Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
636/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. COELHO DE MATOS
Descritores: COMPENSAÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 05/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÁTÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 813.º AL. G) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ARTIGOS 817.º, N.º 1, A E B) E N.º 3 E 817.º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário:

O executado pode opor-se à execução por meio de embargos de executado, invocando a compensação de um contracrédito reconhecido na mesma sentença que o exequente utiliza como título executivo
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. AA deduziu embargos de executado por apenso à execução n.º 116-A/99, da comarca do Sátão, em que é exequente BB, execução essa que tem por título uma sentença que condena a executada a pagar-lhe a quantia de 884. 810$00 e respectivos juros.
Os embargos são deduzidos para fazer operar a compensação do contracrédito da embargante sobre a embargada, com fundamento na mesma sentença que, dando por procedente o pedido reconvencional, condenou a autora ora exequente a pagar à ré ora executada e embargante, a título de indemnização, o que se vier a liquidar em execução de sentença.
A embargada contestou, opondo que a compensação não consta do elenco de fundamentos de oposição é execução (artigo 813.º do Código de Processo Civil), que não se verificam os pressupostos da compensação e que seria impraticável, uma vez que colocaria a exequente na dependência da executada, dado que bastaria a esta nunca liquidar o seu crédito.
No saneador foi decidido, após se confirmar a existência dos fundamentos da compensação, julgar os embargos improcedentes, porque a embargante não fez operar a compensação na acção declarativa e podia fazê-lo. Isto de acordo com o que se diz ser o sentido a extrair da al. g) do artigo 813.º do Código de Processo Civil, segundo a opinião de doutrinadores de reconhecido mérito.

2. Inconformada a embargante apela a esta Relação, com fundamentos que sintetiza nas seguintes conclusões:
a) No caso em apreço verificam-se os pressupostos da compensação de créditos, referidos no artigo 847.º do Código Civil.
b) Está provado que a recorrente e a recorrida são simultânea e reciprocamente credoras e devedoras.
c) Só com a sentença proferida na acção sumária n.º 116/99 foi determinada a existência do contracrédito que se pretende compensar.
d) E só a partir desse momento se afigura oportuna e lógica a sua existência, sendo a figura processual de embargos de executado o expediente legal adequado.


3. Não foram apresentadas contra-alegações. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre agora conhecer e decidir, tendo em conta a seguinte factualidade assente:
- Na acção sumária n.º 116/99, da comarca do Sátão, foi proferida e transitada sentença que condenou a ré ora embargante a pagar à autora a quantia de 884.810$00 e respectivos juros.
- A mesma sentença julgou procedente a reconvenção e condenou a autora ora exequente a pagar à ré ora executada e embargante, a título de indemnização, o que se vier a liquidar em execução de sentença.
- Nessa acção não foi operada nem pedida a compensação do contracrédito da ré com o crédito da autora.
- Na contestação a ré defendia a sua absolvição e pedia, em reconvenção, a condenação da autora a indemnizá-la pelos prejuízos do cumprimento defeituoso do contrato.

4. Como dá para ver, a autora avançou com a execução e a ré pretende compensar o seu crédito com o exequendo, uma vez que, como ficou decidido, estão reunidos os pressupostos da compensação previstos no artigo 847.º, n.º 1 do Código Civil, tendo presente que a iliquidez do seu crédito a não impede (n.º 3 do mencionado artigo).
A questão que agora se coloca é, pois, tão só a de saber se a ré executada pode utilizar os embargos de executado para fazer operar a compensação.
Ora, sabe-se que o devedor pode livrar-se da sua obrigação para com o credor por meio de compensação com a obrigação recíproca deste, desde que o crédito do devedor seja judicialmente exigível e não proceda contra ele excepção peremptória ou dilatória de direito material, conquanto as obrigações tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade - artigo 847.º, n.º 1, a) e b) do Código Civil.
Logo, tratando-se de obrigação pecuniária (como é o caso), o devedor tem o direito de fazer extinguir a totalidade ou parte do seu débito, na medida em que o seu contracrédito sobre o credor seja igual, superior ou inferior ao seu débito (cfr. n.º 2). Importante também é ter em conta que o devedor não deixa de ter este direito (de compensação) quando o seu crédito é ainda ilíquido (n.º 3 do citado artigo).

5. Sabe-se, por outro lado, que não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor (artigo 817.º do Código Civil). Logo, no caso em apreço, em que o crédito de ambas as partes é reconhecido na mesma sentença proferida na respectiva acção declarativa condenatória, tanto o aí autor como o aí réu têm igual direito de executar o património da contraparte, sem que a qualquer deles seja reconhecido o direito de o fazer prioritariamente. Por conseguinte qualquer deles pode executar o outro e fazer extinguir total ou parcialmente o seu débito na medida do seu crédito, por meio de compensação.
É, pois, inquestionável que a compensação constitui um facto (jurídico) extintivo da obrigação e nessa medida faz parte do elenco de fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento, conforme o disposto no artigo 813.º al. g) do Código de Processo Civil.
É então de considerar, in casu, que a compensação, enquanto tal, só surge após o encerramento da discussão no processo de declaração onde foi proferida a sentença que constitui título executivo e, como facto extintivo que é, está provada pelo documento que constitui a própria sentença. Parece, pois, não haver dúvidas de que o executado pode opor a compensação por meio de embargos de executado. Na verdade, é indiscutível que tem direito a compensar o seu débito com o seu crédito e que a compensação, como facto extintivo, constitui fundamento à execução baseada em sentença.
E se a simples declaração de uma das partes à outra é meio idóneo para tornar efectiva a compensação (artigo 848.º, n.º 1 do Código Civil) não se vê por que razão o não possa ser por meio de embargos de executado, na medida em que ficam salvaguardados os valores a que se propõe a própria lei de processo (artigo 813.º), designadamente o respeito pelo caso julgado e o benefício que a sentença atribui ao exequente, para além do interesse em evitar que a oposição à execução se converta numa renovação do litígio a que se pôs termo na sentença que se executa ( Cfr. Alberto dos Reis, Processo de execução, vol. II, págs. 28/29)
Acresce ainda que num caso como o dos autos, em que o crédito e contracrédito provêem da mesma sentença, a inadmissibilidade da compensação seria injusta, injustificável e desproporcionada, na medida em que beneficiaria, sem motivo aparente, quem se adiantou ao outro na acção executiva, com os inconvenientes que daí poderão advir, se pensarmos na hipótese de o exequente mais lesto não possuir património suficiente. Além do mais, em passo algum da lei se colhe a preclusão do exercício do direito de compensação sempre que o titular o não tenha pedido na acção declarativa, podendo fazê-lo.
O que convém que se diga é que se a ré tivesse pedido a compensação do seu crédito a emergir da procedência do pedido reconvencional, para a hipótese de proceder o pedido da autora, e assim se tivesse decidido, seria agora esta que, ao tomar a dianteira da acção executiva, teria de a iniciar com o pedido prévio da liquidação, já que o seu crédito só existiria se e na medida em que lho permitisse o crédito da executada, que existia mas carecia de ser liquidado. Na verdade, se só após liquidação do crédito da executada se haveria de saber qual era o crédito da exequente, perante a procedência do pedido de compensação, então também o crédito da exequente seria ilíquido e para o executar haveria de o liquidar.
Como a executada não pediu a compensação na acção declarativa e esta não opera op legis, nem por isso perdeu o direito de se fazer pagar pelo contracrédito sobre a exequente, compensando-o posteriormente; e porque a compensação, como facto extintivo da obrigação, constitui fundamento de oposição à execução, é de admitir que os embargos de executado constituem meio idóneo para a executada fazer operar a compensação.
Esta é uma solução com total apoio na lei, como vimos. E só não foi sufragada em primeira instância, porque aí se entendeu que só seriam admitidos embargos de executado para operar a compensação do contracrédito sobre o exequente, se a compensação não tivesse sido operada na acção declarativa por não poder sê-lo. Uma vez que não foi operada a compensação na acção declarativa, porque não foi pedida e podia sê-lo, então não seriam admitidos os embargos para esse fim.
A posição defendida pelo Professor Teixeira de Sousa ( cfr. Acção Executiva Singular (Lisboa 1998) pág. 171) e Lebre de Freitas ( Cfr. Acção Executiva, 2.ª edição, pág. 149) sobre esta matéria (e citada pelo sr. juiz) é a de que, não tendo sido pedida a compensação na acção declarativa, ela pode ser pedida nos embargos de executado, sendo certo que o primeiro vai mais longe, ao ponto de afirmar que, se o titular do contracrédito não exerceu o direito de o compensar na acção declarativa, podendo fazê-lo, então ficou precludido o direito de o fazer agora, por meio de embargos de executado.
Esta posição radical (de preclusão) que além de não ter suporte legal carece de argumentos demonstrativos válidos para ser admitida, não conduz a uma solução minimamente justa e afronta direitos reconhecidos em nome de nada, não pode e nem deve, com o devido respeito, ser sufragada.
Por isso concluímos que o executado pode opor-se à execução por meio de embargos de executado, invocando a compensação de um contracrédito reconhecido na mesma sentença que o exequente utiliza como título executivo.
A única dificuldade, in casu, estaria na circunstância de o contracrédito ser ilíquido (a iliquidez não impede a compensação) e nos embargos não se pedir a liquidação, não dispondo a embargante de outro articulado para o fazer. A dificuldade não deixa, todavia, de ser ultrapassada desde que seja possível (e é) o recurso a outras soluções do sistema. Pense-se na hipótese prevista no artigo 279.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi dos artigos 466.º, n.º 1 e 463.º, n.º 1 do mesmo diploma. O juiz, após receber os embargos, pode ordenar a sua suspensão e fixar prazo para a embargante liquidar o seu crédito contra a exequente em processo autónomo; e em função do desfecho final da liquidação, fica-se a saber se e em que medida fica extinto o seu débito e se é ou não de prosseguir a execução.
Não parece, de modo algum, uma solução complicada e tem o indiscutível mérito de acautelar os interesses em jogo, sem prejuízo de nada que haja a tutelar com a solução defendida na decisão recorrida. Devem, pois, proceder as conclusões da apelante.

6. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, para que sejam admitidos os embargos de executado e posterior procedimento em conformidade.
Custas a final.
Coimbra,