Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/02.6TAVGS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: FALTAS JUSTIFICADAS
JUSTIFICAÇÃO DA FALTA
ENTIDADE PATRONAL
Data do Acordão: 06/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 31,35º,37º CP , 116º,117º CPP
Sumário: 1. A justificação de uma falta exige a verificação de requisitos formais e substanciais.
2. Os deveres jurídicos em confronto — dever de comparecer à diligência para que tinha sido devidamente convocado e dever de subordinação à entidade patronal — não se podem considerar equivalentes e muito menos que este último se sobreponha àquele.
3. Com efeito, a defesa da ordem jurídica impõe a todos a colaboração com a justiça e essa colaboração, dado o interesse público em jogo, maxime a defesa do Estado de Direito, só em casos muito particulares pode ceder perante interesses particulares.
Decisão Texto Integral: No processo acima identificado, o recorrente E……………….foi arrolado como testemunha.

Em 2 de Maio de 2007 foi pessoalmente notificado

Para comparecer neste Tribunal, no próximo dia 11-06-2007, às 15:30 horas, a fim de ser ouvido em audiência de julgamento; em caso de adiamento, fica desde já designado o dia 15-06-2007, às 09:30 horas, do qual fica desde já notificado.

Da advertência de que, caso falte e não justifique a falta no prazo legal, (por motivo previsível: com cinco dias de antecedência; por motivo imprevisível: no dia e hora designados - art.º 117º, n.º 2 do C.P.P.), fica sujeito ao pagamento de uma soma entre 2 e 10 U.C's (U,C = € 96,00), sem prejuízo de vir a ser ordenado a sua detenção pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem assim, de ser condenado no pagamento das despesas ocasionadas pela sua não comparência, nomeadamente, das relacionadas com notificações, expediente e deslocação de pessoas - art.º 116º n.º 1 e 2 do C. P. Penal.

Da comunicação deve constar, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento. Os elementos de prova da impossibilidade do comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem os mesmos ser apresentados até ao 3º dia útil seguinte. Não podem ser indicadas mais de três testemunhas. – n.ºs 2 e 3, do art.º 117º do C.P. Penal.”

O recorrente compareceu em 11 de Junho de 2007.

O julgamento iniciou-se e foi interrompido, tendo a M.ma Juíza marcado a continuação do mesmo para 21 de Junho de 2007.

O recorrente foi no acto notificado para a nova data.

Em 14 de Junho de 2007 juntou ao processo um requerimento com o seguinte teor:

“E…………………….., tendo sido notificado para comparecer neste Tribunal no próximo dia 21/0612007, pelas 10:00hs, a fim de ser ouvido como testemunha em audiência de julgamento, vem expor e requerer a V. Exa. o seguinte:

O requerente na data designada para julgamento encontra-se ausente do país a serviço da sua entidade patronal, no período entre o dia 19/06/07 e 22/06/2007, já não podendo adiar a viagem, uma vez que já tem o bilhete.

Assim, vem requerer a V. Exa. a justificação da referida falta e se digne marcar Uma nova data a fim de ser ouvida.”

Juntou cópia de bilhete de avião, com partida para os Açores no dia 20 de Julho e regresso no dia 22 do mesmo mês.

Apreciando o requerimento, o tribunal proferiu em 21 de Junho o seguinte despacho:

“a) A testemunha E………………… foi regularmente notificada da presente audiência de Julgamento, no passado dia 11-06-2007, data em que o mesmo se encontrava presente neste Tribunal aquando da primeira secção deste julgamento;

b) Que na altura em que foi notificado, pela testemunha nada foi dito quanto à impossibilidade de comparência nesta data;

c) Que o motivo invocado no requerimento de fls. 272, não configura uma causa de impossibilidade de comparência, visto que o seu dever profissional não é superior ao dever de cumprir notificações judiciais.

Deste modo, indefere-se o requerido e consequentemente não se considera justificada a falta, condenando-se o faltoso no pagamento de uma multa de 2 Uc's, devendo mesmo ser notificado pessoalmente, por intermédio da autoridade policial para comparecer no próximo dia 04-07-2007 às 15:00 horas, para continuação desta audiência de julgamento.”

Notificado deste despacho, o recorrente apresentou em 28 de Junho requerimento com o seguinte teor:

“E………………………………, tendo sido notificado para comparecer neste Tribunal no próximo dia 04/07/2007, pelas 15:00 horas, afim de ser ouvido como testemunha em audiência de julgamento, vem expor e requerer a V.Exa. o seguinte:

O requerente na data designada para julgamento encontra-se ausente do país a serviço da sua entidade patronal, no período compreendido entre 30/06/2007 e 18/07/2007, já não podendo adiar a viagem, uma vez que já tem bilhete.

Assim, vem requerer a V. Exe. a justificação da referida falta e se digne a marcar uma nova data afim de ser ouvida.”

Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho (4 de Julho de 2007):

“Considerando que:

a) A testemunha E………………………….. foi regularmente notificada da presente audiência de Julgamento, no passado dia 27-06-2007;

b) Que o motivo invocado no requerimento de fls. 280 a 282, não configura uma causa de impossibilidade de comparência, visto que o seu dever profissional não é superior ao dever de cumprir notificações judiciais.

Deste modo, indefere-se o requerido e consequentemente não se considera justificada a falta, condenando-se o faltoso no pagamento de uma multa de 2 UC's (art.º 116° e 117°, do C.P.C), devendo ser emitidos mandados de detenção, ao abrigo do disposto 116°, n° 2, do CPP, pelo tempo indispensável à realização da diligência, a fim de a testemunha comparecer no dia 20 de Julho de 2007, pelas 9:30 horas, para sua audição na Audiência de Julgamento, devendo, ainda, o faltoso ser condenado no pagamento das despesas verificadas em consequência da sua não comparência.

Face ao exposto, suspende-se a presente audiência, para continuar na data supra indicada.

Notifique.”

Inconformado, E…………………….. interpôs recurso dos despachos que consideraram injustificadas as faltas.

Apresentou as seguintes conclusões:

“1) Os requerimentos nos quais o recorrente justificava as suas faltas às audiências de julgamento, entraram, contendo os elementos de prova, com 7 dias de antecedência dos dias marcados, referiam o respectivo motivo, o local para onde ia (nos bilhetes de avião que juntou) e a duração do impedimento, contendo, assim, os elementos exigidos pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 117º do Código do Processo Penal.

2) Estes requisitos formais da justificação da falta acima referidos, não foram questionados pelo tribunal.

3) A Mª Juíza, apenas fundamentou o despacho que indeferiu o pedido de justificação de falta, por considerar que o motivo invocado no requerimento do recorrente, não configurava uma causa de impossibilidade de comparência visto que o seu dever profissional não é superior ao dever de cumprir notificações judiciais".

Discordamos, contudo dessa posição.

4) O artigo 117 do CPP, regulamenta os casos em que as decisões judiciais em notificar alguém para comparecer em acto processual, podem não prevalecer ou não ser cumpridas justificadamente.

5) O n.º 1 do referido artigo, considera justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para o qual foi notificado

6) O motivo que o recorrente invocou e que comprovou documentalmente, como sendo o que o impossibilitou de comparecer na audiência para a qual tinha sido notificado, não lhe é imputável.

7) O recorrente é comercial trabalha por conta de outrem e as marcações das viagens não dependeram da sua vontade foram impostas pela sua entidade patronal, sendo certo que ambas já haviam sido marcadas e pagas antes da designação da data para a continuação da audiência.

8) Se o recorrente não cumprisse o dever jurídico que neste caso era a ordem legítima dada pela sua entidade patronal, para além do prejuízo que iria a esta criar, punha seriamente em risco o seu emprego, bem como o seu sustento familiar já que, este, parcialmente, vem das vendas e dos negócios que realiza que muitas vezes resulta das viagens que faz.

9) Salvo melhor opinião, no caso concreto entendemos que a situação invocada, sendo certo que a sua veracidade não foi posta em causa pelo tribunal, consubstancia um conflito de deveres jurídicos ou/e de estado de necessidade, tratando-se, assim, de uma causa de exclusão de ilicitude do facto ou/e de exclusão da culpa respectivamente, previstas nos artigos 36 e 34 do Código Penal.

10) Pelo que, a Mª Juíza fazendo uma incorrecta interpretação do disposto no n.º 2 do art.º 205 da Constituição, violou o preceituado nos artigos 116 e 117 do C.P.P., e por conseguinte com a detenção, foram também violados um dos direitos fundamentais do cidadão como o direito à liberdade e à dignidade.

Termos em que, deverão V.Exas. revogar as doutas decisões de que se recorre e substituídas por outras que defira as requeridas justificações das faltas do recorrente às audiências dos dias 21-06-2007 e 04-07-2007.”

O Ministério Público respondeu pugnando pela manutenção do decidido.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Apreciando:

Estabelece o art.º 116º do Código de Processo Penal[[1]]

 “1. Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre duas e dez Ucs.

2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o juiz pode ordenar, oficiosamente, ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado injustificadamente pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem assim, condenar o faltoso ao pagamento das despesas ocasionadas pela sua não comparência, nomeadamente das relacionadas com notificações, expediente e deslocação de pessoas. Tratando-se do arguido, pode ainda ser-lhe aplicada medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível.

(…)”

Por sua vez, estipula o artº 117º:

“1. Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou notificado.

2. A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do acto, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.

3. Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem ser apresentados até ao terceiro dia útil seguinte. Não podem ser indicadas mais de três testemunhas.

(…)”

Da conjugação destas disposições resulta que a justificação de uma falta exige a verificação de requisitos formais e substanciais.

O objecto do presente recurso restringe-se apenas a estes últimos, já que os primeiros foram considerados verificados (com o que não concordamos uma vez que não foi indicado o local onde o recorrente poderia ser encontrado, omissão essa que, na nossa opinião, esvazia por completo os fins visados pelo legislador).

Adiante:

Muito embora a actual redacção do n.º 1 do art.º 117º seja algo diferente da que vigorava anteriormente às alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto[[2]], consideramos que, como se diz no AcTRC de 25 de Fevereiro de 2004[[3]], “tudo aconselha que se aprecie situações como a presente, de acordo com a lei substantiva penal, nomeadamente com as causas exclusórias da ilicitude do facto (art.º 31º, 1, legítima defesa, o exercício de um direito, o cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade e o consentimento do titular do interesse lesado (art.º 31º, nº 2 do CP) e causas exclusórias da culpa, o estado de necessidade desculpante (art.º 35º do CP), a obediência indevida desculpante (art.º 37º), e os elementos de facto ou de direito de um tipo de crime , ou sobre proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, abrangendo o erro sobre um estado de coisas que, a existir , excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente (art 16º, nº 1 e 2) e a falta de consciência da ilicitude do facto desde que o erro não seja censurável ao agente do crime (art.º 17º nº 1 do CP).”

Das conclusões apresentadas pelo recorrente resulta claro que a sua discordância se centra no facto de considerar que “trabalha por conta de outrem e as marcações das viagens não dependeram da sua vontade foram impostas pela sua entidade patronal, sendo certo que ambas já haviam sido marcadas e pagas antes da designação da data para a continuação da audiência” e que se “não cumprisse o dever jurídico que neste caso era a ordem legítima dada pela sua entidade patronal, para além do prejuízo que iria a esta criar, punha seriamente em risco o seu emprego, bem como o seu sustento familiar já que, este, parcialmente, vem das vendas e dos negócios que realiza que muitas vezes resulta das viagens que faz”, pelo que entende “que a situação invocada (…) consubstancia um conflito de deveres jurídicos ou/e de estado de necessidade, tratando-se, assim, de uma causa de exclusão de ilicitude do facto ou/e de exclusão da culpa respectivamente, previstas nos artigos 36 e 34 do Código Penal.”

Como se vê, o recorrente considera que tendo sido colocado perante um conflito de deveres, optou por aquele que acarretaria menores prejuízos à sua entidade patronal e a si próprio.

Determina o art.º 36º, n.º 1 do Código Penal que “não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfazer dever ou ordem de valor igual ou superior ao dever ou ordem que sacrificar”.

Temos assim que, para que se possa admitir um conflito de deveres com relevância para a exclusão da ilicitude do facto, é necessário que os mesmos tenham o mesmo grau de importância, ou seja, como é dito no Código Penal Anotado, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, 1º volume, 3ª edição, 2003, pág. 549 “há conflito de deveres quando o agente seja posto perante deveres jurídicos ou ordens legítimas da autoridade que concorrem entre si e tenha que escolher qual ou quais há-de sacrificar em prejuízo dos demais, na consideração de que, havendo por detrás desses deveres e ordens valores jurídicos a respeitar, serão esses valores que vão determinar a escolha final.

Vejamos:

No caso “sub judice”, os deveres jurídicos em confronto — dever de comparecer à diligência para que tinha sido devidamente convocado[[4]] e dever de subordinação à entidade patronal — não se podem considerar equivalentes e muito menos que este último se sobreponha àquele.

Com efeito, a defesa da ordem jurídica impõe a todos a colaboração com a justiça e essa colaboração, dado o interesse público em jogo, maxime a defesa do Estado de Direito, só em casos muito particulares pode ceder perante interesses particulares.

E o caso em apreço não se pode considerar como fazendo parte deste restrito número, pois que como refere o Ministério Público na sua resposta, cabendo ao Tribunal “o agendamento dos seus actos ou diligências (…) nunca poderia haver planificação do trabalho judicial se o Tribunal estivesse dependente dos horários ou dos compromissos laborais dos cidadãos”.

Por outro lado, nada indicia que o receio de vir a ser despedido pelo facto de optar pelo seu comparecimento em tribunal em detrimento da viagem organizada pela sua entidade patronal, se viesse a concretizar e que, por tal motivo e em desespero de causa se tivesse visto obrigado a faltar.

Aliás, parece resultar do próprio texto das motivações que o recorrente sentisse, ao menos como provável, a concretização de uma tal ameaça (o recorrente apresenta sempre a questão como uma mera hipótese e nunca como um receio fundado).

Assim, não se encontrando preenchido o condicionalismo previsto no art.º 117º, carece de fundamento a pretensão do recorrente de que as suas faltas a julgamento nos dias 21 de Junho e 4 de Julho de 2007 sejam consideradas justificados e, consequentemente, fica prejudicada a apreciação da emissão de mandados de detenção ordenada no despacho de 4 de Julho de 2007.

DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso.

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Custas pelo recorrente, fixando-se em 8 UC a taxa de justiça.

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Coimbra,

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[1] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem
[2] Redacção anterior: “Considera-se justificada a falta quando se tiver verificado, no caso, situação análoga à de qualquer causa que, nos termos da lei penal, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
[3] http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/cda78be6d5685ae580256e5500579844?OpenDocument
[4] Como testemunha que era, o recorrente tinha como obrigações, para além de outras, as de “se apresentar, no tempo e no lugar devidos à autoridade por quem tiver sido legitimamente convocada ou notificada, mantendo-se à sua disposição até ser por ela desobrigada” (art.º 132º, n.º 1, alínea a.)