Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
163/05.9TBFCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL FISCAL
Data do Acordão: 10/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 1, ALS. G) E I) DO NOVO ETAF (LEI Nº 13/2002, DE 19/02), NA REDACÇÃO DA LEI Nº 107-D/2003, DE 31/12); 18º, Nº 1, DA LEI Nº 3/99, DE 13/01 (LOFTJ); 66º DO CPC; E ARTº 10º, NºS 1 E 7, DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS, APROVADO PELA LEI Nº 15/2002, DE 22/02 (CPTA).
Sumário: I – Para a determinação da competência em razão da matéria é necessário atender ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante ou, nas doutas palavras de Alberto dos Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser da lide”.

II – Manuel de Andrade ensinava que a competência em razão da matéria é a competência das diversas espécies de tribunais, diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação, baseada a definição desta competência na matéria da causa, ou seja no seu objecto, encarado sob o ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada e que o tribunal regra é o da comarca.

III – A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.

IV – Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial.

Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial – artº 18º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13/01 (LOFTJ), e 66º do CPC.

V – Conforme estatui o artº 4º, nº 1, al. g), do novo ETAF (Lei nº 13/2002, de 19/02, cuja entrada em vigor ocorreu em 1/01/2004), com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 107-D/2003, de 31/12, “1 – compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: … g) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.

VI – É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada – esta distinção deixou de ter interesse relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

VII – Todos os litígios emergentes de actuação da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos – artº 4º, nº 1, al. g), do ETAF.

VIII – O mesmo pensamento legislativo subjacente na al. g) do nº 1 do artº 4º do ETAF/2002 surge reforçado na sua al. i), conferindo competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para apreciação de litígios que tenham por objecto a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

IX – Numa acção civil em que o autor pretende a condenação solidária de um Município e de uma sociedade comercial (que foi contratada pelo Município para o efeito), a retirarem o saneamento (público) implantado nos seus terrenos, repondo-o no seu estado anterior, a repararem os danos causados num edifício e no pagamento de determinada quantia a título de indemnização, a competência em razão da matéria para tal apreciação compete aos tribunais administrativos e fiscais – artº 10º, nºs 1 e 7, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 22/02 (CPTA).

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

A... , residente em ....., Queluz, intentou a presente acção ordinária contra Município de B... , Câmara Municipal de B..., e C... , com sede em Pinhel, pedindo ao Tribunal a condenação solidária dos réus a:

1) Retirarem o saneamento implantado por estes nos prédios do autor referidos nas als. a) e b) do art. 1.º da petição inicial, a reporem os terrenos como anteriormente se encontravam no prazo de 3 meses;

2) A indemnizarem o autor por todos os prejuízos referidos nos arts. 5.º a 8.º da petição inicial, causados pela impossibilidade de cultivar e explorar agricolamente o prédio rústico identificado no art. 1.º da petição inicial, em quantia a liquidar em execução de sentença, uma vez que não é possível ainda determinar toda a extensão dos danos;

3) A repararem todos os danos mencionados nos arts. 14.º a 17.º da petição inicial e à reposição integral do estado do prédio antes das obras feitas pelos réus, corrigindo todos os estragos nele causados, quer os que são visíveis a olho nu quer os que se encontrem na sua estrutura, devendo essas reparações serem levadas a cabo com as normas técnicas e respeitando as condições de segurança em prazo não superior a 6 meses;

4) A indemnizarem o autor pelos danos morais referidos no art. 18.º da petição inicial, em quantia a liquidar em execução de sentença.

Alega, para o efeito, que é dono e legítimo possuidor dos prédios urbano e rústico melhor identificados no art. 1.º da petição inicial, que em 1987 a Câmara Municipal de B... elaborou projecto de saneamento para a freguesia de Freixeda do Torrão, posteriormente executado pela 3.ª ré entre 1987 – 1990.

 Na execução dos trabalhos os réus fizeram derivar a conduta de saneamento para o interior do pátio do prédio urbano identificado na al. a) do art. 1.º da petição inicial, continuando para o interior do prédio rústico identificado na al. b) do mesmo art., onde colocaram sete colectores, derivação e alteração do saneamento que foi realizada para o interior dos prédios do autor sem autorização e sem o consentimento do actual e da anterior proprietária.

Um dos referidos colectores, durante todos os referidos anos, deixou vazar os esgotos que se espalham pelo prédio rústico, não permitindo o seu livre acesso e aproveitamento agrícola, além de que causou e continua a causar maus cheiros sentidos na área que envolve os prédios do autor, designadamente no prédio de habitação, e que gera a criação e concentração de moscas, mosquitos, varejas e outros insectos que torna o ambiente nos prédios do autor insalubre e degradante à vista e ao cheiro.

 Apesar das reclamações da anterior proprietária, mãe do autor, não foram retiradas as referidas condutas e colectores.

Para as obras de saneamento referidas foram abertas grandes valas, com 3/4 metros de profundidade, junto ao prédio do autor, mediante explosivos e máquinas perfuradoras, que fizeram tremer o prédio urbano do autor, ‘Solar dos Metelos’, com grande valor arquitectónico, histórico e cultural, o que fez com que o Solar, até então em bom estado de conservação, se degradasse de forma acelerada, apresentando fendilhação excessiva das paredes, pisos, tectos e pavimentos, da cobertura, a ruína e abatimento de uma parte desta mercê do deslocamento das paredes, queda parcial de uma escadaria, deterioração geral das pinturas, degradação que tem aumentado com os anos.

 A actuação dos réus contra a vontade do autor e anterior proprietária tem causado ao autor graves aborrecimentos e mal estar por ver os seus prédios degradados e diminuídas as condições de vida ambiental, habitabilidade, salubridade e qualidade de vida.

 Os réus não repararam os prejuízos e danos referidos, em virtude das obras de saneamento, apesar de tal lhes ter sido solicitado, verbalmente e por escrito, por diversas vezes.

Citados os réus, o Município de B... contestou deduzindo excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal para conhecer do objecto do litígio, sustentando a competência da Jurisdição Administrativa para o efeito, fundamentando tal excepção no facto de a elaboração do projecto de saneamento para a freguesia de Freixeda do Torrão, e respectiva execução, através da 3.ª ré, que contempla os sistemas de recolha, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas, e recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, ser uma função que lhe compete, no âmbito das atribuições de salubridade pública do Município, que se encontra vedada à iniciativa privada, salvo concessão, pelo que a decisão do Município nesta matéria reveste a natureza de acto administrativo (art. 120.º do CPA).

Excepcionou ainda a prescrição do direito de indemnização invocado, e deduziu reconvenção contra o autor, pedindo ao Tribunal o reconhecimento da aquisição do seu direito de propriedade sobre a área em que foram colocadas as condutas que transportam as águas residuais até à fossa séptica, com base em acessão imobiliária, uma vez que despendeu quantitativo superior ao valor do prédio rústico alegadamente pertencente ao autor, que não vale mais do que € 2.000.

Também a ré C... apresentou contestação excepcionando a ilegitimidade do autor, a prescrição do pedido indemnizatório e impugnando os factos alegados na petição.

Na réplica o autor sustenta a competência do Tribunal Judicial de B..., a não prescrição do seu pedido de indemnização, e pugna pela improcedência da reconvenção.    

No despacho saneador, julgou-se verificada a excepção dilatória típica de incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal para julgar os pedidos deduzidos pelo autor, assim como o pedido reconvencional e, consequentemente, absolveu da instância deduzida pelo autor os réus Município e Câmara Municipal de B..., e a ré C...., assim como absolveu da instância reconvencional deduzida pelo Município de B... o autor A..., tudo nos termos dos artigos 66.º, 101.º, 102.º/1, 105.º/1, 288.º/1/a), 493.º/2/1.ª parte, 494.º/a), e 510.º/1/a) do Código de Processo Civil, e arts. 211.º/1, 212.º/3 da CRP, 1.º/1 e 4.º/1/g) e i), do ETAF/2002, e 18.º/1 da LOFTJ.

Inconformado com a decisão dela interpôs recurso de agravo o autor tirando as seguintes conclusões nas alegações que apresentou:

1 - A causa de pedir e o pedido tal como os Autores os configuraram exprimem uma actuação de direito e gestão privada à qual se deve aplicar o disposto nos Art°s. 483º, 500º, 501°, 562° e seguintes do Código Civil.

2 - A relação jurídica estabelecida na presente Acção entre o A. e os R.R. não emerge de relações jurídicas administrativas e fiscais.

3 - Deverá aplicar-se ao caso presente o Art°. 66° do C. P. Civil que dispõe que é da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outras ordens jurisdicionais.

4 - A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, conforme Acórdãos juntos com a Réplica à Contestação do Município de B... e com as presentes Alegações vai no sentido de que o Tribunal Judicial da Comarca de B... é o competente para dirimir o presente litigio.

5 - A causa de pedir e o pedido configuram também a defesa de interesses difusos tutelados pelo direito nos termos do Art°. 26°-A do C. P. Civil e 52°, N°. 3 da Constituição da República Portuguesa

6 - A presente Acção destina-se a defender o direito de propriedade privada do A. invadido pelos RR. sem recurso às legitimas formas de limitação (expropriação, requisição ou força maior)

7 - Os interesses difusos acima mencionados, a defesa da propriedade e a indemnização pelos prejuízos causados e alegados, devem ser julgados no Tribunal Judicial da Comarca de B....

8 - A decisão viola ou interpreta erradamente o disposto nos Art°s. 66° do C. P. Civil, 212°, N°. 3 da C. R. Portuguesa, Art°s. 483°, 500°, 501°, 562° e seguintes do Código Civil, Art°s. 26°-A, 1305° e 1311° do Código Civil, Art°s. 1° e 4º, nº 1  alinea g) do ETAF, disposições que deverão ser interpretadas no sentido acima exposto.

Só o Município de B... ofereceu contra-alegações defendendo a manutenção do decidido.

Foi proferido despacho de sustentação.

Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.



O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 684º, nºs 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil.

A única questão colocada traduz-se em saber se o Tribunal Judicial da Comarca de B... tem competência em razão da matéria para o julgamento da presente acção, ou se, como se sustentou no despacho recorrido, tal competência deve ser deferida ao competente tribunal administrativo.



                                             II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Importam para a decisão a proferir os factos acima enunciados reportados à alegação apresentada pelo autor.

DE DIREITO

Para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou, nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser da lide[1] .

A causa de pedir é o facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito, e o pedido a pretensão formulada pelo autor ou pelo reconvinte com vista à realização daquele direito ou à sua salvaguarda (art. 498º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

Para efeito de determinação da competência do tribunal em razão da matéria, não releva o conteúdo do instrumento de defesa apresentado pela ré, mas tão só os termos da causa de pedir e do pedido formulados pelo autor.          

Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.

A competência do tribunal – citando Redenti – «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.    

Manuel de Andrade ensinava que a competência em razão da matéria é a competência das diversas espécies de tribunais, diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação, baseada a definição desta competência na matéria da causa, ou seja no seu objecto, encarado sob o ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada e que o tribunal regra é o da comarca.

Trata-se de uma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes[2].

Esta é igualmente a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores (v., entre outros Ac. STJ de 12/1/94, in C.J., 1994, I, pag. 38; de 9 de Maio de 1995, in C.J., 1995, II, págs. 68-70,e Ac. STJ de 3/5/00, in C.J., 2000, II, pag. 39).

A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.

Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial.

Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.

Isto é, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual.

Sendo assim, comecemos, pois, pela caracterização do pedido e da causa de pedir formulados na acção.

O recorrente/autor pretende a condenação solidária do Município de B... e da sociedade comercial C..., a retirarem o saneamento implantado nos seus terrenos, repondo-os no seu estado anterior, a repararem os danos causados num seu edifício, e no pagamento de determinada quantia a título de indemnização.

Assim, está em causa na acção a violação danosa do direito real de propriedade do recorrente em virtude da execução pela ré C... de obras relacionadas com a construção da rede de saneamento para a freguesia de Freixeda do Torrão, elaboradas e projectadas por aquele Município.

Os contornos desta acção reflectem a prática de factos que integram um ilícito civil gerador de responsabilidade extracontratual, a ofensa do direito de propriedade privada regulada por normas de direito civil (arts. 1305º, 483º e 501º do Cód. Civil).

Versa a mesma as consequências de actos materiais ou de execução técnica integrados numa actividade da Administração. A instalação no espaço que diz ser sua propriedade de condutas e colectores de saneamento, e as consequências nefastas produzidas apontadas pelo autor/apelante, inclui-se na realização do fim típico do órgão ou na prossecução do interesse colectivo.

Trata-se, pois, de uma situação de responsabilidade civil extracontratual que envolve o recorrente por um lado, e o Município de B..., pessoa colectiva de direito público, e a sociedade comercial C..., que se rege pelo direito privado, por outro, conexa a uma relação jurídica administrativa (artigos 483º, nº 1, e 1305º do Código Civil).

Que ilações então a extrair no âmbito da competência jurisdicional em razão da matéria em geral dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa?

Considerando que o que está em causa é o confronto entre a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais da ordem administrativa para conhecimento de questão de responsabilidade civil extracontratual, vejamos qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem.

O artigo 212°, n.° 1 da Constituição, diz, relativamente à jurisdição comum:

«Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais».

E o seu n.°3, diz, quanto à ordem administrativa:

«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».

A regra geral é a da jurisdição comum e sempre subsidiária. Em consonância, e segundo o chamado princípio do residual já acima abordado, o artigo 18°, n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), e o artigo 66° do Código de Processo Civil, confirmam que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Como se sabe, desde 1 de Janeiro de 2004 que vigora o novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.

Conforme estatui o seu artº 4º nº 1, al. g), com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2004 (artº 4º nº 2):

“ 1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.”

A exposição dos motivos do ETAF, não deixa qualquer dúvida sobre o verdadeiro alcance pretendido pelo legislador (Ponto 2 da Exposição de Motivos):

«Neste quadro se inscreve a definição de âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “ relações jurídicas administrativas e fiscais", mas sem erigir esse critério em dogma... não estabelece uma reserva material absoluta. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio de jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre direito público e direito privado».

«A jurisdição administrativa passa assim a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado».

É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada.

A distinção deixa de ter interesse relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa. Todos os litígios emergentes de actuação da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos[3].

Isto é, deixou de vigorar a norma constante do artigo 4º, alínea f), do ETAF de 1984 que excluía da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público.

O novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

A distinção entre actividade de gestão privada e de direito público continua a relevar para a determinação do direito substantivo aplicável à relação jurídica controvertida, nos termos do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, ou da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, consoante a data em que ocorrerem os factos em apreciação, de harmonia com o regime geral de aplicação de leis no tempo constante do artigo 12º do Código Civil.

Todavia, isso não releva para determinação da competência jurisdicional, certo que a lei seguiu o critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente da natureza do direito substantivo aplicável[4].

Assim, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).

Mas igualmente lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea i), do ETAF).

A referida competência fixa-se no momento da instauração da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, (artigo 5º, nº 1 do ETAF).

Ora, resulta dos autos que a presente acção deu entrada no dia 14 de Julho de 2005 o que releva em termos de aplicação do actual ETAF em vigor, como acima já deixámos, desde 1 de Janeiro de 2004.

Chegados a esta constatação, há que expressar que então a argumentação sustentada pelo apelante colocando a discussão e decisão do diferendo na distinção Direito Público/Direito Privado, alegando que a causa de pedir e o pedido tal como os configurou exprimem uma actuação de direito e gestão privada, não emergindo a relação jurídica estabelecida entre ele e os réus de relações jurídicas administrativas e fiscais, perdeu actualidade e eficácia[5].

Com o novo regime do ETAF foi propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extracontratual da Administração arredando de vez a dicotomia gestão pública – gestão privada, muitas vezes de difícil caracterização com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflitos.[6]

Este conceito de relações jurídicas administrativas do artigo 4º, nº 1, al. g) do ETAF, em harmonia com o art. 1º, nº 1[7], e ponderado à luz do nº 3 do artigo 212º da Constituição da República acima transcrito, não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo.

Abrange todos os casos de responsabilidade civil extracontratual da Administração “independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.” e ainda, “as acções de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas[8].

No caso em apreço pretende o autor que o Tribunal reconheça o seu direito de obrigar os réus a retirarem o saneamento em causa dos prédios que identifica nas als. a) e b) do art. 1.º da petição inicial, repondo os mesmos no estado anterior. Saneamento esse elaborado e projectado pelo Município de B... para a freguesia de Freixeda do Torrão, posteriormente executado pela 3.ª ré.

  Tal apreciação e decisão implica necessariamente o julgamento da licitude de uma actividade de gestão pública, enquadrada por normas de direito público, na satisfação de interesses públicos e necessidades colectivas, e com a utilização de instrumentos de Direito Público como sejam regulamentos, planos urbanísticos, actos administrativos, que implicam o exercício de um poder de autoridade.

A questão a dirimir não se traduz em mera reivindicação de propriedade privada cumulada com pedidos de indemnização enquadrável nos artigos 483º, 501º, 1305º e 1311ºdo Código Civil.

A acção não tem a natureza reivindicatória. Neste tipo de acções o demandante arrogando-se dono da coisa afirma a sua qualidade de proprietário, a provar por ele se invoca uma qualquer forma de aquisição originária, cujo reconhecimento pede, pedido esse essencial, e exige que a mesma lhe seja restituída por detenção intitulada. São assim dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio) por um lado e a restituição da coisa (condemnatio) por outro. Isto mesmo resulta com toda a clareza do disposto no art. 1311º do Cód.Civil.

Na presente acção não é questão dirimenda central a questão do domínio ou da propriedade por banda do autor. Não se trata de acção de revindicação na qual importe decisivamente a prova da (aquisição) da propriedade ou da transmissão do domínio.

A responsabilidade extracontratual vertida nestes autos, na forma apresentada pelo autor, não surge conectada com qualquer problema em torno da existência de um direito de propriedade e pedido do seu reconhecimento, mas antes com uma realidade jurídica administrativa, a instalação de uma rede de saneamento projectada por um município em proveito das gentes de uma freguesia, função que lhe compete no âmbito das atribuições de salubridade pública vedada à iniciativa privada, salvo concessão, pelo que a decisão do município nesta matéria reveste a natureza de acto administrativo (art. 120º do Código do Procedimento Administrativo), e os danos com ela advindos para o autor.  

Isto é, está em causa a discussão de relações jurídicas de cariz administrativo. Aquele primeiro e estruturante pedido do autor, a retirada do saneamento em causa dos seus prédios, emerge claramente de relações jurídicas administrativas. É óbvio que esta pretensão há-de estar devidamente fundamentada, e daí que o autor tenha tido necessidade de invocar o seu direito de propriedade mas fá-lo não para pedir o seu reconhecimento, como não o faz, mas tão só como suporte da sua legitimidade e interesse em agir, como facto que consubstancia um conflito de interesses.

O que dela petição se extrai, é que a responsabilidade assacada ao réu Município tem origem na prática de um acto compreendido no exercício de um poder público e integrando ele mesmo a realização de uma função pública. Pode por isso dizer-se, que estamos perante uma relação materialmente administrativa, a reclamar a intervenção da correspondente jurisdição para o respectivo julgamento.

Sendo assim, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade extracontratual de um Município, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como ressalta da matéria articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos para apreciação de todos os pedidos, pois que como já acentuamos a distinção entre questões de direito privado ou público deixou de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

E este quadro de competência não se altera com a presença da ré sociedade comercial C.....

A regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais da ordem administrativa (art. 10º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro – CPTA) é no sentido de que cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.

Acresce que o n.º 7 do mesmo art. 10º prevê hoje especificamente que “podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares”.

 Resulta, deste último normativo, inequivocamente, a possibilidade de accionamento de entes públicos e de outros interessados, ainda que não sejam concessionários ou agentes administrativos, desde que a relação material controvertida lhes diga igualmente respeito.

O âmbito da sua previsão e estatuição envolve o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual da entidade pública e de uma entidade particular[9].

No caso vertente estamos perante uma unidade objectiva de pretensão formulada contra uma entidade pública e uma entidade privada contitulares da mesma relação jurídica controvertida, o que configura uma situação de litisconsórcio voluntário inicial do lado passivo (artigo 27º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Neste quadro de litisconsórcio voluntário do lado passivo, o tribunal que for competente para conhecer do pedido formulado contra o recorrido Município não pode deixar de o ser também para conhecer do pedido formulado contra a sociedade comercial C...[10].

A idêntica conclusão chegaremos percorrendo uma outra via.

O mesmo pensamento legislativo subjacente na al. g), do n.º 1, do art. 4.º do ETAF/2002 surge reforçado na sua al. i) conferindo competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para apreciação de litígios que tenham por objecto a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

A razão de ser desta alínea é a de abranger as situações correntes de exercício por entidades privadas de actividades ou funções públicas, normalmente em regime de empreitadas, ainda que as mesmas não se traduzam em actos de autoridade como sucedeu com a execução das obras de saneamento pela ré C.....

Como oportunamente o Exmo Juiz invocou na sustentação da sua decisão recorrida, esta leitura veio recentemente a ter acolhimento legal na Lei nº 67/07, de 31/12 - Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas – dispondo no art. 1º, nº 5, do regime anexo que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Em suma, a conclusão a que se chega é a de que são competentes para conhecer do litígio em causa, tal como os recorridos o formulam nas suas contestações, os tribunais da ordem administrativa, não se descortinando razões para alterar o despacho recorrido que, apraz registar, revela aprofundado estudo, e detalhada fundamentação com largo excurso pela doutrina e jurisprudência administrativa apropriadas que por tal nos desobrigou de aqui repesar.


III-DECISÃO

Em face de todo o exposto, nega-se provimento ao agravo confirmando-se a decisão impugnada.

Custas pelo agravante.


[1] Comentário, 1º, 110.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, ed. 1976, a páginas 94.
[3] Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Professor Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, páginas 31 e 32.
[4] Ac. do STJ de 10-04-2008, Proc. 08B845, no sítio do ITIJ.
[5] Aproveita-se para referir que as decisões do STJ que trouxe e documentou nos autos em seu abono se reportam todas a situações de facto anteriores ao início de vigência do novo ETAF, por isso ainda impregnadas pelos contornos daquela dicotomia.
[6] Neste sentido os Acs. do STJ, que se seguiram de perto, de 11-10-2005, Proc. 05B2294 e 8-05-2007, Proc. 07 A1004 no ITIJ; Cf. Prof. João Caupers, in “Introdução ao Direito Administrativo”, 7.ª ed, 2003, 265; Dr. Mário Aroso de Almeida, in “Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª ed, 99.
[7] Com a seguinte redacção:“ Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
[8] Gomes Canotilho, na Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº1, Junho 1994, pag 115, conforme citação feita no Ac. do STJ de 8/05/07, Proc. 07A1004.
[9] Cf. Mário Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, págs. 80 a 82.
[10]Cf. neste sentido o Ac. do STJ de 12/02/2007, Proc.07B238, no sítio do ITIJ.