeito a um acto simulado e uma escritura não falsa conter acto simulado” - Pires de Lima/Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, Vol. I, Coimbra, 1961, p. 334, em conformidade com a doutrina dominante.
A simulação constitui um vício interno dos actos jurídicos, contrariamente à falsificação, que é um vício externo do acto jurídico, pois verifica-se em relação ao próprio título escrito.
A falsidade só se corporiza durante a feitura do documento enquanto a simulação, sendo um desencontro intencional entre a vontade declarada e a vontade real, existe antes da feitura ou outorga do documento.
A simulação diz respeito à divergência entre a vontade real e a declarada, sendo o documento que a incorpora verdadeiro porque retrata a declaração em si. Não constitui uma declaração de facto falso, mas uma declaração de vontade falsa. Não diz respeito ao documento que titula o negócio, mas ao conteúdo do negócio. Podendo dizer-se que a simulação ofende a verdade moral mas não a fé pública, como sucede com a falsidade.
Nesta perspectiva, o C. Penal de 1886 punia a simulação (no artigo 455º) como um crime contra a propriedade, autónomo do crime de falsificação de documento.
Na redacção originária do Código Penal 1982, de acordo com o seu autor, Eduardo Correia (Actas, p. 242) a simulação era punida pelo artigo 233º, n.º2. Neste sentido se pronunciaram também Helena Moniz, O Crime de Falsificação, p. 199, sustentando que a simulação era punida como falsa documentação indirecta; Marques Borges, Dos Crimes de Falsificação, p. 81 e sgs.; Maia Gonçalves, C. Penal Português em anotação ao citado art. 133º, nota 2; AC. RC publicado na CJ, Ano VIII, tomo 2, p. 62.
Em sentido contrário em parecer publicado na C. J., Ano VIII, t. 3, p. 21, pronunciaram-se, porém, os Professores Figueiredo Dias/Costa Andrade. Entendimento que encontrou eco na jurisprudência: Ac. STJ de 09.11.1983, BMJ 331º, p. 312, também disponível em http://www.dgsi.pt com o n.º convencional JSTJ00002537; o Ac. RP de 30-11-1994, http://www.dgsi.pt
No entanto com a Reforma do C. Penal de 1995, operada pelo DL D.L. 48/95, desapareceu (do agora artigo 257º) qualquer norma equivalente ao antigo n.º2 do artigo 233º. Pelo que, como já advertia Helena Moniz, na 1ª impressão da ob. cit., p. 199, referindo-se ainda ao Projecto, “tudo leva a crer que o legislador pretende descriminalizar definitivamente a simulação”.
Na verdade, depois da citada evolução e dúvidas suscitadas na vigência da redacção originária do CP 82, não existindo agora qualquer disposição equivalente ao antigo art. 233º, n.º2, nem tão-pouco, nas várias alíneas relativas à tipificação do crime de falsificação, qualquer referência à simulação de negócio, deve presumir-se (art. 9º do C. Civil sobre a interpretação da lei) que, se o legislador não se lhe referiu expressamente, vigorando em direito penal um rigoroso princípio da tipicidade, foi porque entendeu que não se justificava a sua eleição como matéria criminalmente relevante.
Assim, no sentido de que no regime vigente (após a revisão do CP de 95) a simulação de negócio não é punível, v.: Helena Moniz, Comentário Conimbricence ao C.P., tomo II, p. 678, Maia Gonçalves C. Penal Anotado, 15ª ed. P. 796; Simas Santos/leal Henriques, C. Penal, 2ª ed., 2º Vol. P. 729.
Conclui-se pois dentro do referido entendimento que na redacção saída de revisão de 1995 a simulação não é punida no âmbito da falsidade intelectual.
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Por outro lado, uma vez que no caso em apreço o preço declarado foi superior ao real, tendo sido arrecadado imposto superior ao devido, também não se verifica qualquer prejuízo para o Estado. Pelo que está igualmente afastado o crime de fraude fiscal – art.º 23 do RJIFNA e 103 do RGIT – que pressupõem que a simulação do valor tenha sido feita com prejuízo para o Estado.
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Pelo exposto decide-se negar provimento ao recurso. -------
Sem custas.