Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3647/08.3TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: LITISPENDÊNCIA
INVENTÁRIO
Data do Acordão: 10/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 497.º, N.º 1; 498.º, N.º 1 E 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Há identidade de sujeitos quando autores e réus de uma acção de reivindicação são interessados num inventário em que foi descrito, como pertencente ao acervo hereditário, o bem reivindicado.
2. Há também identidade de pedido numa e noutra causa quando no inventário foi apresentada reclamação no sentido de ser excluído da relação de bens o imóvel reivindicado na acção declarativa, com a alegação deste (já) não pertencer aos inventariados à data das suas mortes.
Não há identidade de causa de pedir entre ambas as acções, uma vez que a pretensão nelas deduzida não procede dos mesmos factos jurídicos, não obstante alguns deles serem comuns, pelo que não se verifica a excepção de litispendência
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I


A....e sua mulher B....instauraram a presente acção declarativa, com processo sumário, contra C....e sua mulher D...., pedindo a condenação destes a reconhecer que as parcelas de terreno supra definidas, com os limites apontados pertencem aos AA e que hoje constituem um prédio único e distinto dos demais e bem assim que o seu fraccionamento e autonomização do prédio­ mãe se operaram por usucapião devendo ainda decidir-se que o artigo urbano 1398.º da freguesia de Pousas pertence exclusivamente aos AA por ter sido por estes adquirido por usucapião.

Para tanto, alegam, em síntese, que os imóveis em causa foram objecto de doação por parte de E....e F...., entretanto falecidos, e também que, por efeito de contrato de compra e venda celebrado com G...., também donatário, a quem os autores adquiriram a outra parcela, assim unindo esta à anteriormente adquirida. Mais, alegaram que os réus relacionaram aqueles bens, como bens comuns, no processo de inventário n.º 171/2001, que corre termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Leiria

Os réus contestaram deduzindo a excepção de litispendência, juntando para o efeito certidão desse processo de inventário.

Os autores responderam, pronunciando-se no sentido da improcedência da excepção de litispendência.

Foi proferido despacho saneador em que o Meritíssimo Juiz decidiu:

Pelo exposto, julgando procedente, a excepção de litispendência oportunamente invocada, este Tribunal decide absolver os réus da instância.

Inconformados com tal decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1- Não existe litispendência entre numa acção de Inventário e numa acção comum de reivindicação.

2- De facto, no caso presente, nem são comuns às duas acções nem os sujeitos, nem os pedidos nem as causas de pedir.

3- Os sujeitos não ocupam a mesma posição jurídica em cada uma das duas acções.

4- Os sujeitos não têm a mesma identidade; no inventário os sujeitos são interessados, como herdeiros, na partilha de bens; na acção comum os sujeitos (AA na acção) agem como proprietários de uma parcela desse bem.

5- É também diferente o pedido nas duas acções - no Inventário pretende-se que o Juiz distribua pelos herdeiros, de conformidade com o "direito e acção" de cada um, os bens que compõem o património hereditário; na acção de reivindicação formula-se ao juiz o pedido de decidir do fraccionamento do prédio/mãe e de reconhecer aos AA a titularidade de uma parcela individualizada e adquirida por usucapião.

6- Não há, por fim, em nosso entender, identidade de causa de pedir: na acção (e dado que a causa de pedir é constituída pelo direito de propriedade invocada ­como origem no fraccionamento baseado no facto jurídico da usucapião – art.º 498.º, n.º 4 do C.P.C) a causa de pedir é constituída pelo direito de propriedade de que o A se arroga; e no Inventário a causa de pedir será o direito e acção à herança aberta pelo "facto jurídico" morte do De Cujus.

7- Por isso que, com a devida vénia, se crê que não haja litispendência entre a acção ora sob censura e o Inventário n.º 171/2001 a correr termos pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Leiria.

8- Pensa-se não ser legítimo decidir-se pela litispendência entre uma acção de Reivindicação como a presente e a Reclamação deduzida contra a relação de bens em processo de inventário.

9 - Dada a precariedade da prova e dos meios de prova postos ao serviço do julgador no Processo de Inventário, dado o princípio da economia processual, dada a provisoriedade eventual da decisão no Processo de Inventário (já que o Juiz pode sempre remeter as partes para os "meios comuns") seria justo suspender uma das acções (e não optar pela absolvição da instância) de preferência suspender no Inventário, qualquer decisão acerca da verba (ou verbas) que constituem causa decidendi na acção comum.

Terminam pedindo que se revogue o despacho recorrido e se substitua por outro com os objectivos expostos na 9.ª conclusão.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Face às conclusões com que findam as alegação de recurso, a questão a decidir consiste em saber existe litispendência face ao o processo de inventário n.º 171/2001, do 3.º Juízo do Cível de Leiria.


II

1.º


Para decidir a questão sub judice importa ter presente os seguintes factos:

- no processo de inventário n.º 171/2001, do 3.º Juízo do Cível de Leiria, são inventariados F....e E....;

- o réu C....é filho dos inventariados;

- o autor é filho da inventariada F....;

- G.... é filho dos inventariados;

- os prédios a que se refere o pedido dos autores foram descritos naquele processo de inventário, como integrando a herança do aí inventariado E....;

- o interessado G.... reclamou dessa relação de bens, dizendo que esses prédios foram doados pelo inventariado em 1982 e que a parte que lhe coube a si foi depois vendida ao autor, concluindo pela exclusão desses imóveis da relação de bens.

- nesta acção os autores alegam ter recebido por doação, feita por F....e E...., uma das parcelas do terreno e que a outra a compraram a G.... e sua mulher.

- esta acção deu entrada em juízo a 24-6-08 e o processo de inventário a 28-2-01.

Na sua decisão, o Meritíssimo Juiz considerou que analisando a petição inicial apresentada pelos autores, e contrapondo-a ao teor da certidão junta aos autos pelos réus, referente ao processo de inventário supra identificado, verifica-se a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre a acção ora intentada e o processo de inventário que ainda corre termos, concluindo pela existência de litispendência,

Por sua vez, os autores defendem no presente recurso que não há, entre os dois processos, identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.


2.º


O n.º 1 do artigo 497.º do Código de Processo Civil dispõe que as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado. O artigo 498.º do mesmo diploma acrescenta que:

1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

Quanto aos sujeitos, regista-se que autores e réus são intervenientes nesta lide e no processo de inventário. Significa isso que em ambos os processos, uns e outros, têm intervenção activa. O facto de nenhum deles ser o requerente do processo de inventário não tem, salvo melhor juízo, relevância jurídica para a questão da identidade dos sujeitos, pois, como é sabido, a lei processual confere a todos os interessados a faculdade de suscitarem quaisquer questões que considerem relevantes, nomeadamente no que se refere aos bens que integram a herança. Neste aspecto, o interessado que requereu o inventário não está numa posição diferente, nomeadamente de vantagem, em relação àquele outro que o não requereu. Deste modo não é relevante, para os efeitos dos n.º 1 e 2 do citado artigo 498º, a qualidade de requerente no processo de inventário.

Por outro lado, todos os interessados, incluindo naturalmente os autores e os réus, ficam sujeitos ao caso julgado resultante do processo de inventário. Por isso, pese embora não tenham sido os autores a reclamar da relação de bens, por esta, na perspectiva de quem reclamou, incluir indevidamente os dois prédios em causa nestes autos, a verdade é que a decisão que for proferida quanto a tal matéria produzirá caso julgado quanto àqueles e aos réus.

A identidade jurídica dos litigantes nada tem a ver com a posição processual que eles ocupam. As partes são as mesmas sob o aspecto jurídico, desde que são portadores do mesmo interesse substancial. O que conta, pois, para o efeito da identidade jurídica é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial, e não a sua posição quanto à relação jurídica processual[1].

Ora, no que aos dois prédios diz respeito, autores e réus são portadores do mesmo interesse substancial, o mesmo é dizer que se verifica uma identidade de sujeitos.

Finalmente, deve dizer-se que, como bem defende Alberto dos Reis[2], relativamente às matérias que no inventário são susceptíveis de ser resolvidas definitivamente, pode haver litispendência com uma acção declarativa, visto que quanto a elas, o inventário funciona precisamente como uma acção, assume o aspecto de processo contencioso.


3.º

Para que se verifique a identidade de pedido é necessário que numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico.

Como observam Baudry e Brade, o que importa é que a segunda acção seja proposta para exercer o mesmo direito que se exerceu mediante a primeira[3].

O efeito jurídico pretendido pelos autores nesta acção consiste no reconhecimento, pelos réus, de que as parcelas de terreno em questão pertencem exclusivamente àqueles, ou seja de que são titulares do respectivo direito de propriedade.

O processo de inventário em que se procede à liquidação da herança[4] não tem por objectivo final o reconhecimento do direito de propriedade, mas essa liquidação pressupõe a aceitação, por parte dos interessados, de que a herança tinha um direito relativamente aos bens que se liquida, nomeadamente o direito de propriedade. E liquidada a herança o herdeiro é investido no direito de propriedade que antes pertenceu ao falecido.

É verdade que, como dizem os autores, no processo de inventário decide-se como vai ser distribuída, pelos herdeiros, a herança a partilhar. Porém, no inventário não é só isso que é objecto de decisão, pois previamente tem que se ter decidido quais os bens que integram a herança.

Assim, deverá entender-se que quer nesta acção, como no processo de inventário, no que aos bens em questão diz respeito, pretende-se obter o mesmo efeito jurídico, existindo, então, identidade de pedido.


4.º


Importa agora averiguar se há identidade de causa de pedir, sabendo-se que ela só ocorre quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

A causa de pedir é o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para enunciar o seu pedido[5], ou o facto constitutivo da situação jurídica material que se quer fazer valer[6], ou ainda o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido[7].

Ora, nesta acção a causa de pedir é constituída pelo conjunto de factos alegados pelos autores, dos quais resulta a aquisição originária, por parte de F....e E....[8], do prédio mãe que mais tarde veio a ser dividido em quatro, a doação que estes fizeram, aos autores[9], de um desses ¼, a doação de um outro desses ¼ a G.... e sua mulher e a compra[10] a estes desse seu ¼. Os autores alegam ainda factos de onde resulta a aquisição originária das duas parcelas em questão[11].

Por sua vez, no inventário, a causa de pedir é constituída, antes de mais, pela morte dos dois inventariados (F....e E....) e pelos factos de onde resulta tanto uma relação destes com os interessados, como também de uma relação deles com os bens descritos. É face a tais factos, perante a relação concretamente existente, que se concluirá que os interessados são herdeiros dos inventariados e que os bens descritos integram o acervo hereditário em partilha.

Assim, desde logo se pode concluir que, por exemplo, para esta acção é de todo irrelevante a morte dos inventariados, assumindo esse facto primordial importância no inventário.

Por outro lado, são relevantes para esta acção os factos que correspondem à compra e venda, celebrada entre os autores e G.... e sua mulher, de uma das parcelas, não tendo tais factos interesse processo de inventário. Na verdade, no processo de inventário, quanto à parcela que foi doada a G.... e sua mulher, só têm relevância os factos que se traduzem na doação a estes por parte dos inventariados, visto que foi com tal negócio jurídico que o bem saiu dos seus patrimónios. O destino que a parcela possa ter tido mais tarde, nomeadamente a venda da mesma aos autores, já não tem interesse para o processo de inventário, uma vez que nessa ocasião o bem já não pertencia aos inventariados.

Não se acompanha, assim, o Meritíssimo Juiz quando afirma que para que a dita reclamação (no processo de inventário) seja julgada procedente e, concordantemente, excluído da partilha o prédio a que corresponde o artigo matricial número 1.398º, da freguesia de Pousos, necessário se torna que o ali reclamante logre provar a aquisição desse bem por parte dos ora autores, ou seja, que fique demonstrado o direito de propriedade cuja declaração se pede nesta acção. Para que essa reclamação seja julgada procedente, nessa parte, basta que se prove que esse prédio (antes de ser vendido aos autores) foi doado a G.... e sua mulher, pois, como se disse, foi nessa altura que ele saiu do património dos inventariados.

Então, tem que se concluir que as pretensões deduzidas nas duas acções não procedem do mesmo facto jurídico, sendo diferentes as respectivas causas de pedir, sem prejuízo de haver um conjunto de factos comuns a ambos os processos. Pois, para este efeito, só se deve atender aos factos jurídicos, isto é, aos factos que podem ter influência na formação da vontade concreto da lei (factos relevantes)[12].

Portanto, não se verifica o terceiro dos requisitos estabelecidos no artigo 498.º do Código de Processo Civil, pois não há a aí exigida identidade de causa de pedir, o que significa que não há litispendência.


5.º

Se, como dizem os autores na penúltima das suas conclusões, se deve (ou não) suspender uma das acções é questão com que por agora não se defronta este tribunal, pois ela não foi colocada ao tribunal a quo e, sendo os recursos um meio de impugnação de decisões judiciais, não podem as partes utilizá-los para submeterem ao tribunal superior a apreciação de questões novas[13], salvo nos casos expressamente previstos.


III


Com fundamento no atrás exposto, é procedente o presente recurso, julgando-se improcedente a excepção de litispendência.

Custas pelos réus (apelados).


[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 101.
[2] Obra citada, Vol. III, pág. 117.
[3] Obra citada, Vol. III, pág. 107.
[4] Cfr. Artigo 1326.º do Código de Processo Civil.
[5] Alberto dos Reis, obra citada, Vol. I, pág. 309.
[6] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. I, pág. 343.
[7] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 245.
[8] Cfr. Artigo 5.º da petição inicial.
[9] Cfr. Artigo 2.º da petição inicial.
[10] Cfr. Artigo 11.º da petição inicial.
[11] Cfr. Artigo 20.º da petição inicial.
[12] Alberto dos Reis, obra citada, Vol. III, pág. 121.
[13] Cfr. acórdãos do STJ de 20-12-06, de 12-7-07, de 4-10-07 e de 27-11-07, em www.dgsi.pt/jstj.