Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
456/06.8TBVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
PEDIDO
DANO BIOLÓGICO
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 661, N.º 1 DO CPC; ARTIGOS 494.º, N.º 4; 496.º, N.º 3 DO CC
Sumário: 1. O limite do art.º 661, nº 1 do CPC reporta-se ao pedido global, mas não aos valores imputados no pedido a cada parcela que compõe o quantum indemnizatório total que é peticionado pelo autor, podendo o quantitativo de qualquer dessas parcelas ser ultrapassado, contanto que a soma final da condenação não exceda aquele pedido global.

2. Mesmo que não interfira com a perda de ganho efectivo, isto é, com o exercício especial da profissão da vítima, e nesse âmbito seja abrangido pela respectiva reparação, o chamado dano biológico não deverá deixar de ser igualmente ressarcido no plano dos danos patrimoniais, na exacta medida em que também venha a acarretar à vítima a impossibilidade de certo tipo de trabalhos ou apenas uma maior penosidade na execução de todas ou algumas das actividades que contendem com a respectiva capacidade de ganho.

3. Esse dano também pode se reflectir em aspectos não patrimoniais, como no vestir, na higiene pessoal, no relacionamento sexual, na condução automóvel, no desempenho de possível actividade desportiva ou de mero lazer, na prestação de auxílio físico à família, etc.. O maior esforço na satisfação destes objectivos de simples bem estar pessoal representa um desvalor prático, que se tem que somar ao efeito negativo que o handicap provoca sobre a capacidade de ganho da vítima, sem que como isso se crie uma duplicação na indemnização.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A...intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Vagos uma acção com processo comum sob a forma ordinária contra B...., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 206.517,58, acrescida de juros à taxa legal desde a citação, bem como as importâncias a liquidar em execução de sentença para indemnização dos danos futuros.

Para tanto alega que quando se achava a atravessar determinada estrada da área da comarca de Vagos, em certo dia e hora, fazendo uso de uma passadeira para peões, foi aí atropelada por um veículo seguro na Ré; que este circulava com velocidade excessiva e sem qualquer atenção, de tal sorte que nem sequer travou para evitar o acidente; e que, em consequência, sofreu lesões físicas que demandaram internamento hospitalar, tratamentos e intervenções médicas, tendo advindo sequelas definitivas que, além de dores e sofrimento, lhe provocaram incapacidade permanente.

Contestando, a Ré B..., veio defender-se imputando à A. a culpa do acidente, por ter iniciado a travessia da estrada inopinadamente e sem se certificar que o podia fazer sem perigo. Impugnou também parte da matéria atinente aos danos. Termina com a procedência parcial da acção.

A A, replicou concluindo com na petição inicial.

A final foi a acção julgada parcialmente provada e procedente e, em função disso, a Ré condenada a pagar à A. a indemnização de € 34.037,58, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.

Inconformada, deste veredicto interpôs a Ré oportuno recurso, admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensaram-se os vistos.

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância, sem qualquer espécie de impugnação:

A] No dia 29 de Novembro de 2005, pelas 12,30 horas deu-se um acidente de viação em que foram intervenientes:

- O veículo ligeiro de passageiros, de matricula ...-...-AB, propriedade de “C...” e conduzido por D...;

- O peão A..., ora Autora.

B] O referido D...conduzia o referido veículo ao serviço, com o conhecimento e consentimento e sob as ordens, direcção e fiscalização da sua proprietária, que era quem providenciava pelas condições de manutenção do veículo.

C] O referido veículo automóvel tinha a responsabilidade civil pela respectiva circulação validamente transferida para a R através da apólice nº 750797776.

D] O sinistro, que consistiu no atropelamento da autora pelo referido veículo, ocorreu numa estrada florestal, no concelho de Vagos, estrada essa que, no local, era plana apresentando pavimento asfaltado, dispondo de duas hemi-faixas de rodagem e dois sentidos de marcha, em

bom estado de conservação, com 6 metros de largura, tendo a marginá-la, de um e do outro lado da via:

- um passeio para peões do lado esquerdo no sentido Gafanha da Vagueira - Gafanha da Boa Hora (lado onde se encontra instalada a Junta de Freguesia);

- bermas, com passeios ainda em construção do lado direito, atento o mesmo sentido.

E] A zona em questão está ladeada por casas de habitação, comerciais, Junta de Freguesia, Igreja e outras e a estrada desenvolve-se ali numa recta com cerca de 200 a 300 metros, em quaisquer obstáculos que impeçam a visibilidade dos condutores que por ali circulem.

F] A via dispõe ainda, a alguns metros antes do edifício da Junta de Freguesia, de uma passadeira para peões que é antecedida alguns metros mais atrás, de um e do outro lado (considerando qualquer dos sentidos de marcha), de bandas de sinalização sonoras em borracha e de sinais verticais de “Passagem para peões” (sinal H7 do Regulamento de sinalização do trânsito).

G] À hora a que o acidente ocorreu era dia, estava bom tempo.

H] A autora vinha do café Taberna, sito do lado direito da via, sentido Gafanha da Vagueira - Gafanha da Boa Hora, e pretendia atravessar a faixa de rodagem da direita para a esquerda, considerando aquele sentido, para o que encetou a travessia da faixa de rodagem em marcha normal.

I] Nessa mesma altura o referido veículo automóvel circulava naquela via, no sentido Gafanha da Vagueira - Gafanha Boa Hora.

J] Após o atropelamento o referido veículo automóvel apenas se imobilizou a cerca de 70, 60 metros da passadeira para peões.

K] Em virtude do acidente a Autora sofreu, pelo menos, as seguintes lesões: traumatismo torácico com fractura de costelas à direita e pneumotorax à esquerda; fractura da omoplata esquerda; fractura das diáfises da tíbia e perónio esquerdos; hérnia diafragmática à esquerda.

L] Na sequência do sinistro a Autora foi socorrida e assistida, no local do acidente, pelos Bombeiros Voluntários de Vagos, após o que, cerca de uma hora e meia depois do inicio dos cuidados prestados, a transportaram para o HOSPITAL INFANTE D. PEDRO, em Aveiro,

M] Nesse hospital, submeteram-na a diversos exames radiográficos, nomeadamente aos ossos do membro anterior esquerdo (ombro e braço), aos ossos da coxa, joelho e perna esquerdos, ao tórax, as costelas, ao esterno e à clavícula.

N] A Autora esteve internada naquela unidade hospitalar, no serviço de Cirurgia M, de 29/11/05 a 9/12/05, período durante o qual se manteve sujeita a medicação e tratamentos.

O] Foi submetida a uma drenagem do pneumotorax, cujo dreno lhe foi retirado a 5 de Dezembro de 2005.

P] A 9 de Dezembro de 2005 foi transferida para o serviço de Ortopedia, onde, em 13.12.2005, foi drenado um hematoma frontal que entretanto surgiu, e que foi tratado com drenagem hemática e penso.

Q] Foi-lhe o feita redução fechada da fractura da tíbia e perónio, sem fixação interna, imobilização, compressão, e tratamento das feridas, NCOP.

R] O membro inferior esquerdo foi-lhe imobilizado com gesso, a fractura da omoplata foi imobilizada com fixação de braço ao peito.

S] Em 14/12/2005 foi-lhe dada alta hospitalar, sendo remetida para o seu domicilio, com a indicação de aí permanecer em repouso absoluto, e efectuar diariamente muda de pensos na região frontal, e de retirar o ponto do Reno torácico no dia 16/12/2005.

T] No domicilio o estado da Autora agravou-se substancialmente, voltando a um quadro de dores abdominais, vómitos e alterações do trânsito intestinal, que a obrigou a recorrer, novamente, aos serviços médico-hospitalares do Hospital Infante D. Pedro em 23/12/05, tendo-lhe sido diagnosticada uma hérnia diafragmática à esquerda e que era visível no exame radiográfico do tórax que então lhe fizeram.

U] Para tratamento daquela lesão a Autora foi sujeita a internamento hospitalar e submetida a uma intervenção cirúrgica, onde lhe fizeram uma laparotomia com redução do conteúdo da hérnia.

V] A Autora manteve-se em regime de internamento, medicação e tratamentos, que, verificando-se a evolução favorável daquela cirurgia, sem complicações no pós-operatório imediato, lhe deram alta hospitalar em 30/12/05, remetendo-a para o domicílio com a indicação de continuar os tratamentos e consultas em regime hospitalar ambulatório, retirar os pontos ao fim de 10 dias (02/01/06) no Centro de Saúde e de comparecer a consulta de ortopedia a 11/01/06.

W] Em virtude das lesões sofridas no sinistro, a Autora teve de estar acamada durante 30

dias, necessitando nesse período da assistência de terceira pessoa.

X] Após a alta hospitalar a Autora passou a ser seguida nos Serviços Médicos da Ré seguradora, que vieram a sujeitá-la a internamento hospitalar no HOSPITAL PRIVADO DOS

CLÉRIGOS, no Porto, em princípios de Março de 2006, onde foi submetida a nova intervenção cirúrgica ao membro inferior esquerdo, que consistiu na realização de um enxerto na anca, que se mostrava deformada.

Y] A autora esteve internada naquela Unidade Hospitalar durante uma semana, após o que foi remetida para o domicilio, com indicação de ali permanecer em repouso absoluto.

Z] Desde então a autora passou a ser acompanhada, em regime ambulatório de consultas e tratamentos externos, sob a responsabilidade dos serviços médicos da Ré seguradora até à presente data.

AA] A autora nasceu no dia 10-7-1977.

BB] À data do acidente, frequentava uma acção desenvolvida ao abrigo do POEFDS - Programa Operacional Emprego, Formação e Desenvolvimento, acção financiada pela União

Europeia que teve o seu inicio em 2 de Maio de 2005 e fim previsto para 31 de Agosto 2006.

CC] Por força do acidente dos autos, a autora teve de abandonar a frequência de tal acção, desde o dia do acidente.

DD] Como retribuição pela referida frequência na acção de formação a autora recebia, pelo menos, a retribuição de € 365,60 mensais.

Dos factos controvertidos que se vieram a provar:

1] Para atravessar a rua como referido em H) a autora dirigiu-se à passadeira referida em F).

2] Em dado momento a autora encetou a travessia da faixa de rodagem pela referida passadeira.

3] O atropelamento da autora ocorreu quando esta já havia percorrido quase metade da faixa de rodagem, aproximando-se do eixo da via.

4] [O condutor do veículo AB seguia] sem prestar atenção ao demais trânsito, aos peões e outros obstáculos que lhe pudessem aparecer.

5] Pelo que nem sequer se apercebeu que a autora atravessava a rua.

6] Prosseguindo à velocidade a que vinha até colher a autora.

7] A passadeira referida em F) ficava situada em frente do café referido em H).

8] No local do acidente é frequente a circulação de peões.

9] Além das lesões descritas em L) a autora sofreu também traumatismo craniano, feridas inciso contusas e escoriações múltiplas nos membros superiores e inferiores direitos e esquerdos.

10] Ainda no local do acidente a autora foi submetida a tratamentos de reanimação e estancamento de sangue.

11] Tendo sido conduzida ao hospital apenas 1 hora depois do início dos primeiros socorros.

12] No hospital de Aveiro, para além dos tratamentos elencados nas alíneas N) e seguintes a autora foi também sujeita a diversos tratamentos de limpeza, desinfecção, medicação e sutura por todo o corpo.

13] E a exame microscópico NCOP do sangue, punção da veia NCOP.

14] E a uma intervenção cirúrgica aos ossos do ombro inferior esquerdo.

15] A hérnia referida em U) consistia na subida do estômago, cólon e delgado para o tórax.

16] A operação referida em V) envolveu, além do mais, ráfia da laceração do diafragma com fio não reabsorvível.

17] Até Março de 2006 a autora só se conseguia deslocar através de uma cadeira de rodas.

18] Depois dessa data durante algum tempo deslocava-se com canadianas.

19] A autora teve de se submeter a tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional.

20] Pelo menos uma vez teve de recorrer a médico ortopedista particular.

21] Sente cefaleias esporádicas, generalizadas mais a nível da região parieto-occipitais sem episódios de desmaios ou convulsões.

22] Esquece-se facilmente das coisas.

23] A autora sente dores na região do hemi-torax esquerdo, com sensação de dificuldades respiratórias mais intensas com temperaturas frias, o que lhe dificulta e limita os movimentos de flexão e rotação do tórax.

24] A autora não consegue movimentar o membro superior esquerdo como fazia antes ou fazer com ele o que fazia antes.

25] A autora tem dificuldades na marcha e claudicação ligeira à esquerda.

26] E apresenta diminuição da resistência e limitação funcional da anca e do membro interior esquerdo.

27] Sobre o qual não consegue apoiar-se como até a data do sinistro o fazia.

28] A autora ficou com os músculos da perna e coxa esquerdos atrofiados, e com este membro 2 centímetros mais curto que o direito, que lhe dificulta os movimentos daquele membro e interfere com a movimentação da coluna, pois obriga a autora a claudicar.

29] A autora sente dores ao nível da perna com as alterações climáticas, com esforços e quando permanece muito tempo de pé.

30] Não pode manter-se muito tempo de pé ou deslocar-se normalmente pois sente dores e fica com aquele membro inchado.

31] É-lhe difícil subir escadarias, porquanto o membro inferior esquerdo cede, causando-lhe desequilíbrio e possíveis quedas.

32] Com as lesões sofridas e os tratamentos a que foi submetida, a Autora sofreu fortes dores, quantificáveis no grau 5 numa escala de 1 a 7.

33] Que ainda tem ao efectuar movimentos mais acentuados e que se agravam sempre que há mudança de tempo.

34] E a limitam na realização dos esforços inerentes à sua actividade diária.

35] Estando totalmente incapacitada para o trabalho desde a data do acidente até ao dia 31.01.2007, no total de 426 dias.

36] Ficou afectada de uma incapacidade genérica permanente parcial de 15%, sem rebate profissional.

37] Além da importância referida em AG) a Autora recebia ainda subsídio de alimentação no valor de € 3,70 por cada dia de participação efectiva na formação, o valor da mensalidade que pagava para deixar os filhos no infantário, até ao limite de 182,30/mês e um subsidio de transporte até ao limite de € 45,70/mês.

38] A autora gastou quantias não provadas em consultas, medicamentos e tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional.

39] Aquando do acidente e por força deste, a autora inutilizou um kispo, uma camisola, umas calças e umas botas, de valor não provado.

40] À data do acidente era uma mulher robusta, saudável, bem constituída, trabalhadora, alegre, jovial.

41] E após ficou com diversas e extensas cicatrizes no corpo.

42] O que a deixa envergonhada, a inibe de andar de calças ou fato de banho, por lhe causar vergonha.

43] A autora sofre um enorme desgosto e profundo abalo moral por ter ficado afectada das lesões atrás descritas.

                                                                             *

A apelação.

A apelante encerra as respectivas alegações com um enunciado conclusivo em que essencialmente suscita as seguintes questões, com as quais delimita o objecto recursivo (art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC):

A elevação da indemnização arbitrada à A. pelos danos patrimoniais sofridos com as lesões causadas pelo acidente para € 60.000,00, tendo em conta a interrupção da acção de formação que frequentava, com perda do respectivo subsídio e obtenção do certificado final, além dos reflexos na diminuição da futura capacidade de ganho decorrente da IPP de 15% de que ficou a padecer.

A elevação da parcela indemnizatória atinente aos danos não patrimoniais respeitantes às dores, sofrimentos e desgosto da A. com as sequelas de ficou a padecer, para  € 50.000.

A Ré e apelada contra-alegou, batendo-se pela confirmação integral da decisão recorrida.

Quanto à valorização dos danos patrimoniais da Autora.

A sentença impugnada atribuiu à A., por força do acidente, as seguintes parcelas indemnizatórias para reparação dos danos patrimoniais por ela sofridos:

€ 150,00 no que respeita ao vestuário perdido ou inutilizado;

€ 400,00 no que toca a despesas com consultas e tratamentos;

€ 4.487,58 no que diz respeito a perdas de remuneração com a formação que a A. iniciara.

A recorrente discorda da verba compensatória da perda com a formação, por considerar que ficou privada de nove meses de remuneração à razão € 597,00/mês.

Já no campo dos danos não patrimoniais, a sentença optou por fixar em € 20.000 o ressarcimento do dano decorrente dos 15% de incapacidade permanente da A., por entender que o aqui releva é, tão só, o dano biológico que para ela adveio a seguir ao acidente.

Contra a perspectiva de inserir este dano biológico na esfera dos danos não patrimoniais se rebela também a apelante.

Vejamos.

Em relação ao valor das retribuições perdidas pela A. com a cessação da frequência da formação em que estava envolvida, a decisão recorrida, embora reconheça que o montante da quantia total que a autora terá deixado de auferir foi de facto de € 5.373,00, veio a admitir que estaria limitada pela circunstância de, a esse título, aquela ter reclamado apenas € 4.487,58.

Ora, impõe-se que se diga que a apelante tem inteira razão em objectar que o montante reclamado parcelarmente não era obstáculo à condenação da Ré no pagamento do prejuízo efectivamente  resultante da interrupção da formação (que foi de € 5.373,00).

É que, como é jurisprudência reiterada e invariável[1], o limite do art.º 661, nº 1 do CPC reporta-se ao pedido global, mas não aos valores imputados no pedido a cada parcela que compõe o quantum indemnizatório total que é peticionado pelo autor, podendo o quantitativo de qualquer dessas parcelas ser ultrapassado, contanto que a soma final da condenação não exceda aquele pedido global.

Donde que seja de conceder à A. aquela mencionada verba de € 5.373,00.

Cuidemos agora da forma como deve ser abordada a ressarcibilidade do dano inerente à incapacidade permanente de 15%, sem rebate profissional, de que a A. e apelante ficou afectada, de acordo com o facto provado em 36. Este dano foi valorado na sentença como dano não patrimonial com a natureza de dano biológico.

Não é alcançável o raciocínio que terá precedido esta qualificação, até porque a M.ma Juiz acabara de mencionar um Acórdão do STJ que integrava este dano na categoria dos danos patrimoniais.

   

A recorrente advoga aqui o princípio de que a diminuição da capacidade de ganho, genéricamente percepcionada, é merecedora de adequada compensação como dano patrimonial, ainda que não importe qualquer cessação efectiva em lucros ou retribuições a auferir pelo lesado.

Cremos que este princípio está hoje plenamente consolidado na jurisprudência, sem prejuízo da necessidade de clarificação do que se deva tomar por dano biológico.

Deflui da matéria provada que, em consequência do acidente, a Autora:

21] Sente cefaleias esporádicas, generalizadas mais a nível da região parieto-occipitais sem episódios de desmaios ou convulsões.

22] Esquece-se facilmente das coisas.

23] Sente dores na região do hemi-torax esquerdo, com sensação de dificuldades respiratórias mais intensas com temperaturas frias, o que lhe dificulta e limita os movimentos de flexão e rotação do tórax.

24] Não consegue movimentar o membro superior esquerdo como fazia antes ou fazer com ele o que fazia antes.

25] Tem dificuldades na marcha e claudicação ligeira à esquerda.

26] E apresenta diminuição da resistência e limitação funcional da anca e do membro interior esquerdo.

27] Sobre o qual não consegue apoiar-se como até a data do sinistro o fazia.

28] Ficou com os músculos da perna e coxa esquerdos atrofiados, e com este membro 2 centímetros mais curto que o direito, que lhe dificulta os movimentos daquele membro e interfere com a movimentação da coluna, pois obriga a autora a claudicar.

30] Não pode manter-se muito tempo de pé ou deslocar-se normalmente pois sente dores e fica com aquele membro inchado.

31] É-lhe difícil subir escadarias, porquanto o membro inferior esquerdo cede, causandolhe desequilíbrio e possíveis quedas.

33] Que ainda tem ao efectuar movimentos mais acentuados e que se agravam sempre que há mudança de tempo.

34] E a limitam na realização dos esforços inerentes à sua actividade diária.

Estamos em presença de um conjunto de deficiências físicas e somáticas que constituem uma perda significativa de qualidade de vida, sendo para a A. um inegável dano in natura. Integram, pois, um inequívoco dano biológico.

Este quadro de handicap da Autora provoca-lhe, além do mais, uma incapacidade permanente parcial de 15%. Esta incapacidade é abstractamente adequada a retirar-lhe parte dos proventos que provavelmente iria arrecadar se mantivesse intactas as suas aptidões para trabalhar.

O chamado dano biológico, que até à publicação da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio não tinha autónoma previsão na nossa lei, consiste numa diminuição das faculdades normais da pessoa, ao nível psico-somático, com necessária repercussão numa maior penosidade ou num acréscimo de esforço na realização dos mais diversos actos quotidianos do lesado.

Este dano é, por conseguinte, perfeitamente distinto do dano estético, porque este último contende com a imagem e a auto-estima da vítima, e, por si só, não tem que ver com um qualquer acréscimo de dificuldade na realização das tarefas correntes.

É um dano cujos efeitos abrangem tanto a rentabilidade laboral como toda a vida física ou intelectual do lesado. E, por força da amplitude em que se manifesta, o dano biológico, ou melhor dito, os seus negativos efeitos, podem, assim, atingir a um tempo bens patrimoniais e não patrimoniais do lesado, sem que se possa falar de duplicação na indemnização. No plano patrimonial, o dano biológico pode ser ressarcido ainda que as lesões da vítima não hajam implicado para ela o denominado rebate profissional, isto é, não se repercutam numa efectiva interrupção dos proventos até então por ela auferidos. Neste caso, o dano biológico é consumido pela simples aplicação concreta da teoria da diferença, e pela determinação do capital indispensável à reposição da situação hipotética do lesado. Mas isso não impede ou exclui a sua relevância como dano vital do lesado, aqui com incidência ao nível dos danos não patrimoniais. Tudo depende da análise casuística das características do dano biológico concretamente apurado.

Mas mesmo que o dano biológico do lesado não se manifeste na imediata interrupção de um certo fluxo de rendimentos da respectiva actividade profissional, nem por isso é de arredar a verificação de uma perda de ganho potencial.

Propendemos, portanto, para o entendimento[2] segundo o qual, mesmo que não interfira com a perda de ganho efectivo, isto é, com o exercício especial da profissão da vítima, e nesse âmbito seja abrangido pela respectiva reparação, o chamado dano biológico não deverá deixar de ser igualmente ressarcido no plano dos danos patrimoniais, na exacta medida em que também venha a acarretar à vítima a impossibilidade de certo tipo de trabalhos ou apenas uma maior penosidade na execução de todas ou algumas das actividades que contendem com a respectiva capacidade de ganho.

Sem embargo de ser ainda evidente que esse dano pode não deixar de se reflectir em aspectos não patrimoniais, como no vestir, na higiene pessoal, no relacionamento sexual, na condução automóvel, no desempenho de possível actividade desportiva ou de mero lazer, na prestação de auxílio físico à família, etc.. O maior esforço na satisfação destes objectivos de simples bem estar pessoal representa um desvalor prático, que se tem que somar ao efeito negativo que o handicap provoca sobre a capacidade de ganho da vítima, sem que como isso se crie uma duplicação na indemnização.

Ainda que ela se encontrasse em situação de mera potencialidade ou expectativa de ganho, o dano biológico trouxe para a A. um concreto grau de incapacidade de produzir e ganhar. Assim sucede, desde logo, porque a materialidade provada nos diz que ela frequentava uma acção de formação ao abrigo do POEFDS (Programa Operacional Emprego, Formação e Desenvolvimento), financiada pela União Europeia, pela qual recebia a retribuição de € 365,60 mensais e € 3,70 diários de subsídio de alimentação. Seria, pois, inteiramente legítimo que a A. esperasse obter colocação profissional compatível com tal formação, embora não nos pareça razoável colocar num mesmo patamar indemnizatório lesados já inseridos no mercado  de trabalho ao lado de lesados que são meros candidatos a um primeiro emprego.

É que, por um lado, é cada vez mais tardia a entrada dos jovens no mundo laboral; e, por outro lado, também se sabe estar hoje muito vulgarizado o trabalho precário ou intermitente.

A avaliação dos danos futuros é sempre um desafio que comporta um elevado risco de erro, por jogar com inúmeros factores que, pela sua instabilidade, não têm uma evolução antecipável.

Daí que, para chegar ao valor provável do dano, o tribunal se deva socorrer da equidade a partir das premissas que tenha ao seu dispor (art.ºs 564, nº 2 e 566, nº 3 do CC).    

Sopesando as previsíveis implicações da referida percentagem de IPP de 15% na futura capacidade de ganho da A. - pressupondo o seu tempo normal de vida activa, com a viabilidade de a A. vir a perceber uma retribuição pela sua actividade profissional eventualmente até aos 70 anos - afigura-se-nos adequada a valoração dessa perda, como dano patrimonial, em € 20.000,00, tal como se propendeu na sentença (ainda que, erradamente, a título de dano não patrimonial)[3].

      

Quanto ao cálculo dos danos não patrimoniais advindos para a A.

             

Dúvidas não restam de que os danos não patrimoniais da A. são suficientemente graves, não sendo despiciendo sublinhar aqui a sua juventude à data do acidente (28 anos), que lhe acentuará, por certo, o desgosto pela deficiência física com que se deparou e deparará no decurso da sua (que assim se prevê) longa vida, com as inerentes limitações, frustrações e desfazer de sonhos. São tais danos indubitavelmente merecedores da tutela do direito – art. 496º, nº 1 do citado CC. Sendo certo que tais danos, que não integram o património do lesado, e apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização – deve o montante da indemnização correspondente ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo-se ao grau de responsabilidade do lesante (aqui, o único culpado do acidente), à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda, etc – art.º 496º, nº 3 do mesmo diploma legal. Manda a lei que se fixe a indemnização de forma equita­tiva - desde logo por ser difícil, se não muitas vezes impossí­vel, a prova do montante de tais danos - quer a mesma afastar a estrita aplicabilidade das regras porque se rege a obrigação de indemnização. Salienta a propósito o Prof. A. Varela[4]: "O facto de a lei através da remissão feita no art. 496°, nº 3 para as circunstâncias mencionadas no art. 494°, ter mandado atender, na fixação da indemnização, quer á culpa, quer à situação económica do lesante, revela que ela não aderiu, estritamente, à tese segundo a qual a indemnização se destinaria nestes casos a proporcionar ao lesado, de acordo com o seu teor de vida, os meios económicos necessários para satisfazer ou compensar com os prazeres da vida os desgostos, os sofrimentos ou as inibições que sofrera por virtude da lesão. Mas também a circunstância de se mandar atender à situação económica do lesado, ao lado da do lesante, mostra que a indemnização não reveste, aos olhos da lei, um puro carácter sancionatório".

Não há que confundir equidade com arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjectivismo do julgador, devendo a mesma exprimir a justiça do caso concreto, levando o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático. Atentando-se, ainda, que a jurisprudência do nosso STJ, em matéria de danos não patrimoniais, tem de há muito vindo a considerar que a respectiva compensação deve constituir um le­nitivo para os danos suportados, não devendo, assim, ser mise­rabilista. Para responder actualizadamente ao comando do art. 496° do CC, ela tem de constituir uma efectiva compensação, devendo ser significativa, desse modo viabili­zando uma compensação para os danos suportados e a suportar, já que os mesmos, necessariamente, se irão prolongar no tempo.

O complexo fáctico apurado ilustra uma extensa descrição de dores, sofrimento e desgostos que as lesões causadas pelo acidente provocaram na A., com os tratamentos a que teve necessidade de se submeter e as sequelas entretanto deixadas.

A sentença recorrida, no propósito de proceder à quantificação sectorizada de todos os danos não patrimoniais, distinguiu – neste aspecto, sem censura – os segmentos do pretium doloris e do dano estético. Não deixou de mencionar e avaliar o dano biológico, embora, no que concerne a este último, como acima se deixou dito, o tenha perspectivado de forma incorrecta, como dano exclusivamente patrimonial, ligado apenas à incapacidade de ganho.

Valorou o pretium doloris – de grau 5 numa escala de 1 a 7 – em € 3.000 e o dano estético em € 6.000,00.

Propugna apelante que a globalidade dos danos não patrimoniais seja orçada em € 50.000,00.

No que concerne às dores, sofrimentos, incómodos e desgostos de que a A. padeceu e continuará a padecer, julgamos que os mesmos não devem ser ressarcidos em menos de € 10.000,00, se tivermos em conta os vários traumatismos e fracturas que sofreu (facto p. em K), as múltiplas e profundas intervenções cirúrgicas a que foi sujeita (factos provados em O, Q, R, U e X, 12, 13, 14 e 16) e as contrariedades mencionadas nos factos provados em 29, 30  e 32. 

No tocante ao dano estético, que na hipótese dos autos assume particular importância se tivermos presente que, na altura do acidente, A. tinha apenas 28 anos, sendo uma pessoa robusta, saudável e jovial, mas que, apesar disso, ficou com dificuldade de marcha e a claudicar, com músculos da perna e coxa esquerda atrofiados - quedando-se este membro mais curto 2 cm – e também com diversas cicatrizes no corpo que a obrigam a usar calças e inibem de andar de fato de banho (cfr. os factos provados em 28, 41 e 42), pensamos que este dano concreto deve ser compensado numa verba não inferior a € 15.000,00.  

A estes danos há ainda que adicionar o prejuízo vital da A., ou seja, a vertente não patrimonial do respectivo dano biológico. Neste ponto, há que recordar todas as disfuncionalidades que as lesões trouxeram ao quotidiano da A.: desde o não poder apoiar-se na anca e perna esquerda, como antes fazia, sentindo dores com as alterações de clima, ao não poder manter-se de pé muito tempo, e à dificuldade em subir escadarias, com desequilíbrio e risco de queda (cfr. os factos provados em 26, 27, 29, 30 e 31). Trata-se de uma perda de qualidade de vida que previsivelmente acompanhará a A. ao longo da sua existência e que, obviamente, justifica uma compensação não meramente simbólica. Por isso, avalia-se esse relevante dano em € 25.000,00. Em consequência, o montante da indemnização respeitante aos danos não patrimoniais da A. acaba por ascender a € 50.000,00.  

O que equivale a dizer que - mesmo que não inteiramente - a recorrente vê realizados os seus desígnios.

Pelo exposto, na procedência parcial da apelação, revogam em parte a sentença, condenando a Ré a pagar à A., a título de indemnização pelo acidente dos autos, as quantias de € 25.923,00, a título de danos patrimoniais, e de € 50.000,00, a título de danos não patrimoniais, perfazendo o montante indemnizatório global de € 75.923,00, acrescido de juros de mora nos termos fixados na sentença. Do mais vai a Ré absolvida.    

Custas na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário.


Freitas Neto (Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins


[1]              Entre muitos outros, veja-se o Ac. do STJ de 4/11/2003, in CJ/STJ, 2003, 3º - 138, aliás citado pela recorrente.
[2]              Cremos ser também aquele que é professado, pelo menos, no Ac. do STJ de 27/10/09, relatado pelo Ex.mo Cons. Sebastião Póvoas, no P. 560/09.0YFLSB.
[3]              Em termos comparativos, tomamos aqui boa nota dos critérios plasmados no já mencionado Ac. do STJ de 17/12/09, proferido no P. 197/02.G1.S1, para atribuição ao lesado respectivo - com 31 anos à data do acidente - de uma verba de € 50.000 para a compensação deste dano; e no Ac. do mesmo Tribunal de 19/05/09, proferido no P. 298/06.0TBSJM.S1, em que, com idêntico fim, se concedeu uma indemnização de cerca de € 40.000 a uma lesada de 57 anos com IPP de 35%+5%. Em ambos os casos, diversamente do que se passa com a A., os respectivos lesados estavam já inseridos no mercado do trabalho. 
[4]              Das Obrigações em geral, I. p. 607 e seguintes.