Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1959/06.0TBGRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS FALCÃO
Descritores: EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
OBRIGAÇÕES
Data do Acordão: 10/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA – 1ºJUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 428º, Nº1, DO C.CIV..
Sumário: I – A excepção de inadimplência (ou excepção do não cumprimento) é apenas um meio de assegurar o respeito pelo princípio do cumprimento simultâneo das obrigações sinagmáticas.

II – Estas, no quadro contratual, restringem-se às obrigações principais, ou seja, aquelas que prosseguem directamente o interesse de cada um dos contraentes.

III - A excepção de não cumprimento não pode ser aposta no âmbito do (in)cumprimento de obrigações que não tenham interdependência funcional entre si no quadro da economia do contrato.

IV – A mesma excepção é despropositada quando se verifica o incumprimento definitivo e o contrato se encontra em fase de liquidação.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

1.

A... , executada nos autos de execução a que estes estão apensos, em que é exequente a B..... , deduz oposição àqueles pedindo que, julgada procedente, seja parcialmente absolvida do pedido, designadamente na parte relativa a juros e demais despesas extra-judiciais.

Alegou para tanto ter celebrado com a exequente um contrato de empréstimo no montante de 399.038,32€ que ela  não cumpriu na totalidade, na medida em que apenas lhe disponibilizou o montante de 180.549,17C, circunstância que obstou à conclusão da obra que realizava e a impossibilitou de cumprir as suas obrigações perante terceiros e a a própria exequente.

Contestou esta, alegando que o incumprimento ocorreu por parte da executada, uma vez que, confinando-se o empréstimo à aludida obra cujas estavam hipotecadas, ficou acordado que a utilização do capital seria creditado à ordem da executada à medida que era realizado o investiment financiado, apurado através de vistorias da exequente que revelaram persistente paralisação de tal obra.
Decorridos os demais trâmites normais, veio a ter lugar a audiência de julgamento e proferida sentença que julgou improcedente a oposição.
Inconformada, dela recorreu a executada-oponente que concluiu a sua alegação, em síntese, do modo seguinte:
a. O Juiz a quo deu como provado que o capital não disponibilizado era imprescindível para a continuidade e conclusão das obras o que, aliado aos demais factos carreados para o processo, permite concluir que existe contradição entre os factos provados e o sentido em que a decisão foi proferida.
b. A recorrida ficou obrigada a emprestar à recorrente o montante de €399.038,32 e só veio a entregar àquela a quantia de €180.549,17, valor muito inferior ao valor contratado entre ambas as partes, sendo certo que o capital só tinha de ser totalmente amortizado pela recorrente na data contratada, ou seja, até 31 de Dezembro de 2006. Ao não efectuar a libertação do capital inviabilizou não só a continuidade das obras por parte da recorrente como a impossibilitou de liquidar so demais encargos da sua responsabilidade.
c.  Se os valores eram insuficientes para a continuidade da obra e se a obrigação de amortização do capital e dos encargos pela recorrente só se verificaria em Março de 2006, o incumprimento é com certeza devido e da responsabilidade da recorrida.
d. Embora o técnico comercial da recorrida tivesse observado que as obras estavam paradas, tal situação não justificava o comportamento da recorrida em não libertar mais financiamento quando o mesmo estava contratado nem a invocação para o efeito da excepção do não cumprimento.
e. O incumprimento contratual é imputável exclusivamente à recorrida, invocando-se para os devidos efeitos – não pagamento de juros e outras despesas peticionadas na execução -  a excepção do não cumprimento.
Contra-alegando, a Exequente imputa o não cumprimento contratual à Executada e pugna pela manutenção do julgado.
2.
Os factos provados:

A) Por escritura pública exarada de fols.26 a fols.29v.° do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.° 17-H e com documento complementar anexo à mesma e dela fazendo parte integrante, do extinto Cartório Notaria) da Guarda, realizada em 21 de Novembro de 2000, a exequente B... concedeu à opoente/executada A..., com sede na...., um empréstimo na importância de 80.000 contos correspondente a C 399.038 32 sob a forma de abertura de crédito com hipoteca, ao qual foi atribuído o n. 0360.000238.988.0019.

B) De tal montante contratado a exequente B... só entregou à opoente/executada A..., a importância de C 180.549,17.

C) Porém, mais foi estipulado que a utilização do capital emprestado seria creditado na conta à ordem da opoente/executada por uma ou mais vezes na sequência de vistorias a efectuar por parte da B... credora e em função do grau de realização do investimento financiado, apurado em tais vistorias e segundo critério da credora.

D) E ainda, nos termos do mesmo contrato, que os montantes em capital seriam libertados ou disponibilizados pela B... na conta da executada A.... em função do grau de realização das obras nas fracções autónomas a que o mesmo empréstimo se destinava.

E) Estipulando-se também no mencionado contrato de empréstimo, que o mesmo se destinaria ao financiamento da construção nos imóveis que se passam a identificar e sobre os quais, como garantia do empréstimo concedido, respectivos juros e despesas, foi constituída hipoteca a favor da mencionada credora contratante: 1. fracções autónomas designadas pelas letras "A", "C", "D", "E", "F", "G", "H", 1", "J", "K' 'L", "M", "N " "0", "P", "Q", "R", "S", "T", "U", "V" e "X", integradas no prédio urbano sito nas Ruas Marquês de Pombal e Mouzinho de Albuquerque, freguesia da Sé, Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.o 7091870507, da freguesia da Sé, na Guarda, afecto ao regime de propriedade horizontal conforme a Inscrição F correspondente à Ap. De 3 de Junho de 1980 e que foi objecto de participação para a sua inscrição matricial apresentada na Repartição de Finanças da Guarda em 3 de Junho de 1980 e que produziu efeitos apenas e deu origem à inscrição matricial urbana sob o artigo 1564 da freguesia da Sé referida; 2.A \ ou as hipotecas sobre cada uma das fracções mencionadas, encontram-se definitivamente registadas pelas Ap. 2 de 2000/11/22 nas inscrições n.'s 709119870507 da mencionada freguesia da Sé, com as respectivas letras correspondentes às fracções referidas, após as partes contratantes terem reduzido a escritura pública o mencionado empréstimo através da escritura pública exarada defois.26 a fols.29v.° do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.o 17-H e com documento complementar anexo à mesma e dela fazendo parte integrante, do extinto Cartório Notarial da Guarda.

F) No referido contrato foi estipulado que o período de utilização do capital mutuado a disponibilizar pela credora/ B... à devedora/A..... seria de 24 meses, período durante o qual se venceriam apenas os juros e outros encargos e não havendo lugar a qualquer amortização.

G)  Ficou também estipulado, no mencionado contrato, que o período de amortização do capital seria de 12 meses, durante o qual haveria lugar à cobrança do capital mutuado e de juros e outros encargos devidos, sendo também o prazo global do empréstimo de 3 anos.

H) Ficando ainda estipulado em tal contrato que os referidos períodos e prazo poderiam ser modificados ou alterados por simples acordo escrito entre as partes contratantes;

I) Por escrito particular datado de 3 de Outubro de 2003, as partes contratantes alteraram/modificaram, além do mais os prazos estabelecidos no mencionado contrato, suas cláusulas 4.ª e 8ª as quais passaram a ter a seguinte redacção: “ 4-Prazos a contar de 30 de Setembro de 2003- A)Período de utilização: até 31 de Dezembro de 2005; B) Período de amortização: em quatro prestações trimestrais e sucessivas vencendo-se a primeira em 30 de Março de 2006; 8-Pagamento do capital e dos juros; 8.1.- Liquidação dos juros: os juros serão contados dia a dia, sobre o saldo do capital em dívida vencendo-se em prestações trimestrais postecipadas e sucessivas, a primeira com vencimento em 31 de Dezembro de 2003. No período de amortização, os juros serão cobrados conjuntamente corno capital. 8.2- Amortizações periódicas do capital: o capital será pago durante o período de amortização atrás indicado na CLÁUSULA DOS PRAZOS, em prestações trimestrais iguais e sucessivas, acrescidas dos juros devidos, vencendo-se a primeira três meses após a data do início do período de amortização.

J)  O capital efectivamente emprestado e disponibilizado pela credora/ B... à devedora/A.... de C 180.549,17 não foi por esta amortizado até ao prazo estipulado de 31 de Dezembro de 2006 em quaisquer das suas prestações estipuladas no contrato mencionado em A) e sua alteração mencionada em I).

K) A opoente/executada deixou de liquidar à exequente os encargos vencidos, nomeadamente os juros do capital emprestado, e relativos ao contrato mencionado em A) a partir de 31/03/2005;

L) A exequente/credora enviou à opoente, em 14/06/2006, uma carta escrita na qual lhe dava conta da situação irregular das suas obrigações decorrentes do contrato de empréstimo mencionado em A) por não pagamento das obrigações que assumira e, por isso, considerava vencida toda a dívida decorrente de tal incumprimento e convidando-a efectuar, no prazo de 8 dias, o pagamento do seu débito decorrente do mesmo contrato, instaurar-lhe-ia o respectivo processo de execução.

M) E por carta escrita, datada de 21/07/2006, endereçada à executada/opoente, a exequente comunicou a esta que considerava, nos termos contratuais, vencidas e exigíveis todas as obrigações emergentes do mesmo contrato e, por isso, lhe comunicou que lhe instauraria de imediato o competente processo executivo.

N) Nos termos da cláusula 16.9 do documento complementar à escritura pública mencionada em A), a exequente poderia resolver o contrato ou considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu pagamento imediato se a devedora/executada ou opoente deixasse de cumprir alguma das suas obrigações resultantes do mesmo contrato.

O) O capital não disponibilizado era imprescindível para a continuidade e conclusão das obras.

P) A partir de data não concretamente apurada, por visitas do técnico comercial da exequente ao local das obras e por contacto com o sócio gerente da executada oponente, verificou-se que as obras nas fracções hipotecadas estavam paradas.

Q) O que motivou que a exequente não disponibilizasse ou libertasse mais capital do empréstimo.

R) Chegando ao seu termo o prazo contratado para a libertação do capital sem que a opoente tivesse efectuado obras que atingissem um estado de concretização que permitisse essa libertação.

S) O capital mencionado em B), resultante do empréstimo contratado e a que se reporta o contrato mencionado em A), foi libertado e/ou disponibilizado pela exequente à opoente/executada em tranches de capital a fim de as mesmas ou seus valores se reflectirem na evolução das obras nas fracções hipotecadas identificadas em E).

3.

Se bem se percebe a alegação, a Recorrente prossegue no recurso o trilho que delineou na petição inicial da oposição: imputa à Exequente o incumprimento contratual por não lhe ter facultado o restante capital do empréstimo que lhe teria permitido concluir a obra, invocando a excepção do não cumprimento no que diz respeito à cobrança de juros e demais encargo peticionados na execução.

Desde logo, importa dizer que a prova resultante do julgamento não vai neste sentido. Pelo contrário, a resposta aos quesitos 7º a 10º acima transcritos atesta que foi a oponente que deu azo a que a Exequente lhe não disponibilizasse o restante capital acordado no contrato ao parar “as obras nas fracções hipotecadas” que não atingiram “um estado de concretização que permitisse essa libertação”, sabendo-se que “o capital…foi libertado…a fim de se reflectir na evolução das obras..”

É certo que também se apurou que “o capital não disponibilizado era imprescindível para a continuidade e conclusão das obras”, mas, além do teor genérico e tendencialmente conclusivo que essa resposta ao quesito 4º encerra, ela deixa a claro o óbvio do ponto de vista da economia do contrato, com certeza estruturado para dar satisfação às finalidades para ele previstas por cada um dos contraentes, mas que nada adianta ou esclarece quanto ao imputado incumprimento.

Em segundo lugar, não parece que se possa opor a excepção de inadimplência quando, na estrutura e economia contratuais,  os juros e demais encargos que a executada não quer pagar, são meramente secundários face às obrigações principais dele resultantes.

Sabe-se que a aludida excepção é apenas um meio de assegurar o respeito pelo princípio do cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas. Estas, no quadro contratual, restringem-se às obrigações principais, ou seja, aquelas que prosseguem directamente o interesse de cada um dos contraentes, de acordo, aliás, com a fisionomia (direitos/deveres) que a lei aponta na sua definição do contrato.

Daí que a doutrina conclua que “a relação sinalagmática não abrange…obrigações secundárias que têm carácter acessório ou complementar em relação à estrutura do contrato e ao escopo fundamental prosseguido pelas relações obrigacionais dele derivadas; de facto, tal estrutura tem por objecto uma “troca de prestações”, isto é, uma troca entre as obrigações principais desse contrato ( e não entre outras quaisquer) – José J. Abrantes, Excepção de Não Cumprimento…, 1986, p. 42.

Principais, no clausulado do contrato acima transcrito são, nomeadamente, as obrigações da entidade financiadora de entregar o capital mutuado e de o fazer por tranches a que correspondem as obrigações da Oponente de o restituir e de realizar as obras de que depende a calendarização das referidas tranches…

Os juros e demais encargos que servem de cavalo de batalha à Recorrente já são por natureza acessórios de dívida de capital e no contrato em presença a sua correspondência, se há-de fazer-se, é com a parte do capital que lhe foi entregue e está em dívida e não, como se pretende, com aqueloutra parte cuja entrega nunca ocorreu…Esta não é causa nem razão de ser daquela, entre elas não há qualquer tipo de correspectividade ou interdependência funcional que são, estritamente necessárias, para a invocação da excepção de inexecução – cfr a jurisprudência citada a p. 53 da obra referenciada.

Finalmente, numa outra perspectiva de abordagem, dir-se-á que é absurda e não faz sentido, o chamamento, agora , à lide, de tal excepção.

Na verdade, a Recorrente parece não ter ainda compreendido que o quadro das suas relações com a Recorrida se alterou substancialmente quando esta, no uso de faculdade que o contrato lhe conferia (clª 16ª), considerou vencida toda a dívida, lhe deu prazo para a sua liquidação e posteriormente, instaurou a execução apensa para sua cobrança – cfr matéria das als L e M da matéria de facto.

Este passo dado pela Exequente não se limitou a paralisar os efeitos do contrato. Tornou, também, definitivo o seu incumprimento, subsistindo apenas para o efeito de liquidação coerciva.

Ora, a excepção de não cumprimento, constituindo uma espécie de garantia de cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas do contrato, supõe a manutenção deste, “deixando-o intacto e significando somente uma dilação no seu cumprimento” – cfr ob cit, p. 174. Ou seja,  para a sua invocação é necessário que perdurem as obrigações sinalagmáticas que a suportam  e que o seu cumprimento ainda seja viável o que, manifestamente, não é o caso, tornando-se , pois, despropositada o seu apelo nesta sede.

4.

Em conclusão:

A - A Recorrente não fez a prova, quanto ao cumprimento, de que a obrigação da Recorrida era prévia, relativamente à sua; pelo contrário, provou-se que à Recorrente cabia realizar as obras como forma de obter a aludida prestação da Recorrida.

B – A excepção de não cumprimento não pode ser oposto no âmbito do (in)cumprimento de obrigações que não tenham interdependência funcional entre si no quadro da economia do contrato.

C – A mesma excepção é, ainda, despropositada quando se verifica o incumprimento definitivo e o contrato se encontra em fase de liquidação.

Termos em que se declara improcedente a apelação e, estendendo-a embora a outros fundamentos, se confirma a consistente sentença proferida.

 Custas pela Apelante.