Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1259/08.0TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: MURO
SERVIDÃO DE VISTAS
RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
ILICITUDE
APRECIAÇÃO DA PROVA
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
ANULAÇÃO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 05/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 70, 483, 563, 1360, 1362, 1370, 1371, 1373 CC, 653, 659, 685-B, 712 Nº4 CPC, RGEU
Sumário: 1 - Efectuada a análise crítica das provas no âmbito da decisão a que se refere o n.º 2 do art. 653.º do CPC, será absolutamente desnecessário, por completamente inútil, proceder a nova repetição dessa fundamentação na sentença.

2 - O disposto no artigo 659.º, n.º 3, do CPC, no segmento referente ao exame crítico das provas que cumpre ao juiz conhecer, terá no âmbito do processo declarativo comum, uma aplicação restringida no momento da prolação da sentença, apenas aos casos em que o julgador, só nesse momento, considera provados factos para além daqueles que já se encontravam provados.

3 - Quanto à omissão da motivação da matéria de facto, as partes têm duas formas de reagir: logo no momento da decisão da matéria de facto, reclamando contra a falta da sua motivação, nos termos previstos no artigo 653.º, n.º 4, do CPC; ou recorrendo, nos termos do preceituado no artigo 685.º-B do mesmo diploma legal, impugnando a decisão relativa à matéria de facto, sendo que o facto de não terem oportunamente reclamado não preclude o recurso quando à matéria de facto, com este fundamento.

4 - A exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correcção.

5 - Ainda que o Tribunal da Relação conclua pela existência de deficiente fundamentação na decisão proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto, a sanação da deficiência verificada, mesmo incidindo, como é pressuposto legal, sobre factos essenciais para a decisão da causa, não pode determinar oficiosamente que a mesma seja devidamente fundamentada, deixando o legislador esta possibilidade unicamente na disponibilidade do interessado que tem que requerer tal diligência, ao contrário do que ocorre na situação prevista no n.º 4 do referido artigo 712.º.

6 - Tendo o tribunal de 1.ª instância respondido à matéria de facto impugnada atendendo globalmente a toda a prova produzida – pericial, documental e testemunhal – não é lícito à Relação alterar a matéria de facto apurada, servindo-se da gravação dos depoimentos, uma vez que não tendo sido observado pelos Recorrentes o disposto no n.º 2 do artigo 685.º-B do CPC, “tudo se passa como se essa gravação não existisse”.

7. - Não tendo os AA. demonstrado nem a propriedade exclusiva do muro onde a construção foi efectuada em toda a sua largura pelos RR. nem sequer a respectiva compropriedade, não tinham os RR., pelo menos com este fundamento, que obter o respectivo consentimento para efectuarem tal construção, não tendo com a mesma limitado o direito de propriedade dos Recorrentes sobre o muro, pura e simplesmente porque estes não demonstraram que tal direito sequer existisse.

8 - Entre os direitos de personalidade avulta o direito à saúde e ao bem-estar que os AA. invocam terem sido violados com a construção levada a cabo pelos RR. e cuja tutela se efectua, nos termos preconizados no n.º 2 do referido artigo 70.º, por via da responsabilidade civil prevista nos artigos 483.º e ss. do CC.

9 - Assim, para aquilatar da existência do primeiro pressuposto da obrigação de indemnizar com este fundamento, necessário se torna previamente apurar se os RR. praticaram algum facto ilícito ao efectuar a construção que teve sobre o imóvel dos AA. as consequências que se apuraram quanto à entrada de sol na respectiva habitação, só depois cabendo subsidiariamente apreciar se, ainda que se trate dum facto lícito, estamos perante alguma situação de colisão de direitos, a dirimir por via do disposto no artigo 335.º, n.º 2, do CC.

10 -A violação das regras de construção previstas no RGEU, pode originar infracção de norma legal destinada a proteger interesses alheios, de modo a resultar preenchido o pressuposto «ilicitude», previsto na parte final do n.º 1 do art.º 483.º do CC, mesmo que se não mostre preenchida a previsão de algum dos preceitos do CC que disciplinam as relações jurídicas reais de vizinhança entre imóveis.

11 - Resultando que a resposta dada a matéria da base instrutória se mostra aparentemente inconciliável com matéria de facto que se encontra assente, afigurando-se obscura ou contraditória, impõe-se a anulação parcial do julgamento para a sanação de tal deficiência.

12 -Tendo os AA. invocado factos tendentes a demonstrar que a construção levada a cabo pelos RR. foi efectuada com violação do preceituado no artigo 1360.º do CC, e os RR. factos que afastam a restrição imposta por este preceito, os quais não foram objecto de julgamento apesar de terem sido objecto de articulado superveniente oportunamente admitido e de haver sido determinado o seu aditamento à base instrutória, impõe-se anular parcialmente o julgamento, com vista à produção de prova sobre esses factos essenciais.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

1. P (…) e A (…), instauraram contra L (…), a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, pedindo que os réus sejam condenados a:

a) Reconhecerem que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano identificado nos artigos 1º a 4º da petição inicial, inscrito na matriz predial da freguesia de H (...), concelho da Guarda, sob o artº x (...) e descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º w (...)/20041230;

b) Reconhecerem que os autores são os únicos donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do muro que divide os logradouros dos prédios urbanos inscritos na matriz predial de H (...), concelho da Guarda, sob os artigos x (...) e y(...), e descritos na respectiva Conservatória do Registo Predial da Guarda sob a matrícula n.º w(...)/2004/12/30 e n.º z (...)/19920406, fazendo parte integrante do primeiro destes prédios;

c) Reconhecerem o direito de servidão de vistas do prédio urbano, inscrito na respectiva matriz predial de H (...), concelho da Guarda sob o artº x (...), descrito na respectiva Conservatória do registo Predial da Guarda sob a matrícula w(...)/20041230 sob o prédio urbano, inscrito na matriz predial de H (...), concelho da Guarda sob o artº y(...) e descrito na respectiva Conservatória do registo Predial da Guarda sob o n.º k (...)/19920406;

d) Demolirem toda a construção erigida pelos réus no logradouro do prédio identificado nos artigos 43º a 46º por ofensa aos direitos de propriedade e de servidão detida pelos autores;

Em alternativa ao pedido formulado na alínea d):

- A destruírem toda a construção erigida a menos de 1,5 metros das janelas do prédio dos autores e ainda do velho muro divisório da propriedade de ambas as partes; Ou

- A recuarem em toda a sua extensão toda a construção erigida à distância de 1,50 metros da propriedade dos autores; Ou

- A liquidarem aos autores a título de indemnização decorrente da desvalorização do prédio, montante nunca inferior a 10.000,00 euros; E

e) Pagarem a cada um dos autores a título de danos não patrimoniais a quantia de 3.000,00 euros.

Em fundamento, alegaram que são proprietários do prédio urbano que identificam nos artigos 1º a 8º da petição inicial e que foi M (…), a pessoa que em 1930 erigiu a construção da habitação e do muro divisório do logradouro situado a sul; que a sudoeste, a fachada da habitação dos autores possui uma janela com as dimensões de 1,15 m de altura x 0,70 m de largura, e com um peitoril que excede em 10 cm para fora os limites da dita fachada, a 1,10 m do dolo e a 0,70 m a Norte de uma parede que tinha por função dividir o logradouro da habitação dos autores de um outro, pertença à habitação dos réus e junto daquela fachada, este muro divisório, possuía desde a data da sua construção a altura de 1 metro e era possível a partir daquela janela debruçar-se sobre o referido peitoril e ver-se a paisagem e espaço situado em redor daquela moradia, nomeadamente tudo o que ocorria no logradouro do prédio vizinho situado a sul daquela habitação e permitia ainda receber luz no compartimento em causa; que a 2,70 m do solo existe outra janela virada para o logradouro dos réus e que permitia ver tudo o que ocorria em seu redor até ao horizonte, nomeadamente tudo quanto ocorresse no prédio dos réus, sendo que ambas as janelas existem desde 1930 pelo que os autores adquiriram o direito de servidão de vistas por usucapião.

Mais alegam que os réus são proprietários do prédio que identificam nos artigos 41º a 43º da petição inicial e que a parede a norte desta confina com a parede sul do edifício dos autores, não existindo interstício entre ambos, as fachadas poente de ambos encontram-se alinhadas e os logradouros em frente às entradas de ambos os prédios e encontravam-se separados por um muro de cerca de 20 cm de largura e que assentava a nascente, em exclusivo na fachada poente do edifício dos autores e encontrava-se a 1,27 m da parede norte do prédio dos réus e seguia obliquamente em direcção à rua e apresentava junto do prédio dos autores a altura de 1 m e junto à rua 1,5 m e foi construída pelo referido M (...) em 1930/1940 e faz parte integrante do prédio dos autores, sendo que os réus elevaram em Julho de 2008 em toda a sua largura e extensão o referido muro, sem conhecimento ou autorização prédio dos autores, passando a ter 2,00 m junto à casa dos autores e 2,50 m junto á rua e utilizaram-no como parede de uma garagem que construíram e taparam uma área de 1,27 m x 1,50 m, num total de 1,91 m2 da fachada do edifício dos autores utilizando-a como parede nascente da garagem inexistindo qualquer separação entre a fachada e a construção e a cobertura da garagem suporta um terraço que se encontra a um nível inferior em 20 cm da parte mais elevada da janela dos autores e onde irão colocar um resguarde tal construção impede os autores de colocarem persianas na janela e o respectivo compartimento deixou de receber sol e luz natural o que obriga os autores a acender as luzes mais cedo.

Invocam ainda os autores que a referida actuação dos réus desvalorizou o seu prédio em cerca de 10.000,00 euros, e que não mais sossegaram, preocuparam-se, ficaram tristes, cansaram-se e tiveram vários aborrecimentos junto da CM da Guarda.

2. Contestaram os RR., por impugnação, sustentando que o muro foi construído pelo anterior proprietário do prédio dos réus, dentro dos limites do prédio, sendo que há cerca de 70 anos o mesmo permutou com o antigo proprietário do prédio dos autores uma faixa de terreno que aquele tinha na parte nascente do seu imóvel, com uma idêntica área sita na parte frontal dos imóvel dos autores, correspondente à que ultrapassa a linha divisória das fachadas; que as obras efectuadas pelos autores no seu imóvel alargaram as janelas e aberturas em 5 cm; e que entre a construção levada a cabo pelos réus e a fachada do imóvel dos autores existe um interstício de 150 cm, distância existente também em relação às janelas.

3. Os autores replicaram e requereram a ampliação da causa de pedir nos termos de fls. 77 e seguintes, e os réus treplicaram aduzindo os fundamentos que fazem fls. 86 e seguintes.

4. Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador onde se indeferiu a deduzida ampliação da causa de pedir, por se ter considerado não existir qualquer alteração ou ampliação da causa de pedir no pedido formulado, e se determinou o registo oficioso da acção, seguindo-se a selecção da matéria de facto assente e da que constituiria a base instrutória, a qual foi objecto de reclamação por parte dos AA e dos RR., tendo aquela sido parcialmente atendida nos termos do despacho de fls. 111 a 113, determinando-se o aditamento de um novo artigo à base instrutória; e tendo a reclamação deduzida pelos RR. sido considerada como integrando um articulado superveniente, vindo a ser admitida e determinado o aditamento à base instrutória de novo facto com a seguinte redacção:

"26 – A - Tal terraço dispõe, na parte em que confina com o prédio dos A.A., de um parapeito opaco e contínuo, de tijolo revestido com argamassa, com 150 cm de altura a contar da respectiva cobertura?”

5. Também os autores apresentaram articulado superveniente, que não foi admitido. Deste despacho, recorreram os autores, tendo sido rejeitado o recurso que havia sido interposto por decisão deste Tribunal da Relação proferida em 12-01-2010.

6. Gorada a conciliação entre as partes, foi realizada a audiência de discussão e julgamento, seguida da resposta à matéria de facto controvertida, após o que foi proferida sentença na qual se decidiu julgar a acção improcedente, absolvendo os RR. dos pedidos.

7. Inconformados com esta decisão, os Autores interpuseram o presente recurso de apelação da sentença proferida, formulando as conclusões que sintetizaram nos seguintes termos, após convite para tal efeito:

(…)

8. Os réus apresentaram contra-alegações que terminaram concluindo pela improcedência do recurso.



9. Determinada a baixa dos autos à primeira instância para que o Mm.º Juiz se pronunciasse sobre a arguida nulidade da sentença por falta da concreta fundamentação da resposta à matéria de facto quanto aos artigos 45.º e 46.º da base instrutória, foi entendido que tal nulidade não se verifica.

*****

Mantém-se a validade e regularidade da instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


*****

II. O objecto do recurso[1].

As questões a apreciar no presente recurso de apelação, pela sua ordem lógica, são as de saber se:

- a sentença é nula por falta de fundamentação da matéria de facto quanto aos artigos 45.º e 46.º da base instrutória;

- em caso negativo, se existiu erro de julgamento dos referidos artigos;

- o muro em que a construção levada a cabo pelos RR. foi efectuada pertence aos AA., ou se os mesmos são comproprietários do mesmo;

- a construção levada a cabo pelos RR. viola algum dos direitos que os AA. se arrogam possuir.


*****

III – Fundamentos

III.1. – De facto

Foram os seguintes os factos considerados como provados na sentença recorrida:

1. Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda, freguesia de H (...), sob o n.º w(...)/20041230, um prédio urbano, com a área coberta de 35 m2 e descoberta de 39 m2, composto por rés-do-chão e 1º andar, com pátio, que confronta de norte com MF (...), de sul com JI (...), de nascente com JP (...) e de poente com a rua, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo x (...)º - A) dos Factos assentes;

            2. A aquisição do direito de propriedade foi inscrita, pela ap. 24 de 30/12/2004, em nome de L (…), casado sob o regime de comunhão de adquiridos com M (…), por compra a (…) – B) dos factos assentes;

3. E pela ap. 6 de 6/1/2006, por compra, foi inscrita em nome de P (…) e A (…) – C) dos factos assentes;

4. Em escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada da Guarda, no dia 20 de Janeiro de 2006, (…) e esposa, (…), declararam vender a P (…) e A (…), que declararam comprar àqueles, pelo preço de cinquenta mil euros, um prédio urbano sito na Rua (...), freguesia de H (...), concelho da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º w(...) e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo x (...)º - D) dos factos assentes;

5. A sudoeste, a fachada da habitação existente no prédio referido em 1., possui uma janela, com as dimensões de 1,15 metro de altura e de 0,72 metro de largura, com um peitoril que excede 10 cm para fora os limites da mesma fachada – E) dos factos assentes;         

6. Tal janela está situada a 1,10 metro do solo e a 0,07 metro a norte de um muro existente entre o logradouro do prédio referido em 1. de um outro logradouro de um prédio pertencente aos réus – F) dos factos assentes;

7. Tal muro, junto da referida fachada, possuía, desde os anos de 1930 e até Julho de 2008, a altura de 1 metro – G) dos factos assentes;

8. Tal muro assentava a nascente em exclusivo na fachada poente do edifício existente no prédio referido em 1. – H) dos factos assentes;

9. A parede norte do edifício pertencente aos réus confina com a parede sul do edifício existente no prédio referido em 1., não existindo qualquer interstício entre ambos – I) dos factos assentes;

10. A entrada para as habitações existentes em ambos os prédios efectua-se através das fachadas poente, que se encontram alinhadas – J) dos factos assentes;           11. Os logradouros de ambos os prédios situam-se à frente das entradas das respectivas habitações – K) dos factos assentes;

12. Os réus, no início do mês de Julho de 2008, elevaram em toda a sua extensão o muro referido em 6. – L) dos factos assentes;

13. Sem o conhecimento ou autorização prévia dos autores – M) dos factos

assentes;

14. Tendo-o utilizado como parede (nascente) de uma garagem que construíram no espaço correspondente ao (anterior) logradouro do seu prédio, onde assentou parte da cobertura da referida garagem – N) dos factos assentes;

15. O muro referido em 6., 7. e 8. permitia, a partir da janela referida em 5., debruçar-se sobre o peitoril aí existente e ver-se o espaço situado em redor da moradia, permitindo observar tudo quanto ocorria no logradouro do prédio vizinho, situado a sul daquela habitação – resposta ao quesito 8º da base instrutória;

16. Na fachada referida em 5., no alinhamento da janela aí referida, existe uma segunda janela de iguais dimensões àquela, a 2,70 metros do solo e virada para o logradouro do prédio pertencente aos réus e acima do mesmo – resposta aos

quesitos 9º a 11º da base instrutória;

17. As referidas janelas e respectivos peitoris existem, sem alterações, desde a construção da fachada da habitação existente no prédio referido em 1. – resposta ao quesito 12º da base instrutória;

18. À vista de toda a gente – resposta ao quesito 13º da base instrutória;

19. Sem oposição ou autorização de ninguém, mormente dos réus e dos antecessores no direito sobre o seu prédio – resposta ao quesito 14º da base instrutória;

20. Os autores e antecessores no direito sobre o prédio referido em 1. sempre receberam a luz a partir daquelas janelas – resposta ao quesito 15º da base instrutória;

21. Sempre as utilizaram para aí se debruçarem e observarem tudo quanto acontecia ao redor da habitação e até ao seu horizonte – resposta ao quesito 16º da base instrutória;

22. O muro referido em 6., 7. e 8. encontrava-se a 1,27 metro da parede norte do edifício existente no prédio pertencente aos réus, situado a sul do prédio referido em 1., e à mesma distância da parede sul deste prédio – resposta ao quesito 17º da base instrutória;

23. Seguia obliquamente em direcção ao oeste, para a Rua – resposta ao quesito 18º da base instrutória;

24. A nascente, junto da habitação existente no prédio referido em 1., tinha a altura de 1 metro – resposta ao quesito 19º da base instrutória;

25. E a poente, junto à rua, apresentava a altura de 1,50 metro – resposta ao quesito 20º da base instrutória;

26. Com as obras referidas em 12., o muro passou a ter, junto da habitação existente no prédio referido em 1., a altura de 2,00 metros e, junto à Rua, a altura de 2,50 metros – resposta ao quesito 21º da base instrutória;

27. Os réus, com o alteamento, ocuparam o muro em toda a sua largura – resposta ao quesito 22º da base instrutória;

28. A cobertura da garagem suporta agora um terraço, virado a seu norte directamente para o logradouro do prédio referido em 1. – resposta ao quesito 26º da base instrutória;

29. O que impede os autores de ver, por aquela janela, o espaço que se encontra a sul – resposta ao quesito 30º da base instrutória;

30. Ensombrando o compartimento em que a janela se encontra colocada, que deixou de receber sol e luz natural durante o dia – resposta ao quesito 32º da base instrutória;

31. Os autores passaram a acender as luzes mais cedo relativamente ao que faziam antes do alteamento do muro – resposta ao quesito 33º da base instrutória;

32. No lado norte da referida janela encontra-se construído um alpendre de 1,20 metro de largura e 1,70 metro de comprimento, que dá acesso à entrada da habitação no 1º andar embutido a nascente na fachada do prédio referido em 1. e a poente suportado por um pilar em pedra – resposta aos quesitos 34º e 35º da base instrutória;

33. O prédio referido em a), ficou desvalorizado com as obras efectuadas pelos réus, em montante que se não apurou em concreto – resposta ao quesito 37º da base instrutória;

34. Os autores, desde o momento em que se aperceberam das obras efectuadas pelos réus ficaram preocupados com a desvalorização do prédio identificado em 1. e inconformados com a perda de luz natural que iluminava o compartimento em que se encontra a janela mencionada em 5. – resposta aos quesitos 38º a 42º da base instrutória;

35. Tiveram aborrecimentos vários com a Câmara Municipal da Guarda – resposta ao quesito 43º da base instrutória;

36. O muro existente no logradouro referido em 6., na confinância com a rua pública, sita a poente, é feito por pedra em granito, que é continuidade do muro sito a norte do mesmo prédio, cujas pedras se encontram entrelaçadas, dando ao muro a configuração total de um “L” – resposta ao quesito 45º da base instrutória;

37. Possui “cachorros” ou pedras que excedem para um dos lados a largura das demais que se lhe encontra sobrepostas, na parte inferior interna, ao nível da sua base, rentes ao solo, virados exclusivamente para o interior do logradouro do prédio pertencente aos réus – resposta ao quesito 46º da base instrutória;

38. Entre a construção levada a cabo pelos réus e a fachada do edifício existente no prédio referido em 1. existe um interstício de 150 cms – resposta ao quesito 55º da base instrutória;

39. O muro referido em 6., 7. e 8. tinha a largura de cerca de 20 cm – resposta ao quesito 56º da base instrutória.

40. As obras levadas a cabo pelos RR. obtiveram o licenciamento camarário do Município da Guarda, através do processo n.º 01-2007/193 que se encontra apenso aos presentes autos[2]


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III.2. – O mérito do recurso

III.2.1. – Nulidade por falta de fundamentação

Pretendem os autores que a sentença recorrida se encontra viciada por “erro na apreciação da prova/ Nulidade por falta de fundamentação”, porquanto foi levada aos artºs 45.º e 46.º da base instrutória materialidade que foi considerada demonstrada, sem contudo ter sido objecto de qualquer fundamentação, em lado algum tendo sido indicado, ou apreciado de forma criteriosa o sustentáculo probatório que conduziu à sua prova, pelo que se torna de todo impossível apreender os critérios que determinaram a prova dessa materialidade.

Face ao exposto, concluíram que a sentença objecto do presente recurso se encontra ferida de nulidade nos termos do artigo 668.º n.º 1 al. b), 158.º do CPC e art.º 205 da CRP.

Conforme já expendemos no relatório supra, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo entendeu que tal nulidade não se verificava.

Cumpre apreciar.

Em face do preceituado no artigo 668,º, n.º 1, al. b), do CPC é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

A previsão desta nulidade encontra-se em harmonia com o disposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente sejam fundamentadas na forma prevista na lei, e com a consagração na lei ordinária do mesmo dever de fundamentação, por via da expressa previsão do artigo 158.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[3], de acordo com o qual as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

A fundamentação consiste na expressão do conjunto das razões quer de facto quer de direito ou jurídicas, em que assenta a decisão; ou seja, na indicação dos motivos pelos quais se decide de determinada forma, com vista a permitir aos destinatários sindicar a motivação do julgador[4].

Como é pacífico, este vício da sentença ocorre quando houver falta absoluta dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou até errada, porquanto essa situação determinará a sua revogação ou alteração por via de recurso mas não a respectiva nulidade[5].

Acresce que, atento o fundamento da norma, concordamos com o entendimento que defende ocorrer também esta nulidade “quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial[6].

Ora, se bem atentarmos no artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, facilmente compreendemos que o mesmo prevê esta sanção para o desrespeito ao disposto no artigo 659.º, n.ºs 2 e 3, da mesma codificação, que desenvolvendo os requisitos da sentença, impõe que o juiz especifique os respectivos fundamentos de facto e de direito, atenta a sua essencialidade para que seja apreendida a adequação dos factos demonstrados no caso particular que se decide à lei em que aqueles se enquadram, tendo as partes, mormente se ficam vencidas, o direito a saber por que razão a sentença lhes é desfavorável para efeitos de recurso, relevando ainda tal fundamentação para que, quando é interposto recurso, os tribunais superiores possam sindicar a bondade do decidido[7].

Reportando-se esta nulidade à omissão do dever de fundamentar a sentença, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do citado artigo 659.º, importa atentar que tal preceito se refere à estrutura da sentença, na qual o juiz deve discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

Conjugando este número com o seguinte, devemos concluir que em matéria de fundamentação de facto, a sentença tem que discriminar os factos que o julgador considera provados, sendo estes não apenas os que o tribunal deu como provados na sequência da selecção da matéria de facto, mas também aqueles que hajam sido admitidos por acordo, e ainda os que se encontrem provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.

Porém, para além dessa discriminação dos factos, é ainda necessário que o julgador proceda ao exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.

Tal significa, na verdade, que a fundamentação da sentença em termos de matéria de facto não se basta com a discriminação dos factos julgados provados, sendo necessário por força do referido preceito legal fazer o exame crítico das provas de que cumpre conhecer na sentença. Mas, terá sempre este exame crítico das provas que ser efectuado na sentença?

Efectivamente, será assim se estivermos perante processo em que a decisão sobre a matéria de facto se inclua na própria sentença.

Porém, quando estamos, como no caso presente, perante um processo declarativo comum, a decisão sobre a matéria de facto provada ocorre em momento anterior à sentença. Efectivamente, a mesma aconteceu num primeiro momento na fase da condensação, com a selecção dos factos já assentes decorrentes da prova documental ou por acordo das partes, de harmonia com o preceituado nos artigos 508.º-A, n.º 1, al. e), 508.º-B, n.º 2, e 511.º, n.º 1, todos do CPC; e num segundo momento após a produção da prova produzida em audiência de julgamento, por despacho proferido nos termos do disposto no n.º 2 do art. 653.º do CPC. Ora, quando assim acontece, é neste despacho onde decide a matéria de facto, que o julgador declarará quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, devendo fazê-lo analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua livre convicção.

Por isso, efectuada a análise crítica das provas no âmbito da decisão a que se refere o n.º 2 do art. 653.º do CPC, será absolutamente desnecessário, por completamente inútil, proceder a nova repetição dessa fundamentação na sentença.

Assim, deve concluir-se que o disposto no artigo 659.º, n.º 3, no segmento referente ao exame crítico das provas que cumpre ao juiz conhecer, terá no âmbito do processo declarativo comum, uma aplicação restringida no momento da prolação da sentença, apenas aos casos em que o julgador, só nesse momento, considera provados factos para além daqueles que já se encontravam provados por via dos despachos proferidos em qualquer um dos supra referidos momentos processuais.

«Ou seja, esse “exame crítico” que cumpre fazer na sentença não abrange as provas já até aí consideradas, não abrange as provas de livre apreciação, mas as relativas a prova plena documental, confissão escrita ou acordo das partes, quer já estivessem nos autos e não tivessem sido considerados, quer sejam posteriores à selecção da matéria de facto»[8].

Assim sendo, conforme facilmente se alcança das alegações de recurso e do preceito em referência, a referida nulidade não poderia verificar-se no caso em apreço, porquanto a sentença recorrida encerra toda a fundamentação de facto pertinente que já havia sido anteriormente considerada assente quer no momento da condensação quer na resposta à matéria de facto, conforme bem entenderam os Recorrentes que com a mesma não concordam, nada faltando quanto à fundamentação da sentença.

Ora, conforme supra se expendeu, a lei apenas considera nulidade para os efeitos do citado artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, a total ausência de fundamentos de facto e de direito ou a sua insuficiência em termos que não permitam compreender o que se decidiu, pelo que forçoso é concluir que o alegado vício de conteúdo não se verifica na sentença recorrida, como a sua simples leitura evidencia.

O que acontece - e configura situação diferente - é que os mesmos se insurgem quanto ao facto de o Mm.º Juiz do Tribunal a quo não ter especificado na motivação da resposta à matéria de facto, as razões por que considerou provados tais artigos da base instrutória, situação que não configura qualquer nulidade da sentença.

Efectivamente, quanto à omissão da motivação da matéria de facto, as partes têm duas formas de reagir: logo no momento da decisão da matéria de facto, reclamando contra a falta da sua motivação, nos termos previstos no artigo 653.º, n.º 4, do CPC; ou recorrendo, nos termos do preceituado no artigo 685.º-B do mesmo diploma legal, impugnando a decisão relativa à matéria de facto, sendo que o facto de não terem oportunamente reclamado não preclude o recurso quando à matéria de facto, com este fundamento.

No caso em apreço, analisando a decisão recorrida verifica-se que o Mm.º Juiz a quo, em sede de fundamentação da resposta à matéria de facto, começou genericamente por afirmar que “os factos provados assentaram, desde logo, nas regras da experiência e da normalidade do acontecer e da conjugação da análise dos factos assentes, documentos e certidões juntos aos autos a fls. 18 a 47, 104 a 108, 116 a 139, 183, 184, 208 a 220, perícia de fls. 163 a 165 e 175 a 177, projecto de obras apenso, inspecção ao local e com os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, sendo de realçar” os depoimentos das testemunhas que indicou e na parte em que reputou o respectivo testemunho relevante para a prova dos factos que ali discriminou donde consta claramente que as testemunhas (…) se referiram à existência do muro em pedra (que igualmente se confirmou com a inspecção ao local existir), e esta última testemunha, anterior proprietária da casa dos réus, considerada isenta e credível, confirmou a causa que terá levado à construção do mesmo.

Ora, conforme referem os Recorrentes, aos artigos 45.º e 46.º da base instrutória havia sido levada a seguinte materialidade «O muro existente no logradouro referido em 6., na confinância com a rua pública, sita a poente, é feito por pedra em granito, que é continuidade do muro sito a norte do mesmo prédio, cujas pedras se encontram entrelaçadas, dando ao muro a configuração total de um “L”?», e «Possui “cachorros” ou pedras que excedem para um dos lados largura das demais que se lhe encontram sobrepostas, na parte inferior interna, ao nível da sua base, rentes ao solo, virados exclusivamente para o interior do logradouro do prédio pertencente aos réus?», artigos que mereceram a resposta de provados.

Porém, é entendimento pacífico que a exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo o julgador indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correcção.

Efectivamente, se não se exige ao julgador que na motivação da decisão sobre a matéria de facto escalpelize todo e qualquer detalhe que levou à formação da sua convicção, ou sequer que o faça artigo a artigo da base instrutória, o certo é que tal motivação efectuada com a apreciação crítica e a especificação dos fundamentos, com o sentido que o artigo 653.º, n.º 2, do CPC encerra, impõe que se compreenda com clareza o porquê da sua decisão num ou noutro sentido, face às provas concretamente produzidas - que conforme é consabido são amiúde contraditórias entre si -, apreciadas em face das regras da ciência, da lógica e de experiência de vida, que são os critérios subjacentes ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 655.º, n.º 1, do CPC.

Operado este necessário enquadramento e apreciada a decisão da matéria de facto efectuada nos termos sobreditos, fácil é concluir que na mesma não foi dado, ainda que sinteticamente, cumprimento ao aludido comando legal, quanto aos fundamentos da convicção do julgador no tocante aos aludidos artigos da base instrutória, ficando por perceber, com base em qual das provas produzidas – documental, pericial e testemunhal – fundou o tribunal a sua convicção.

Desta sorte, verifica-se efectivamente a invocada deficiência na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.

Porém, conforme supra já referimos, a respectiva consequência não seria a pretendida nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto que, como vimos, não ocorre, in casu. Faltando ou sendo deficiente ou incompreensível, em suma, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, como devem ser considerados os dois artigos supra mencionados, a lei prevê a solução no artigo 712.º, n.º 5, do CPC.

E a solução legalmente preconizada para o caso é que a Relação, a requerimento da parte, possa determinar que o tribunal de 1.ª instância proceda à fundamentação que oportunamente não efectuou, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção da prova, quando necessário.

Não obstante, ainda que o Tribunal da Relação conclua pela existência de falta ou deficiente fundamentação na decisão proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto, a sanação da deficiência verificada, mesmo incidindo, como é pressuposto legal, sobre factos essenciais para a decisão da causa, não pode determinar oficiosamente que a mesma seja devidamente fundamentada, deixando o legislador esta possibilidade unicamente na disponibilidade do interessado que tem que requerer tal diligência, ao contrário do que ocorre na situação prevista no n.º 4 do referido artigo 712.º[9].

Consequentemente, cabia aos Apelantes, prevalecerem-se dessa faculdade, requerendo expressamente tal diligência. Não o tendo feito, não pode este Tribunal da Relação determinar a devolução dos autos à 1.ª instância para que o juiz de julgamento proceda à adequada fundamentação da sua decisão de facto, segundo as exigências previstas no n.º 2 do artigo 653.º do CPC[10].

Como assim, resta-nos verificar se os Apelantes impugnaram cabalmente o julgamento de facto assim efectuado, com vista a determinar se ocorre o invocado erro de julgamento.


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III.2.2. – Alteração da matéria de facto

Para além da sobredita nulidade, os Apelantes invocam ainda a existência de erro na apreciação da prova, pretendendo que sobre a dita factualidade não recaiu outra prova senão um relatório pericial elaborado na sequência de um seu requerimento de perícia singular com a ref.ª n.º 476223, subscrito pelos RR em 24 de Junho de 2010, com o seguinte objecto:

«a)-Determinar se as pedras salientes na parte inferior interna do muro, ao nível da sua base, rentes ao solo correspondem a cachorros ou a alicerces do próprio muro divisório

b)-Determinar se essas saliências existem dos dois lados do muro divisório, rentes ao solo ou soterradas tendo presente que o logradouro do prédio dos autores é mais elevado que o dos RR, ou só existem exclusivamente viradas para o logradouro dos RR

c)-Determinar se a parede divisória e o muro sito a poente do logradouro dos RR possuem pedras entrelaçadas, e se este é continuidade, daquele dando ao muro a configuração de L.

d)-Determinar se os dois muros a que nos referimos na alínea que antecede foram construídos na mesma data»

No aludido requerimento os Autores afirmaram que «A resposta as alíneas a) e b) deste requerimento têm por objectivo a prova (ou contraprova) do artº 46º da base instrutória» e ainda que «A resposta as alíneas c) e d) deste requerimento têm por objectivo a prova (ou contraprova) do artº 45º da base instrutória.

Mais aduzem, que o dito relatório inserto a fls. 163 dos autos, um relatório pericial, vem pronunciar-se do seguinte modo:

«Resposta a)- As pedras salientes na parte inferior interna do muro, ao nível da sua base, rentes ao solo, correspondem a alicerces do próprio muro divisório; Resposta b)- Apesar de não ter entrada na garagem dos réus, a fundação do muro é visível do lado dos autores, pelo que também deve ser visível do lado dos réus uma vez que o terreno se encontra a uma cota inferior; Resposta c)- Nota-se que a pedra do canto foi cortada de forma diferente das restantes pelo que se presume que fosse inteira; Resposta d)- Os muros que dividem os dois terrenos e os terrenos e a rua, apresentam ter sido construídos na mesma altura, tendo sido acrescentado o resto da parede até à laje»; e que a folhas 175 destes autos veio o Sr. Perito esclarecer as perguntas apresentadas pelos RR. da seguinte forma: «Questão b)- Determinar se essas saliências existentes dos dois lados do muro divisório, rentes ao solo, ou soterradas tendo presente que o logradouro do prédio dos autores é mais elevado que o dos RR, ou só existem exclusivamente viradas para o logradouro dos RR, Resposta – Depois de ter entrado na garagem dos réus, foi possível observar que as fundação do muro é visível também deste lado (…)», tendo ainda esclarecido as dúvidas apresentadas pelos Autores no seu requerimento com a refª. nº 503255, quais sejam «(…) d)- qual o lado da pedra que se presume ter sido cortada: se a parte virada para Norte (isto é a parte virada para o terreno dos Autores), ou se a parte virada para Sul (isto é a parte virada para o terreno do Autores)», «e) (…) se com aquela afirmação procurou sublinhar que aquela pedra excedia para o lado Norte (para o logradouro dos autores) a largura das demais e nessa medida corresponderia a um cachorro(…)», e «(…)se a parede divisória e o muro sito a poente do logradouro dos RR possuem pedras entrelaçadas, sendo este a continuidade daquele, ou se o muro sito a poente do logradouro dos RR se encontra justaposto ao muro divisório, nele não assentando», do seguinte modo: «Resposta à questão d) – A parte da pedra que se presume ter sido cortada é a que está virada para norte, isto é para o terreno dos autores. Do lado sul a pedra não é visível uma vez que existe um muro perpendicular a este e que tapa esta zona(…); Resposta à questão e) – Como já foi referido os cachorros são pontos de apoio para suportar outros elementos estruturais o que aqui não é o caso uma vez que se tratam de muros de delimitação de propriedade; Resposta à questão g) – Conforme é possível observar nas fotografias o muro em causa, mais recente, encosta ao outro existente, mais antigo, não havendo cruzamento das pedras dos dois muros nessa zona».

Nestes termos, concluem os Recorrentes que tendo sido esta a única prova apresentada quanto a materialidade levada a base instrutória sob os artigos 45.º e 46.º, deveria a mesma ter sido considerada não demonstrada.

            Vejamos, pois, se lhes assiste razão.

            Compulsados os autos, mormente as actas da audiência de julgamento realizada, decorre das mesmas que as testemunhas arroladas pelos Autores, (…) responderam expressamente à matéria dos indicados artigos, encontrando-se os respectivos depoimentos gravados.

Ora, nos termos do disposto no artigo 712.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[11], a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º- B, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

Por seu turno, o artigo 685.º- B do CPC, impõe ao Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto o ónus de cumprir o estabelecido no seu n.º 1, por via do qual aquele, obrigatoriamente e sob pena de rejeição da impugnação da matéria de facto, deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

No caso sub judice, apreciadas as conclusões de recurso apresentadas pelos Apelantes, verifica-se que das mesmas apenas consta que no entender destes a impugnação da referida matéria de facto é possível porquanto sobre estes artigos apenas foi produzida prova pericial, considerando os mesmos que esta impunha, por si só, decisão diversa.

Ora, relembrando agora a motivação de facto expendida pelo Mm.º Juiz a quo a respeito dos indicados artigos, e que já foi supra referida a propósito da decisão da invocada nulidade por falta de fundamentação, verificamos que da mesma consta a referência a que a convicção do julgador, assentou em mais elementos de prova do que os ora referidos pelos Recorrentes, mormente no depoimento gravado das duas testemunhas indicadas pelos Autores, nas fotografias juntas aos autos e ainda na inspecção efectuada ao local.

Nestes termos, em face da fundamentação expendida pelo Mm.º Juiz a quo, cumpre desde já salientar que no caso em apreço, estando a convicção do tribunal de primeira instância quanto aos factos dados como assentes e ora impugnados pelos Recorrentes, estribada em prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, a qual foi tomada a toda a matéria de facto, conforme da respectiva acta consta, é evidente que não se mostra preenchido o requisito a que alude o artigo 712.º, n.º 1, a), 1.ª parte, do CPC, uma vez que a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto apenas pode ser alterada pela Relação, quando do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os concretos pontos da matéria de facto postos em causa pelos Recorrentes, situação que no caso em apreço não se verifica porquanto, apesar de ter sido registada a prova produzida, estes não deram cumprimento ao preceituado na alínea b) do n.º 1, e no n.º 2 do artigo 685.º-B do CPC, razão pela qual, não é possível a este tribunal sindicar todos os elementos de prova em função dos quais o Mm.º Juiz a quo chegou à referida decisão de facto, e que é condição para que tal alteração, com este fundamento, seja possível.

Por isso, in casu, a reapreciação da prova só poderia ter lugar se a decisão de facto, na parte impugnada, tivesse sido “exclusivamente sustentada na apreciação, isolada ou conjunta de documentos, declarações confessórias, depoimentos escritos ou relatórios periciais, sem exclusão sequer do uso simples ou conjugado de regras da experiência congregadas em presunções judiciais”[12].

De facto, as circunstâncias em que se inscreve a actuação da Relação com este fundamento, devem ser idênticas às que existiam aquando da prolação da decisão relativa à matéria de facto pela primeira instância, porquanto também a segunda instância tem que proceder a uma valoração autónoma de todos os meios de prova produzidos quanto à matéria impugnada, sujeitando-os ao princípio da livre apreciação da prova.

Efectivamente, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da livre apreciação das provas fixado no artigo 655.º, n.º 1, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[13].

Daí que, tendo sido gravada a prova testemunhal produzida quanto a toda a matéria de facto, e na qual o tribunal de primeira instância também estribou a sua convicção, seja, em princípio, insindicável por esta Relação a resposta dada à mesma porquanto não constam no processo todos os elementos de prova de que o tribunal recorrido fez uso para o efeito[14].

Efectivamente, tendo o tribunal de 1.ª instância respondido à matéria de facto atendendo globalmente a toda a prova produzida – pericial, documental e testemunhal – não é lícito à Relação alterar a matéria de facto apurada, servindo-se da gravação dos depoimentos, uma vez que não tendo sido observado pelos Recorrentes o disposto no n.º 2 do artigo 685.º-B do CPC, “tudo se passa como se essa gravação não existisse”[15].

Tal só assim não será se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, situação configurada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 712.º, do CPC, que ocorrerá quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força probatória plena de certo documento ou de certo meio de prova.

Na verdade, “se a matéria de facto não tiver sido impugnada pelo apelante em termos procedimentalmente adequados – ou seja, com o cumprimento dos ónus impostos pelo art. 690.º-A do CPC, criando para a Relação o poder-dever de, através da audição da gravação do julgamento, sindicar a livre convicção da 1.ª instância – a Relação tem os seus poderes de sindicância da matéria de facto circunscritos aos casos em que – mesmo antes da vigência do DL n.º 39/95, que implementou um sistema de gravação das audiências e da prova nelas produzida – lhe era lícito alterar as respostas aos quesitos, pressupondo tal possibilidade que todos os elementos probatórios relevantes constem dos autos ou que o valor reforçado de certo elemento probatório, cabalmente documentado no processo, inviabilize que a livre apreciação de quaisquer outras provas o possa abalar”[16].

Assim acontece quando, por exemplo, tiver sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto nos termos previstos nos artigos 371.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1, do Código Civil[17], mas apesar disso, o julgador o tenha considerado como não provado; ou quando não tenha sido considerada uma declaração confessória constante de documento ou resultante do processo, em violação do preceituado nos artigos 358.º do CC, e 484.º, n.º 1, e 563.º, ambos do CPC; ou ainda quando não tenha sido atendido o acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto com o valor consagrado no artigo 490.º, n.º 2, do CPC, respondendo-se ao contrário de tal prova plena e atribuindo-se prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios, v.g., a prova testemunhal ou um documento particular em sentido diverso, que, nesse caso, não podiam ter sido atendidos.

Aliás, nas situações sobreditas, a alteração da matéria de facto assim respondida, nem sequer depende da iniciativa da parte, devendo oficiosamente ser levada a cabo pela Relação, face ao disposto no artigo 713.º, n.º 2, do CPC que manda atender na segunda instância ao preceituado, nomeadamente, no artigo 659.º, n.º 3, do CPC, pelo que, à semelhança da sentença, também o acórdão tomará sempre em consideração os factos admitidos por acordo e os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, devendo ainda, por força da remissão para o artigo 646.º, n.º 4, do CPC, declarar não escritas as respostas do tribunal dadas sobre factos que só possam provar-se por documentos e que tenham sido considerados provados, por exemplo, por acordo ou por confissão das partes.

Desta sorte, no caso em apreço, este tribunal apenas poderia alterar as respostas dadas pelo Mm.º Juiz a quo às respostas dadas à matéria de facto impugnada, se verificasse que as mesmas violavam os ora referidos preceitos legais e tal situação manifestamente não acontece, porquanto a prova pericial não configura prova plena sobre os factos sobre que se pronuncia.

Ora, os Recorrentes pretendem que a prova foi exclusivamente produzida com base no relatório e esclarecimentos do Sr. Perito, mas tal não se verifica, como já vimos.

Acontece que, apesar de a prova pericial ser uma prova produzida por quem tem especial idoneidade e competência na matéria em causa (artigo 568.º, n.º 1, do CPC), em face do preceituado no artigo 591.º do CPC, o respectivo valor é livremente apreciado pelo tribunal, nada obstando consequentemente a que o Mm.º Juiz, em face da demais prova produzida que assinalou na respectiva fundamentação, mormente testemunhal, documental e da própria inspecção ao local, se tenha convencido no sentido de dar como provados os indicados artigos da base instrutória.

E diga-se que das fotos juntas aos autos, nomeadamente as que fazem fls. 30, 33, e 41, é visível que o muro divisório segue apenas para o lado da frente o prédio dos Réus, não existindo na parte da frente da casa dos Autores, situação que também é visível nas fotos de fls. 165 juntas pelo Sr. Perito, que demonstram a referida continuidade das pedras. Depois que as pedras são alicerces e são visíveis saindo do muro apenas para a parte de dentro e junto ao chão da garagem dos Réus, também fica evidente nas fotos de fls. 176 e 177, das quais resulta que tais saliências das pedras não são visíveis para o lado do prédio dos autores, conforme também fica ilustrado pelas fotos de fls. 32, 33, 37, 41 e 42 dos autos, tudo nos parecendo estribar cabalmente a convicção julgador. De facto, o próprio artigo da base instrutória tem a expressão cachorros entre aspas, pretendendo com tal significar-se a existência de pedras salientes apenas para o lado do prédio dos RR, o que claramente se verifica conforme o Sr. Perito também afirmou no seu relatório. Portanto, mesmo apenas com os elementos disponíveis nos autos, não se vislumbra que tenha existido o invocado erro na apreciação da prova quanto aos indicados artigos.

Mas, ainda que tal tivesse ocorrido, nunca a pretendida alteração poderia ser no sentido propugnado pelos recorrentes na sua conclusão 10. considerando que deveria ter sido considerado demonstrado que «(…), nos anos de 1930, erigiu no prédio referido em a) (entenda-se prédio inscrito na matriz predial da Freguesia de H (...), Concelho da Guarda sob o art.º x (...).º e pertença dos AA) a habitação e o muro existente no logradouro, situado a Sul, que assentou na fachada da habitação» com o esclarecimento que o muro divisório das propriedades de autores e Réus foi implantado em exclusivo no logradouro do imóvel dos autores, porquanto tal extravasaria completamente a matéria de facto constante dos indicados artigos, a qual só poderia merecer resposta positiva, negativa, restritiva ou explicativa, mas nunca uma total alteração do sentido do alegado.

Acresce que, tal matéria, na sua essencialidade, havia sido alegada pelos AA. na petição inicial e impugnada pelos RR. correspondendo à vertida no artigo 1.º da base instrutória, o qual mereceu a resposta de “não provado”, que os ora Recorrentes não impugnaram. Como tal, nunca poderia o tribunal dar-lhes a resposta ora pretendida.

Desta sorte, improcede in totum a pretendida alteração da resposta aos indicados pontos 45.º e 46.º da matéria de facto, e como tal as conclusões 5 a 10 do recurso.

Apesar de não o invocarem cabalmente, os Recorrentes já no segmento das suas alegações que intitularam ser de “Direito”, pretendem ainda que o artigo 1.º da Base Instrutória deveria ter resposta diversa, considerando-se demonstrando, com o esclarecimento que o muro divisório das propriedades de autores e Réus foi construído em exclusivo no logradouro do imóvel dos autores.

Para o efeito, aduzem que ficou ainda demonstrado nas als. 8 e 22 da fundamentação de facto que o muro divisório dos logradouros dos prédios de Autores e RR assentava a nascente em exclusivo na fachada poente do edifício existente no prédio dos AA, e distava em 1,27 metro da parede norte do edifício existente no prédio pertencente aos réus, situado a sul do prédio dos Autores.

Por outro lado, e por forma a explicitar melhor a configuração do muro refira-se que da acta com a refª. nº 2505100 que retrata a inspecção ao local, consta que na «propriedade dos réus verifica-se a existência de uma construção que serve de garagem, com construção de um terraço que deita para o prédio dos autores ao nível do 1º andar e onde se encontra construído um muro que entra para o prédio dos autores.»

Pretendem os Recorrentes que tal materialidade por ser instrumental do alegado pelos autores, deveria nos termos do artº 264 nº 2 do CPC ter sido considerada na sentença, o mesmo acontecendo, pese embora, não ter sido alegada tal materialidade, mas ainda sendo a mesma instrumental à que foi alegada pelos Autores na sua PI e réplica, nomeadamente quando se referiram a construção do muro divisório dos prédios por parte do anterior proprietário do seu imóvel exclusivamente no seu logradouro (artº 56º da PI e artº 33º da Réplica), deveria tal materialidade ter sido atendida em sede de decisão.

Assim por o muro divisório assentar em exclusivo na fachada do edifício dos Autores a sua elevação conduziu a que a construção entrasse para o prédio dos autores o que indicia que o muro encontra-se exclusivamente construído em terreno dos mesmos, pelo que deveria ter sido considerado demonstrado o artº 1º da Base instrutória com o esclarecimento.

De sublinhar e para corroborar o que se acaba de referir releva ainda o relatório pericial e esclarecimentos juntos a fls 163 a 165 e 175 a 177, onde se pode ler que uma pedra sita na extremidade poente do muro divisório que faz canto, virada a Norte, isto é para o terreno dos Autores foi cortada de forma diferente das restantes pelo que se presume que fosse inteira.

Dito de outro modo tal pedra que faz parte do muro divisório possuía uma saliência, configurável como cachorro para o prédio dos Autores.

Tal materialidade por ser instrumental e resultar da instrução deveria ter sido atendida em sede de decisão pelo que pretendem ainda que deve ser alterada a resposta à matéria de facto do referido artigo 1.º da base instrutória.

Ora, salvo o devido respeito, e apesar de a impugnação da matéria de facto relativamente a este artigo não ter sido efectuada com observância do disposto no artigo 712.º do CPC, sempre se dirá que a pretensão dos Recorrentes nunca poderia ter qualquer viabilidade.

Efectivamente, tendo sido levados à base instrutória os factos essenciais referentes a quem construiu o muro da discórdia nos presentes autos - se o anteproprietário do prédio dos Autores, se o anteproprietário do prédio dos RR – vertidos nos artigos 1.º a 7.º, quanto à versão dos AA. e nos artigos 47.º a 53.º, a respeito da versão dos RR., e tendo quer aqueles quer estes merecido resposta negativa, não se alcança como pretendem os AA. que os factos que qualificam de instrumentais que ora invocam deverem ter sido considerados a seu favor, pudessem alterar a respectiva materialidade. Ou seja, efectuada a produção de prova, e mormente a inspecção ao local, o julgador não logrou convencer-se positivamente relativamente a qual dos antepossuidores dos prédios havia levado a cabo a construção do muro. Isto, pese embora tenha constatado no local que ali se verifica a existência de uma construção que serve de garagem, com construção de um terraço que deita para o prédio dos autores ao nível do 1º andar e onde se encontra construído um muro que entra para o prédio dos autores. Como é evidente, tal não significa que o mesmo esteja construído no logradouro do prédio dos AA, facto essencial que estes, aliás, nunca alegaram, tendo sido bem expressos no artigo 50.º da respectiva petição inicial ao afirmar que “os logradouros dos prédios supra descritos, encontravam-se separados por um muro de cerca de 20 cm. de espessura”. Portanto, os autores nunca invocaram que o muro foi construído no seu logradouro, nem colocaram em causa que o logradouro do prédio dos RR. lhes pertencesse. E basta visualizar as fotos para percepcionar que a referida menção a que “o muro entra para o prédio dos autores” efectuada na inspecção ao local apenas pretende significar que este muro não fica construído, conforme é usual, na linha que separa a construção de ambos os edifícios. Na verdade, mostra-se assente, por acordo, que a parede norte do edifício pertencente aos réus confina com a parede sul do edifício existente no prédio referido em a), não existindo qualquer interstício entre ambos, sendo que a entrada para as habitações existentes em ambos os prédios efectua-se através das fachadas poente, que se encontram alinhadas, situando-se os logradouros de ambos os prédios à frente das entradas das respectivas habitações. Só que - e esta é a situação fora do comum que as fotos dos autos cabalmente documentam -, apesar de os edifícios serem contíguos e terem as fachadas alinhadas, ao invés do que é habitual, o muro que separa os respectivos logradouros, está construído assentando a nascente em exclusivo na fachada poente do edifício existente no prédio referido em a), e afastado da “linha” que divide as fachadas de ambos os prédios, ficando uma parte da fachada do prédio dos AA., a confinar já com o logradouro dos RR., ficando o tal muro divisório para dentro do prédio dos AA. neste sentido, ou seja, o logradouro do prédio dos RR. vai para além da tal linha das duas fachadas dos edifícios. Por outras palavras, conforme resulta provado da resposta ao artigo 17.º da base instrutória, o muro referido encontrava-se a 1,27 metro da parede norte do edifício existente no prédio pertencente aos réus, situado a sul do prédio referido em a), e à mesma distância da parede sul deste prédio. Portanto, é este o significado de “entra para o prédio dos autores”.

Acontece que esta constatação, ao invés do que pretendem os AA. não tem que significar que o muro foi construído no logradouro dos AA, considerando que não se apurou a razão por que tal divisão entre os logradouros aconteceu nestes termos.

Acresce que, quanto à pedra do muro que os AA. referem ter sido cortada, se a mesma era um cachorro, como os AA. agora parecem supor, pretendendo daí retirar a presunção de propriedade do muro a seu favor, tal não é manifestamente um facto instrumental mas essencial para poderem beneficiar de tal presunção que, como tal, tinham que ter oportunamente alegado. Não o tendo feito, sibi imputet, não podendo agora pretender com meras suposições provar factos que não invocaram, como lhes incumbia, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC.

Desta sorte, mantém-se intocada a resposta de “não provado” dada ao artigo 1.º da Base Instrutória.


*****

III.2.2. – O mérito do recurso

III.2.2.1. - Do direito de propriedade quanto ao muro

Pretendem os Autores e ora Recorrentes na sua conclusão 11 que, considerando a pretendida alteração da matéria de facto, nos termos do artigo 1371.º do CC deveria ter sido reconhecido que os Autores eram os únicos e exclusivos titulares do direito de propriedade sobre o muro divisório e por via disso deveriam os RR ter sido condenados a reconhecer tal direito e, em consequência, serem condenados a demolir toda a construção edificada sobre o dito muro por ao alçarem e integrarem tal muro na construção que edificaram na sua propriedade, terem violado o direito de propriedade daqueles.

Porém, é evidente a sua falta de razão.

Efectivamente, por um lado, a pretendida alteração da matéria de facto que fundava esta pretensão recursória não poderia ocorrer pelas razões ora acabadas de expender; e, por outro lado, os Autores não lograram demonstrar, como lhes incumbia, por força do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC, os factos que haviam alegado a respeito do seu exclusivo direito de propriedade sobre o muro em questão, atenta a resposta de “não provado” à matéria dos artigos 1.º a 7.º da base instrutória, onde se perguntava se (…) nos anos de 1930, erigiu no prédio melhor identificado na alínea A) da matéria de facto a habitação e o muro existente no logradouro, situado a sul, que assentou na fachada da habitação; procedeu a reparações e realizou outras obras na mesma habitação; desde os anos de 1930 e até ao ano 2000, aí tomou as suas refeições, dormiu, passou os seus tempos de lazer e era visitado; sem interrupções; à vista de todos; sem oposição ou autorização de ninguém; e na convicção de exercer um direito próprio.

Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, não tendo os Autores demonstrado que o muro havia sido construído, conservado e usado pelo anteproprietário do respectivo imóvel, nem que, por qualquer forma, haviam adquirido a respectiva propriedade, soçobra a conclusão 11. das respectivas alegações e consequentemente o pedido formulado para declaração de que o muro em questão é de sua pertença.

Consequentemente, importa avançar para aquilatar se a respectiva conclusão 12. em que pretendem que caso não se entenda ter sido demonstrado que os recorrentes eram os únicos e exclusivos donos do muro que separava o imóvel dos RR do prédio dos AA, sempre o mesmo se deveria presumir comum nos termos do art.º 1371.º n.º 1 e 2 do CC, pode proceder, ou seja, se os Autores podem ser considerados comproprietários do aludido muro.

            A este respeito verifica-se que o artigo 1370.º, n.º 1, do CC, contempla a possibilidade de aquisição derivada em compropriedade, quando permite que o proprietário do prédio confinante com parede ou muro alheio possa adquirir nele comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu valor e metade do valor do solo sobre que estiver construído.

            Basta percorrer o petitório inicial para verificar que os autores nada alegaram que pudesse integrar esta forma de aquisição do direito em propriedade em comunhão e, como tal, não lhes seria possível demonstrar tal forma de aquisição de compropriedade sobre o muro, com base no pagamento de metade do valor do muro alheio e do solo em que o mesmo assenta, pretendendo os mesmos apenas que o muro se presume comum.

            Depois, preceitua o referido artigo 1371.º, do CC, na parte que ora importa, que:

“1. A parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se não o forem.

2. Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário.

3. São sinais que excluem a presunção de comunhão:

a) A existência em espigão de ladeira só para um lado;

b) Haver no muro, só para um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele;

c) Não estar o prédio contíguo igualmente murado pelos outros lados.

4. No caso da alínea a) do número anterior, presume-se que o muro pertence ao prédio para cujo lado se inclina a ladeira; nos outros casos, àquele de cujo lado se encontrem as construções ou sinais mencionados”.

Ora, como é bom de ver pelo teor literal do citado preceito que nos n.ºs 1 e 2 começa por estabelecer uma presunção de comunhão do muro divisório entre dois edifícios ou pátios e quintais de prédios urbanos, do mesmo resulta claramente, logo pelo disposto no n.º 3, que há sinais que afastam tal presunção, estabelecendo então que, caso estes existam, se presume que o muro pertence ao prédio para cujo lado se verificam, nos termos referidos no n.º 4.

Por seu turno, estabelece o artigo 1371.º, do CC que “[o] proprietário a quem pertença em comum alguma parede ou muro não pode abrir nele janelas ou frestas, nem fazer outra alteração, sem consentimento do seu consorte”, aduzindo ainda o artigo 1373.º, n.º 1, da mesma codificação que “[q]ualquer dos consortes tem, no entanto, a faculdade de edificar sobre a parede ou muro comum e de introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou muro”, sendo ainda que de acordo com o artigo 1374.º, n.º s 1 e 3, do CC, “a qualquer dos consortes é permitido altear a parede ou muro comum, contanto que o faça à sua custa, ficando a seu cargo todas as despesas de conservação da parte alteada”, sendo que “o consorte que não tiver contribuído para o alçamento pode adquirir comunhão na parte aumentada, pagando metade do valor dessa parte (…).”.

Em face destas indicadas previsões legais, é evidente a constatação de que apenas se se verificasse a invocada presunção de compropriedade do muro divisório a favor dos autores, se poderia considerar que os réus haviam infringido tal direito ao edificarem sobre a metade do muro que pertenceria aos autores, cuja consequência seria a peticionada demolição.

Acontece, porém, que no caso em apreço, os RR. para além de haverem alegados factos tendentes a demonstrarem a sua propriedade exclusiva sobre o muro em questão, os quais, como vimos supra, não lograram demonstrar, a fim de beneficiarem da aludida presunção de propriedade que os n.ºs 3 e 4 do artigo 1371.º estabelece, alegaram os factos levados à base instrutória sob os n.ºs 45.º e 46.º, já supra transcritos e que se mostram provados, tendo consequentemente vindo a demonstrar que o muro existente entre o logradouro do prédio dos AA. e o logradouro do prédio pertencente aos réus na confinância com a rua pública, sita a poente, é feito por pedra em granito, que é continuidade do muro sito a norte do mesmo prédio, cujas pedras se encontram entrelaçadas, dando ao muro a configuração total de um “L”, e possui “cachorros” ou pedras que excedem para um dos lados a largura das demais que se lhe encontra sobrepostas, na parte inferior interna, ao nível da sua base, rentes ao solo, virados exclusivamente para o interior do logradouro do prédio pertencente aos réus.

Esta factualidade, integra, sem margem para dúvidas, os sinais elencados nas alíneas b) e c) do citado artigo 1371.º do CC, porquanto a continuidade do muro verifica-se para o prédio dos réus e não dos autores, existindo do lado do prédio destes pedras que excedem para um dos lados a largura das demais, sinais estes que por força dos indicados preceitos legais excluem a presunção de comunhão do muro que os autores haviam invocado a seu favor, presumindo-se em face do n.º 4 do mesmo preceito, que o muro pertence ao prédio onde se encontram os aludidos sinais, ou seja, ao prédio dos RR.

Como assim, improcede também a conclusão 12 das alegações de recurso e, consequentemente, o pedido subsidiário de reconhecimento da respectiva compropriedade quanto ao muro.

Não tendo os AA. demonstrado nem a propriedade exclusiva do muro onde a construção foi efectuada em toda a sua largura pelos RR. nem sequer a respectiva compropriedade, soçobram sem necessidade de quaisquer outros argumentos as conclusões 13 e 14 das alegações de recurso, porquanto não pertencendo o muro aos AA. não tinham os RR., pelo menos com este fundamento, que obter o respectivo consentimento para efectuarem tal construção, não tendo com a mesma limitado o direito de propriedade dos Recorrentes sobre o muro, pura e simplesmente porque estes não demonstraram que tal direito sequer existisse, daí que, por esta via, sempre improcederia a conclusão 15, em face da indemonstrada violação do direito de propriedade.


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III.2.2.2. - Da violação da servidão de vistas

Peticionaram ainda os AA. que os RR. fossem condenados a reconhecerem o direito de servidão de vistas do prédio urbano, inscrito na respectiva matriz predial de H (...), concelho da Guarda sob o artº x (...), descrito na respectiva Conservatória do registo Predial da Guarda sob a matrícula w(...)/20041230 sob o prédio urbano, inscrito na matriz predial de H (...), concelho da Guarda sob o artº y(...) e descrito na respectiva Conservatória do registo Predial da Guarda sob o n.º k (...)/19920406; e consequentemente fossem os RR. condenados a demolirem toda a construção erigida pelos réus no logradouro do seu prédio por ofensa da servidão detida pelos autores; ou, subsidiariamente, a recuarem a mesma em 1,5 metros.

A este respeito expendeu-se na sentença recorrida que «[d]a subsunção destes factos às referidas normas, não se pode concluir que os réus, com a sua conduta tenham de algum modo violado o direito de propriedade dos autores e a servidão de vistas, não podendo quanto a este último direito dos autores de deixar de se referir que era alegado que deixaram de ver “tudo o que ocorria no logradouro do prédio do vizinho” o que implicaria sempre a devassa da privacidade dos vizinhos e os autores sentirem-se diminuídos no seu direito de propriedade por não poderem continuar a observar o que se passava no prédio vizinho. (…)

Nem provaram, como igualmente lhes competia, a matéria de facto constante dos artigos 23º a 25º que poderia obstar à legalidade da construção levada a cabo pelos réus e consequente violação do direito de propriedade, mormente, do direito de servidão de vistas», concluindo, consequentemente, pela absolvição dos RR. quer do pedido de reconhecimento da existência da servidão de vistas quer da peticionada demolição ou recuo da construção, em virtude de os AA. não haverem provado, conforme haviam alegado, que os réus, com o alteamento do muro, taparam uma área de 1,27 metro x 1,50 metro, da área da fachada do prédio referido em a), inexistindo entre a construção realizada pelos réus e a fachada da habitação existente no prédio referido em a) qualquer distância que os separe, nem parede interior.

Ora, compulsadas as conclusões das alegações apresentadas pelos AA. verifica-se que os mesmos, em momento algum, se reportam ao reconhecimento deste seu direito com fundamento no disposto no artigo 1362.º do CC, razão pela qual, não se tendo provado a invocada aquisição de tal servidão de vistas por usucapião, este segmento da sentença transitou em julgado, não podendo os seus efeitos ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo – artigo 684.º, n.º 4, do CPC.

Optaram agora os AA. por invocarem a seu favor nas conclusões 16. e 17. que deveria o Tribunal "a quo", atendendo ao disposto no artº 664º do CPC e no artº 70º e seguintes do CC, ter considerado violado o direito de personalidade dos Autores na sua vertente de direito à saúde, ao ambiente em que vivem, à salubridade, ao bem estar como factores condicionantes do equilíbrio psicossomático.

Ora, se é certo que se trata de questão nova, porquanto os autores não intentaram a acção com este fundamento, não é menos verdade que, centrando os Recorrentes a sua alegação no facto de estamos perante mera questão de qualificação jurídica dos factos que os mesmos já haviam invocado, cumpre ater-nos à mesma para aquilatar da respectiva bondade, sabido que ao tribunal não está vedada a qualificação jurídica diversa daquela que os AA. inicialmente haviam atribuído aos factos alegados (artigo 664.º do CPC).


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III.2.2.3. - Da construção edificada pelos RR.

Em fundamento desta sua pretensão invocam os Recorrentes que ficou demonstrado que:

«15. O muro referido em 6., 7. e 8. permitia, a partir da janela referida em 5., debruçar-se sobre o peitoril aí existente e ver-se o espaço situado em redor da moradia, permitindo observar tudo quanto ocorria no logradouro do prédio vizinho, situado a sul daquela habitação - resposta ao quesito 8º da base instrutória;

20. Os autores e antecessores no direito sobre o prédio referido em 1. sempre receberam a luz a partir daquelas janelas - resposta ao quesito 15º da base instrutória;

21. Sempre as utilizaram para aí se debruçarem e observarem tudo quanto acontecia ao redor da habitação e até ao seu horizonte - resposta ao quesito 16º da base instrutória;

26. Com as obras referidas em 12., o muro passou a ter, junto da habitação existente no prédio referido em 1., a altura de 2,00 metros e, junto à Rua, a altura de 2,50 metros - resposta ao quesito 21º da base instrutória;

29. O que impede os autores de ver, por aquela janela, o espaço que se encontra a sul - resposta ao quesito 30º da base instrutória;

30. Ensombrando o compartimento em que a janela se encontra colocada, que deixou de receber sol e luz natural durante o dia - resposta ao quesito 32º da base instrutória;

31. Os autores passaram a acender as luzes mais cedo relativamente ao que faziam antes do alteamento do muro resposta ao quesito 33º da base instrutória;

33. O prédio referido em a), ficou desvalorizado com as obras efectuadas pelos réus, em montante que se não apurou em concreto - resposta ao quesito 37º da base instrutória;

34. Os autores, desde o momento em que se aperceberam das obras efectuadas pelos réus ficaram preocupados com a desvalorização do prédio identificado em 1. e inconformados com a perda de luz natural que iluminava ao compartimento em que se encontra a janela mencionada em 5. - resposta aos quesitos 38º a 42º da base instrutória;

35. Tiveram aborrecimentos vários com a Câmara Municipal da Guarda - resposta ao quesito 43º da base instrutória»

Razão pela qual, pretendem os AA./Recorrentes que em consequência destes factos, deveriam os RR terem sido condenados a pagar-lhes quantia a liquidar em execução de sentença decorrente da desvalorização da sua habitação e a cada um deles, a título de danos não patrimoniais a quantia de € 3000,00.

Vejamos, se lhes assiste razão.

Sob a epígrafe Tutela geral da personalidade dispõe o artigo 70.º, n.ºs 1 e 2, do CC que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, sendo que independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Como é bom de ver, o n.º 1 do art. 70.º do Código Civil toma como bem jurídico, objecto de uma tutela geral, a personalidade física ou moral, dos indivíduos, isto é os bens inerentes à própria materialidade e espiritualidade de cada homem[18].

Trata-se de um preceito que tutela a personalidade, como direito absoluto, de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome, e à honra, que são os factores que individualizam o ser humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis[19].

Acresce que, visando assegurar a dignidade do ser humano[20], a respectiva tipificação não é exaustiva, mas simplesmente exemplificativa. Os tipos de direitos de personalidade previstos na lei e enunciados pela doutrina são tipos representativos. Quer isto dizer que, para além dos tipos enunciados, outros podem surgir, e que os que são referidos correspondem apenas a casos especialmente exemplares e elucidativos que servem para exprimir modelos de comportamentos, são casos paradigmáticos de tutela da personalidade[21].

Entre estes direitos avulta o direito à saúde e ao bem-estar que os AA. invocam terem sido violados com a construção levada a cabo pelos RR. e cuja tutela se efectua, nos termos preconizados no n.º 2 do referido artigo 70.º, por via da responsabilidade civil prevista nos artigos 483.º e ss. do CC.

Ora, este preceito consagra os princípios gerais da responsabilidade civil por facto ilícito, e dispõe que:

"Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".

Os pressupostos deste tipo de responsabilidade agrupam-se num elenco de cinco, a saber: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano[22].

Assim, o facto é ilícito quando viola um direito subjectivo de outrem, de natureza absoluta, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, como ocorre quando a norma violada protege interesses particulares, mas sem conceder ao respectivo titular um direito subjectivo, dependendo, então, a indemnização a arbitrar que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar[23].

Já quanto à imputação do facto ao lesante, a responsabilidade civil pressupõe, em regra, a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente perante o facto, consistindo, em sentido amplo, na referida imputação do facto ao agente[24], ou ainda num enquadramento normativo, entendido como a omissão da diligência que seria exigível ao agente medida de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe[25], sempre apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487.º, n.º 2, do CC).

Por seu turno, no tocante ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, o artigo 563.º do CC, consagrou a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual, na sua formulação positiva, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado, e ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja causa adequada do dano; e, na sua formulação negativa, a condição deixa de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, a mesma era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequada para a ocorrência desse dano[26].

Já no que respeita à existência de um dano, este é condição essencial da obrigação de indemnizar: o facto ilícito e culposo tem que causar um prejuízo a alguém, o sofrimento de uma perda nos seus interesses patrimoniais ou não patrimoniais.

Ora, para aquilatar da existência do primeiro pressuposto da obrigação de indemnizar com este fundamento, necessário se torna previamente apurar se os RR. praticaram algum facto ilícito ao efectuar a construção que teve sobre o imóvel dos AA. as consequências que se apuraram quanto à entrada de sol na respectiva habitação, só depois cabendo subsidiariamente apreciar se, ainda que se trate dum facto lícito, estamos perante alguma situação de colisão de direitos, a dirimir por via do disposto no artigo 335.º, n.º 2, do CC.

Efectivamente, conforme já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça[27] trata-se do direito à insolação, entendido no sentido de direito à exposição solar, o qual se integra no direito à saúde, na vertente de direito de personalidade, na estrita medida em que a exposição solar, com ponderada moderação, tem efeitos terapêuticos físicos e psicológicos.

Daí que se possa considerar que ocorre colisão de direitos sempre que, na configuração casuística, ou no seu exercício, dois ou mais direitos subjectivos são incompatíveis entre si, devendo então prevalecer o que tutela um interesse superior, como é o caso dos direitos de personalidade.

Acontece que, para apreciação da prevalência deve analisar-se a situação em concreto tendo em conta a intensidade do exercício do direito e a sua antiguidade, já que tem de considerar-se a posição que foi alterada pela situação conflituante.

Assim sendo, e tendo no caso presente, sido invocada pelos AA. a existência de violação do disposto no artigo 1360.º do CC, ou seja, a ilicitude da construção edificada pelos RR., em primeiro lugar, cumprirá determinar se esta ocorre, o que apreciaremos infra, e só depois, caso tal não aconteça, efectuar a sobredita apreciação quanto à colisão de direitos.

Ora, a respeito da ilicitude da conduta dos RR. os AA. invocaram ainda - e também é questão nova mas de que cumpre conhecer por se tratar de alegada violação de lei – a violação de regras do RGEU, aduzindo que:

«Resulta demonstrado nas alíneas 5, 6º, e 12º da fundamentação fáctica a seguinte descrição do prédio propriedade dos autores: «A sudoeste, a fachada da habitação existente no prédio referido em 1., possui uma janela, com as dimensões de 1,15 metro de altura e de 0,72 metro de largura, com um peitoril que excede 10 cm paro fora os limites da mesma fachada», «6. Tal janela está situada a 1,10 metro do solo e a 0,07 metro a norte de um muro existente entre o logradouro do prédio referido em 1. de um outro logradouro de um prédio pertencente aos réus;», «12. Os réus, no início do mês de Julho de 2008, elevaram em toda a sua extensão o muro referido em 6. -»

Ainda assim, tendo presente que a janela sita no R/C da habitação dos autores, pela qual recebiam iluminação natural possui uma largura de 72 cm, e encontra-se a 7 cm do muro divisório entretanto elevado em toda a sua extensão pelos RR e por estes aproveitado como parede nascente de uma garagem que construíram resulta que entre a janela medida a partir da sua extrema nascente e a elevação do muro, dista uma largura de apenas 79 cm, em clara contravenção com as normas do RGEU.

Em consequência, violaram os RR os art.ºs 8º e 73º do RGEU, aplicável quer à colocação de novas janelas em novas edificações, quer para salvaguarda da distância mínima a respeitar entre as novas construções e as janelas já existentes em edificações antigas, como é o caso.

Assim sendo, e porque os RR violaram normas imperativas, tornam-se responsáveis pelos prejuízos que sofreram os Autores, razão pela qual deveriam aqueles terem sido condenados a demolir toda a construção edificada sobre o dito muro e/ ou a pagar-Ihes quantia a liquidar em execução de sentença pela desvalorização da sua habitação e a cada um deles a titulo de danos não patrimoniais a quantia de € 3000,00».

Resultando do disposto no artigo 1315.º do CC que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas), é desde logo evidente que deste normativo não decorre que o dono da coisa tenha sobre ela a possibilidade de um exercício absoluto, nomeadamente no tocante à edificação, já que o mesmo há-de ser sempre limitado e temperado por aquilo que o interesse público demande, contando-se precisamente entre as restrições que o direito de propriedade pode sofrer aquelas que são impostas na construção, em decorrência das razões de segurança, salubridade e estética que se mostram vertidas precisamente no RGEU[28].

Por isso, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se orientado no sentido de que está consentida aos particulares a possibilidade de demandarem o infractor das regras do RGEU desde que, face a esta ilegalidade, lhe tenham advindo danos patrimoniais compreendidos no atentado ao seu direito de propriedade e, igualmente, lhe tenham causado prejuízos não patrimoniais relativos aos seus direitos de personalidade protegidos pelo artigo 70.º do CC, e com assento constitucional no direito que lhes é concedido pela Lei Fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (art.º 66.º, n.º 1, da CRP), decidindo, nomeadamente que:

“O círculo de interesses tutelados por determinados preceitos de direito público, atinentes à disciplina urbanística, pode envolver a atribuição aos particulares lesados pela violação de tais normas de verdadeiros direitos subjectivos ou, pelo menos, de interesses juridicamente tutelados - podendo a respectiva violação originar infracção de norma legal destinada a proteger interesses alheios, de modo a resultar preenchido o pressuposto «ilicitude», nos termos da parte final do nº 1 do art.º 483º do CC, mesmo que se não mostre preenchida a «fattispecie» de algum dos preceitos do CC que disciplinam as relações jurídicas reais de vizinhança entre imóveis”[29].

Efectivamente, “(…) assiste ao cidadão a prerrogativa de exigir que seja protegida a anti-juridicidade que lhe sobreveio - v.g. em relação à tutela geral da personalidade e ao direito de propriedade previsto genericamente no art.º 1305.º e de uma forma mais precisa (construções e edificações) no art.º 1360.º do C.Civil - em resultado da infracção aos princípios que presidem à edificação urbanística e que o seu vizinho cometeu.

Neste enquadramento legislativo podemos afirmar que, no levantamento de cada uma das edificações, ter-se-á de distinguir quais os aspectos que brigam unicamente com postulados condizentes com a estética arquitectural e demais ambiência circundante - que lhes estão regulamentarmente ligados e cuja orientação está exclusivamente a cargo das câmaras municipais através da concessão da respectiva licença de edificação e cujo controle é tarefa das autoridades administrativas - e quais as circunstâncias que atentam directamente contra a previsão da lei de modo a detectar-se uma ilicitude substantiva a que terá de pôr-se cobro, porque estão fora dos desígnios de um melhor aproveitamento harmonioso da civitas[30].

Ora, no caso em apreço, a construção levada a cabo pelos RR. no respectivo logradouro, foi sujeita a prévio licenciamento camarário, presumindo-se consequentemente, que na respectiva atribuição a entidade competente para o efeito, teve em devida conta o disposto no artigo 74.º do RGEU[31], de acordo com o qual, “[a] ocupação duradoura de logradouros, pátios ou recantos das edificações com quaisquer construções, designadamente telheiros e coberturas, e o pejamento dos mesmos locais com materiais ou volumes de qualquer natureza só podem efectuar-se com expressa autorização das câmaras municipais quando se verifique não advir daí prejuízo para o bom aspecto e condições de salubridade e segurança de todas as edificações directa ou indirectamente afectadas”.

Portanto, em princípio, a construção licenciada observou os requisitos necessários à observância das condições de salubridade e segurança da edificação dos AA.

E se assim não aconteceu, ou seja, se a construção foi efectuada em desconformidade com o projecto que havia sido objecto do necessário licenciamento camarário, aos autores incumbia alegar e provar, tal desconformidade e em que medida afectava os seus direitos, isto porque, “é ao cidadão afectado por esta última contingência que, observando os princípios ligados ao ónus da prova entre autor e réu pelo modo como este princípio geral está consignado no art.º 342.º do Código Civil, terá de comprovar que este seu direito foi violado e apontar o instrumento por que se tornará corrigida tal malfeitoria assim concretizada”, ou dito por outras palavras, os AA. deviam atentar na “contingência jurídico-processual de que impende sobre quem se sente molestado pela contrariedade da conduta do seu vizinho com o ordenamento jurídico, que convença o julgador de que essa ocorrência foi a causa dessa adversidade que lhe adveio”[32].

Ora, conforme já resulta do supra exposto, os AA. não alegaram quaisquer factos tendentes a demonstrar expressamente que a construção edificada pelos RR. violou o RGEU. Porém, com possível enquadramento na questão que ora colocam, os autos trazem-nos a seguinte evidência: encontra-se demonstrado, por acordo, que a sudoeste, a fachada da habitação existente no prédio referido em 1., possui uma janela, com as dimensões de 1,15 metro de altura e de 0,72 metro de largura, com um peitoril que excede 10 cm para fora os limites da mesma fachada – E) dos factos assentes; tal janela está situada a 1,10 metro do solo e a 0,07 metro a norte de um muro existente entre o logradouro do prédio referido em 1. de um outro logradouro de um prédio pertencente aos réus – F) dos factos assentes; tal muro, junto da referida fachada, possuía, desde os anos de 1930 e até Julho de 2008, a altura de 1 metro – G) dos factos assentes; tal muro assentava a nascente em exclusivo na fachada poente do edifício existente no prédio referido em 1. – H) dos factos assentes. Mais se encontra demonstrado que os réus, no início do mês de Julho de 2008, elevaram em toda a sua extensão o muro referido em 6. – L) dos factos assentes; tendo-o utilizado como parede (nascente) de uma garagem que construíram no espaço correspondente ao (anterior) logradouro do seu prédio, onde assentou parte da cobertura da referida garagem – N) dos factos assentes; e ainda que o muro referido em 6., 7. e 8. encontrava-se a 1,27 metro da parede norte do edifício existente no prédio pertencente aos réus, situado a sul do prédio referido em 1., e à mesma distância da parede sul deste prédio – resposta ao quesito 17º da base instrutória; a nascente, junto da habitação existente no prédio referido em 1., tinha a altura de 1 metro – resposta ao quesito 19º da base instrutória; e com as obras referidas em 12., o muro passou a ter, junto da habitação existente no prédio referido em 1., a altura de 2,00 metros e, junto à Rua, a altura de 2,50 metros – resposta ao quesito 21º da base instrutória, sendo que entre a construção levada a cabo pelos réus e a fachada do edifício existente no prédio referido em 1. existe um interstício de 150 cms – resposta ao quesito 55º da base instrutória.

Releve-se a extensão da transcrição da matéria de facto, mas a mesma afigura-se-nos necessária para ilustrar o que afirmamos de se seguida.

Para além desta matéria foi também submetida a julgamento a que constava do artigo 29.º, onde se perguntava se “o muro referido, ao ser elevado, seguiu em linha paralela à janela referida em e) e a uma distância de 0,07m?”, o qual veio a merecer a resposta de não provado.

Ora, tendo-se considerado provado que tal janela está situada a 1,10 metro do solo e a 0,07 metro a norte de um muro existente, e que esse muro foi alteado em toda a sua extensão, tendo agora a altura de dois metros, junto da habitação existente no prédio dos AA., não se consegue compreender a resposta dada aos artigos 29.º e 55.º da base instrutória.

Na verdade, a mesma afigura-se obscura, ou mesmo contraditória com a matéria que já constava assente, razão pela qual, se impõe a respectiva anulação, a fim de merecer resposta que se afigure inequívoca em face da demais materialidade.

Acresce que, com relevo para a decisão desta questão, invocaram os RR. factos que importa apreciar e que não foram levados à base instrutória, constantes dos artigos 49.º e seguintes da sua contestação, onde aduziram que a construção por eles levada a cabo só foi efectivada para lá de 150 cm a partir das duas janelas que o prédio dos A.A. dispõe na parte mais próxima do prédio dos R.R. quer a situada no nível do seu R/Chão quer a do 1º andar, com as consequências que infra melhor se determinarão, em face da obscuridade das sobreditas respostas.

     Finalmente, por via das suas conclusões 1 a 4, pretendem os autores que «Uma vez que ficou demonstrado nas al. 12 e 13 da fundamentação fáctica da decisão recorrida, que os RR no início do mês de Julho de 2008 elevaram em toda a sua extensão, sem conhecimento ou autorização dos AA, um muro divisório que separava o logradouro do imóvel dos recorrentes inscrito a seu favor na matriz predial da freguesia de H (...) sob o artigo x (...)2 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 2 w(...)/20041230, do logradouro do prédio dos RR; tendo o dito muro sido por estes aproveitado como parede de uma garagem edificada no espaço que correspondia a esse seu anterior logradouro, muro este que suporta agora a cobertura dessa garagem; e uma vez que também ficou demonstrado que «A cobertura da garagem suporta agora um terraço, virado a seu norte directamente para o logradouro do prédio referido em 1», isto é, virado directamente para o prédio dos AA; deveria ter sido considerado, nos termos do art.º 1360.º do CC, que os RR violaram o direito de propriedade dos Autores, e em consequência, deveriam ter sido os mesmos condenados a demolirem a construção edificada, razão pela qual deverá nessa parte ser revogada a douta decisão».

Com relevo para esta questão, determina o artigo 1360.º, n.º 1, do CC, que «[o] proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio», estendendo-se por via do seu n.º 2 esta restrição aos terraços, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.

Ora, no caso em apreço ficou demonstrado no ponto 28. da matéria de facto, por via da resposta ao artigo 26.º da Base Instrutória que «[a] cobertura da garagem suporta agora um terraço, virado a seu norte directamente para o logradouro do prédio referido em 1», ou seja, para o prédio pertencente aos AA.

Mais se demonstrou que a referida garagem que suporta agora o dito terraço corresponde à edificação que os RR construíram no logradouro do seu prédio que confina com o prédio dos AA. e que utiliza como parede (nascente) o muro divisório [alínea N) dos factos assentes], donde se pode claramente concluir que, atento o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1360.º do CC, tendo os RR. levantado no seu prédio a aludida garagem, cuja cobertura constitui um terraço que tem uma parte que deita directamente sobre o prédio vizinho que é o dos AA., para que o mesmo se possa manter, de duas uma: ou teriam que deixar entre o prédio vizinho e a construção erigida um espaço de metro e meio, o que, nesta parte não ocorreu porque o mesmo assenta no muro e deita directamente para o prédio dos AA; ou teriam que colocar no terraço um parapeito de altura superior a metro e meio, em toda a extensão do terraço que deita para o prédio dos AA, porquanto a lei só estende neste caso a restrição quando o parapeito é inferior a esta altura. E percebe-se claramente a sua razão de ser que assenta na restrição da possibilidade de devassa sobre o prédio vizinho.

Ora, pretendem os AA./Recorrentes que a este propósito haviam alegado nos artigos 75.º a 79.º da PI por referência a um projecto de obras da garagem construída pelos aqui RR/recorridos no logradouro do seu prédio, até agora inalterado e junto aos autos que «Irá ser aquele terraço ladeado a seu Norte, supõe-se que ainda no decurso do presente processo por um resguardo, com altura de 90cm», «Constituído por grades», «Com intervalos de 12 cm», «Tal resguardo, não irá impedir, que a privacidade dos autores vivida no interior do compartimento da habitação em que se encontra a janela a que nos referimos nos artº 20 e 21º desta peça processual (entenda-se artºs 5º e 6º dos factos assentes)», «Nem irá impedir que seja atirado para o logradouro do seu prédio objectos ou lixo», aduzindo que não ficou pura e simplesmente demonstrada a existência de qualquer parapeito, ao qual nem a decisão ora recorrida, nem o despacho que veio responder a matéria de facto, a que se refere a acta com a referência nº 2516967, fazem qualquer menção a existência de um qualquer parapeito, pelo que, em seu entender, deveria a acção proceder e terem sido os RR condenados a demolir a garagem por si construída no seu logradouro com utilização do muro divisório como parede nascente dessa construção.

Acontece, porém, que os Recorrentes omitem algo de absolutamente relevante a este respeito que os autos atestam.

Na verdade, conforme resulta do ponto 4. do relatório supra efectuado, invocando precisamente que visavam obviar ao disposto no segmento final do n.º 2 do artigo 1360.º do CC, os RR., por via do requerimento apresentado em 18-03-2009, vieram reclamar contra a base instrutória, pedindo que lhe fosse aditado um artigo. Este requerimento veio a ser entendido como ampliação que foi admitida, após o exercício do contraditório, tendo nessa sequência sido determinado o aditamento à base instrutória de novo facto com a seguinte redacção:

"26 – A - Tal terraço dispõe, na parte em que confina com o prédio dos A.A., de um parapeito opaco e contínuo, de tijolo revestido com argamassa, com 150 cm de altura a contar da respectiva cobertura?”

Porém, ao invés do que aconteceu com o demais alterado anteriormente, este novo artigo não foi aditado no lugar próprio da base instrutória inicialmente lavrada, acontecendo que o mesmo não veio a merecer qualquer resposta por parte do julgador.

Ora, nos termos do artigo 712.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC, pode a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida em 1.ª instância quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto – o que acontece quanto aos indicados artigos 29.º e 55.º da base instrutória; quando considere indispensável a ampliação desta, como é o caso relativamente à supra indicada distância de construção, invocada pelos RR. nos artigos 49.º e seguintes da sua contestação; e sobretudo quando seja inexistente a resposta a artigo da base instrutória que configura facto essencial para a decisão de uma das questões do pleito, o que impõe que tal se determine quanto ao artigo 26.º-A que não foi respondido, por se tratar em qualquer dos casos de matéria essencial a uma correcta apreciação e decisão do caso sub judice.

Como assim, torna-se indispensável a produção de prova e resposta às seguintes questões:

"Tal terraço dispõe, na parte em que confina com o prédio dos A.A., de um parapeito opaco e contínuo, de tijolo revestido com argamassa, com 150 cm de altura a contar da respectiva cobertura?”;

“A construção levada a cabo pelos RR. foi efectivada para lá de 150 cm a partir das duas janelas que o prédio dos A.A. dispõe na parte mais próxima do prédio dos RR., quer a situada no nível do seu R/Chão quer a do 1º andar?”;

E ainda aos supra indicados artigos 29.º e 55.º da base instrutória, com vista a sanar a apontada obscuridade ou contradição.

A repetição do julgamento não abrange, porém, a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo de o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão, nos termos previstos na parte final do n.º 4 do artigo 712.º do CPC.

Em face do exposto, fica prejudicado, por ora, o conhecimento destas três questões suscitadas, por pressuporem a prévia definição dos factos que, com relevo para a respectiva decisão, se venham ou não a mostrar assentes.


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III.3. - Síntese conclusiva

I - Efectuada a análise crítica das provas no âmbito da decisão a que se refere o n.º 2 do art. 653.º do CPC, será absolutamente desnecessário, por completamente inútil, proceder a nova repetição dessa fundamentação na sentença.

II - O disposto no artigo 659.º, n.º 3, do CPC, no segmento referente ao exame crítico das provas que cumpre ao juiz conhecer, terá no âmbito do processo declarativo comum, uma aplicação restringida no momento da prolação da sentença, apenas aos casos em que o julgador, só nesse momento, considera provados factos para além daqueles que já se encontravam provados.

III - Quanto à omissão da motivação da matéria de facto, as partes têm duas formas de reagir: logo no momento da decisão da matéria de facto, reclamando contra a falta da sua motivação, nos termos previstos no artigo 653.º, n.º 4, do CPC; ou recorrendo, nos termos do preceituado no artigo 685.º-B do mesmo diploma legal, impugnando a decisão relativa à matéria de facto, sendo que o facto de não terem oportunamente reclamado não preclude o recurso quando à matéria de facto, com este fundamento.

IV - A exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correcção.

V - Ainda que o Tribunal da Relação conclua pela existência de deficiente fundamentação na decisão proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto, a sanação da deficiência verificada, mesmo incidindo, como é pressuposto legal, sobre factos essenciais para a decisão da causa, não pode determinar oficiosamente que a mesma seja devidamente fundamentada, deixando o legislador esta possibilidade unicamente na disponibilidade do interessado que tem que requerer tal diligência, ao contrário do que ocorre na situação prevista no n.º 4 do referido artigo 712.º.

VI - Tendo o tribunal de 1.ª instância respondido à matéria de facto impugnada atendendo globalmente a toda a prova produzida – pericial, documental e testemunhal – não é lícito à Relação alterar a matéria de facto apurada, servindo-se da gravação dos depoimentos, uma vez que não tendo sido observado pelos Recorrentes o disposto no n.º 2 do artigo 685.º-B do CPC, “tudo se passa como se essa gravação não existisse”.

VII - Não tendo os AA. demonstrado nem a propriedade exclusiva do muro onde a construção foi efectuada em toda a sua largura pelos RR. nem sequer a respectiva compropriedade, não tinham os RR., pelo menos com este fundamento, que obter o respectivo consentimento para efectuarem tal construção, não tendo com a mesma limitado o direito de propriedade dos Recorrentes sobre o muro, pura e simplesmente porque estes não demonstraram que tal direito sequer existisse.

VIII - Entre os direitos de personalidade avulta o direito à saúde e ao bem-estar que os AA. invocam terem sido violados com a construção levada a cabo pelos RR. e cuja tutela se efectua, nos termos preconizados no n.º 2 do referido artigo 70.º, por via da responsabilidade civil prevista nos artigos 483.º e ss. do CC.

IX - Assim, para aquilatar da existência do primeiro pressuposto da obrigação de indemnizar com este fundamento, necessário se torna previamente apurar se os RR. praticaram algum facto ilícito ao efectuar a construção que teve sobre o imóvel dos AA. as consequências que se apuraram quanto à entrada de sol na respectiva habitação, só depois cabendo subsidiariamente apreciar se, ainda que se trate dum facto lícito, estamos perante alguma situação de colisão de direitos, a dirimir por via do disposto no artigo 335.º, n.º 2, do CC.

X – A violação das regras de construção previstas no RGEU, pode originar infracção de norma legal destinada a proteger interesses alheios, de modo a resultar preenchido o pressuposto «ilicitude», previsto na parte final do n.º 1 do art.º 483.º do CC, mesmo que se não mostre preenchida a previsão de algum dos preceitos do CC que disciplinam as relações jurídicas reais de vizinhança entre imóveis.

XI – Resultando que a resposta dada a matéria da base instrutória se mostra aparentemente inconciliável com matéria de facto que se encontra assente, afigurando-se obscura ou contraditória, impõe-se a anulação parcial do julgamento para a sanação de tal deficiência.

XII – Tendo os AA. invocado factos tendentes a demonstrar que a construção levada a cabo pelos RR. foi efectuada com violação do preceituado no artigo 1360.º do CC, e os RR. factos que afastam a restrição imposta por este preceito, os quais não foram objecto de julgamento apesar de terem sido objecto de articulado superveniente oportunamente admitido e de haver sido determinado o seu aditamento à base instrutória, impõe-se anular parcialmente o julgamento, com vista à produção de prova sobre esses factos essenciais.


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IV - Decisão

Face ao exposto, acorda-se em:

a) julgar parcialmente improcedente o recurso de apelação, mantendo-se a sentença recorrida, na parte em que absolveu os RR. dos pedidos de reconhecimento de que os autores são os únicos donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do muro que divide os logradouros dos prédios urbanos inscritos na matriz predial de H (...), concelho da Guarda, sob os artigos x (...) e y(...), e descritos na respectiva Conservatória do Registo Predial da Guarda sob a matrícula n.º w(...)/2004/12/30 e n.º z (...)/19920406, fazendo parte integrante do primeiro destes prédios; e do direito de servidão de vistas do prédio urbano, inscrito na respectiva matriz predial de H (...), concelho da Guarda sob o artº x (...), descrito na respectiva Conservatória do registo Predial da Guarda sob a matrícula w(...)/20041230 sob o prédio urbano, inscrito na matriz predial de H (...), concelho da Guarda sob o artº y(...) e descrito na respectiva Conservatória do registo Predial da Guarda sob o n.º k (...)/19920406;

b) anular parcialmente a decisão recorrida, ordenando-se a repetição parcial do julgamento com vista a sanar a indicada obscuridade e contradição quanto aos artigos 29.º e 55.º da base instrutória, e responder à ampliação da matéria de facto, nos termos supra precisados.

Custas pela parte vencida a final.


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Albertina Pedroso ( Relatora )

Carvalho Martins

Carlos Moreira


[1] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do CPC, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que pronunciar-se sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[2] Facto aditado nos termos do artigo 659.º, n.º 3, do CPC, aplicável aos acórdãos ex vi do disposto no artigo 713.º, n.º 2, do mesmo Código.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr. neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª ed., pág. 688.
[5] Cfr. autores e obra citada, pág. 669; Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140, e abundante jurisprudência proferida nesse sentido pelos tribunais superiores e disponível em www.dgsi.pt, de que se retira a título meramente exemplificativo, os Acs. STJ de 03-05-2005, proferido no processo n.º 5A1086 e de 14-12-2006, proferido no processo n.º 6B4390, ambos acessíveis no indicado sítio.  
[6] Cfr. Ac. deste mesmo TRC de 17-04-2012, proferido no proc.º n.º 1483/09.9TBTMR.C1, e disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Alberto dos Reis, loc. cit., pág. 139.
[8] Cfr. Ac. STJ de 06-12-2011, proferido na Revista n.º 1040/04.6TBPTM.E1.S1 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[9] Note-se que, revendo agora esta previsão, a Proposta de Lei n.º 113/XII propõe agora no artigo 662.º, n.º 2, alínea d), quanto à modificabilidade da decisão de facto, que Relação possa oficiosamente “determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”, o que no regime vigente não se mostra previsto.
[10] Cfr. neste sentido, Ac. TRL de 21-01-2010, proferido no processo n.º 1209/08.4TJLSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Doravante abreviadamente designado CPC.
[12] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição, Revista e Actualizada, Almedina 2010, pág. 313.
[13] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt. 
[14] Cfr. neste sentido, o recente Acórdão desta 2.ª secção do TRC, proferido em 05-12-2012, no proc.º n.º 1567/10.0TBVIS-C.C1, e disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Ac. STJ de 09-02-2012, proferido na Revista n.º 6242/09.6TBVNG.P1.S1 - 7.ª Secção, e disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[16] Cfr. Ac. STJ de 30-06-2011, proferido no Processo n.º 16450/05.9TBSXL.L1.S1 - 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Doravante abreviadamente designado CC.
[18] Cfr. Capelo de Sousa, in O Direito Geral da Personalidade, Reimpressão, pág. 106.
[19] Cfr. Ac. TRL de 18-03-2010, proferido no Proc. n.º 606/05, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Cfr. José Alberto González, in Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 95.
[21] Cfr. Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do direito, 5.ª Edição, pág. 48.
[22] No entender do Professor Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª edição, pág. 478, entendimento que é maioritariamente seguido. Já o Professor Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Coimbra - 1995, pág. 55, reduz esses mesmos pressupostos a dois: acto ilícito e prejuízo reparável.
[23] Cfr. Antunes Varela, obra citada, págs. 486 a 497.
[24] No dizer de Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, pág. 346. Note-se que esta imputação do facto ao agente, para além do dolo em qualquer uma das suas modalidades, pode ainda resultar, no âmbito da denominada mera culpa, de negligência consciência - quando o agente prevê a produção de um facto ilícito como possível, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação, e só, por isso, não toma as providências necessárias para o evitar -, ou mesmo de negligência inconsciente, que ocorre quando o agente não chega sequer a conceber a possibilidade de o facto se verificar, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, págs. 394 e 395.
[25] Vd. Meneses Leitão, Direito das Obrigações, I, 8ª edição, 2009, pág. 313; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, AAFDL, 1990, pág. 309.
[26] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 651 e ss..
[27] Cfr. Ac. de 28-10-2008, proferido no processo n.º 08A3005, disponível em www.dgsi.pt.
[28] Cfr. neste sentido, Manuel Rodrigues in Boletim da Faculdade de Direito, ano 8.º, pág. 91.
[29] Cfr. Ac. STJ de 11-03-2010, proferido no processo n.º 449/09.3YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[30] Cfr. Ac. STJ de 20-09-2012, proferido no proc.º n.º 45/2001.E1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[31] Que à data do licenciamento se encontrava em vigor, ou seja, o constante do Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951, que aprovou o Regulamento geral das edificações urbanas e foi sucessivamente alterado pelos Decreto-Lei n.º 44 258 de 31 de Março de 1962; Decreto-Lei n.º 45 027 de 13 de Maio de 1963; Decreto-Lei n.º 650/75 de 18 de Novembro; Decreto-Lei n.º 43/82 de 8 de Fevereiro; Decreto-Lei n.º 463/85 de 4 de Novembro; Decreto-Lei n.º 172–H/86 de 30 de Junho; Decreto-Lei n.º 64/90 de 21 de Fevereiro; Decreto-Lei n.º 61/93 de 3 de Março; Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 177/2001 de 4 de Junho; e Decreto-Lei n.º 290/2007, de 17 de Agosto.
[32] Cfr. citado Ac. STJ de 20-09-2012.