Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1809/17.1T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: EXECUÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 3 CPC
Sumário:
Tendo em consideração a conjugação que deve existir entre os princípios processuais, quando operam dinamicamente nos processos concretos, designadamente entre o princípio do contraditório, por um lado, e os da celeridade e da economia processual, por outro, o tribunal pode indeferir liminarmente a petição executiva com fundamento em incompetência em razão da matéria, sem ouvir antes a Exequente, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo.
Decisão Texto Integral: RecorrenteC (…)
Recorrido V (…)
*
I. Relatório
a) O presente recurso versa sobre o despacho liminar que indeferiu a petição executiva com fundamento na incompetência absoluta do tribunal, por ser competente, para o efeito, a justiça administrativa e fiscal.
As conclusões são as seguintes:
(…)
c) Não há contra-alegações.
II. Objeto do recurso
Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o presente recurso coloca apenas uma questão que consiste em saber se no caso dos autos existiu uma decisão cujo processo de formação exigia prévio exercício do contraditório, devendo a recorrente ter sido chamada a pronunciar-se sobre a eventual incompetência do tribunal a quo em razão da matéria.
III. Fundamentação
a) Matéria de facto
A factualidade a considerar é de natureza processual e resulta já do relatório que antecede.
b) Apreciação da questão objeto do recurso
Cumpre verificar então se a decisão tomada no sentido de indeferir liminarmente a petição executiva com fundamento na incompetência do tribunal em ração da matéria exigia a prévia consulta do exequente para que, desse modo, se pudesse pronunciar sobre essa questão de competência do tribunal recorrido.
(I) Antes de responder cumpre fixar os valores processuais que estão em causa, assinalando a relevância do princípio do contraditório na formação das decisões judiciais.
A matéria tem assento no artigo 3.º (Necessidade do pedido e da contradição) do Código de Processo Civil ( Os artigos mencionados no texto respeitam ao Código de Processo Civil, salvo indicação em contrário.
), onde se dispõe o seguinte:
«1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final».
Nas palavras de Castro Mendes, «Consiste este princípio na regra segundo a qual, sendo formulado um pedido ou oposto um argumento a certa pessoa, deve-se dar a esta oportunidade de se pronunciar sobre o pedido ou argumento, são se decidindo antes de dar tal oportunidade» ( Direito Processual Civil. Lisboa, Edição da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1980, Vol. I, pág. 223.).
Frisando também a sua razão de ser, Manuel de Andrade ensinava que a «…estruturação dialéctica ou polémica do processo tira partido do contraste de interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões (processos de jurisdição voluntária: cfr. n.º 32), para esclarecimento da verdade (…). Espera-se que, também para efeitos do processo, da discussão nasça a luz; que as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e prova) que o juiz, mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente seria capaz de descobrir por si» ( Noções Elementares de Processo Civil. Coimbra Editora,1979, pág. 379.
).
Como princípio que é, é um dos pilares-fundamento do processo, cuja importância se evidencia se tivermos também em conta o princípio da auto-responsabilidade das partes, segundo o qual as partes são responsáveis pela alegação dos factos, o resultado probatório e, por isso, pelo conteúdo da decisão.
Com efeito, como referiu Manuel de Andrade, «As partes é que conduzem o processo por sua conta e risco. Elas é que têm de deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam (incluindo as provas), suportando uma decisão adversa, caso omitam algum. A negligência ou inépcia das partes redunda inevitavelmente em prejuízo delas porque não pode ser suprida pela iniciativa e actividade do juiz. É patente a conexão deste princípio com o dispositivo» ( Ob. Cit., pág. 378.).
Ora, esta responsabilidade demanda a sua intervenção e pronúncia sobre as várias decisões que vão sendo tomadas ao longo do processo.
(II) Apesar do que fica dito, no caso concreto dos autos a resposta à questão inicialmente colocada tem resposta negativa, pelas seguintes razões:
1- A situação dos autos não se enquadra nos dois primeiros números do artigo 3.º, sendo abrangida pelo disposto no n.º 3, ou seja, o juiz deve observar e fazer cumprir o contraditório ao longo de todo o processo e não deve decidir questões de direito, como foi o caso, ou de facto, sem ouvir previamente as partes.
Só não procederá assim se for manifesta a desnecessidade.
Cumpre, por isso, verificar se no caso concreto a observância do contraditório era manifestamente desnecessária.
O conceito manifestamente desnecessário tem um conteúdo indeterminado.
É manifesto aquilo que é claro, que não suscita dúvida no momento, e é necessário aquilo que é imprescindível na construção de algo, no caso, a construção de uma decisão judicial.
Para verificarmos se algo é claro temos de analisar o tipo de atividade em questão e o próprio caso concreto e quanto à necessidade temos de verificar o resultado a que se chegou e ao qual se teria chegado se o ingrediente necessário tivesse sido adicionado.
No caso dos autos, o juiz indeferiu a petição executiva por entender que o tribunal comum era incompetente em razão da matéria, sendo competente o tribunal administrativo e fiscal.
À primeira vista, dir-se-ia, e perentoriamente, que o juiz devia ter observado o princípio do contraditório antes de decidir, pois se o exequente instaurou a ação naquele tribunal, não em outro, é porque analisou a questão da competência e entendeu que era aquele o tribunal competente, muito embora não tivesse justificado por que razão entendeu que era aquele o tribunal competente em razão da matéria.
Por isso, uma decisão em sentido oposto a esse seu juízo careceria de discussão.
Mas, analisando o caso concreto, afigura-se que a decisão tomada dispensava a audição prévia da parte, pelas seguintes razões:
(1) Em primeiro lugar, a questão da competência dos tribunais comuns versus tribunais administrativos e fiscais para conhecer do pedido de execução das contribuições devidas pelos beneficiários da C (…)não era à data da decisão sob recurso uma questão nova na jurisprudência, o mesmo é dizer para a Recorrente por ter sido parte nesses processos.
Assim, à data da sentença sob recurso, que é de 25-10-2017, o Tribunal de Conflitos já se tinha pronunciado sobre esta matéria por acórdão de 07-04-2017, no processo 37/16 (Fonseca da Paz), cujo sumário é o seguinte:
«I – A C (…) pessoa colectiva pública que tem por fim estatutário conceder pensões de reforma aos seus beneficiários e subsídios por morte às respectivas famílias, prossegue finalidades de previdência e, consequentemente, realiza uma função de segurança social, estando incluída na organização desta e sujeita desde sempre à legislação que a regula, ainda que de forma subsidiária.
II – Reportando-se o litígio à cobrança coerciva de contribuições não pagas por beneficiário da CPAS, ele emerge de uma relação jurídica administrativa e fiscal e não de uma relação de direito privado, para cuja apreciação são competentes os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos dos artºs. 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. o), ambos do ETAF.
III – Estando em causa contribuições para um regime de segurança social, embora de natureza especial, são aplicáveis, por força dos artºs. 106.º, da Lei n.º 4/2007, de 16/1 e 1.º, do regulamento anexo ao DL n.º 119/2015, de 29/6, o disposto no art.º 60.º dessa Lei e, com as necessárias adaptações, no DL n.º 42/2001, de 9/2, pelo que será através do processo de execução fiscal nos mesmos termos que são estabelecidos para a cobrança coerciva das dívidas à segurança social que o direito da CPAS terá de ser exercido».
Acórdão este que tinha sido suscitado a propósito do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-6-2016, proferido no processo n.º 6988/16.2T8PRT, que tinha decidido no mesmo sentido.
Também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-03-2017, proferido no processo n.º 17398/15.9T8LRS.L1-2, se tinha pronunciado no mesmo sentido.
Como a Autora tinha sido parte em todos estes processos, tem de se considerar que teve conhecimento destas decisões e da polémica subjacente.
Objetar-se-á que o que releva é o que ocorre em cada processo, sendo irrelevante o que se passa noutros processos.
Responde-se à objeção considerando que a questão se coloca e colocará exatamente nos mesmos termos em quaisquer processos, pelo que o processo individual perde relevância, por nada acrescentar ou suprimir ao mérito da questão tratada ou a tratar, e daí que seja irrelevante a não observação do princípio do contraditório no processo concreto, isto é, no presente caso, se a questão não é nova para a recorrente e esta já a debateu amplamente noutros processos.
O que é relevante é que a parte seja a mesma e que já tenha tido oportunidade de se pronunciar sobre a questão noutros processos, precisamente naqueles que foram identificados na decisão sob recurso.
Deste modo, não corresponde à realidade histórica afirmar que a decisão foi uma decisão com a qual a parte não podia estar a contar quando foi proferida.
(2) Em segundo lugar, a recorrente sabe que advogados e magistrados pesquisam a jurisprudência que vai sendo publicada quando têm de instaurar ações ou proferir decisões nelas, consoante os casos.
Daí que a Autora pudesse contar que, à data da decisão sob recurso, em 25 de Outubro de 2017, o tribunal recorrido já conhecesse as decisões que ficaram identificadas e nas quais, como se disse, a Autora havia sido parte, e que o tribunal decidisse no mesmo sentido, tanto mais que já existia um acórdão do Tribunal de Conflitos a pronunciar-se sobre a matéria.
(3) Por fim, cumpre ter em consideração os princípios da economia e da celeridade processual que determinam a prática dos atos processuais estritamente necessários, com a finalidade de poupança de meios e tempo em cada processo que se hão de repercutir em ganhos de maior escala quando considerados todos os processos.
Assim, tendo como assente que já era expectável para a Autora a decisão que veio a ser tomada, pelo menos no sentido de não ser surpreendida por ela, por já existirem decisões de tribunais superiores no mesmo sentido e nas quais havia sido parte, tendo sido suscitada inclusive a resolução do conflito de competência junto do Tribunal de Conflitos, então o princípio da economia e da celeridade processual aconselhavam a que não fosse colocada previamente a questão à recorrente, pois ainda lhe ficava assegurada a reação através do recurso, sempre possível em casos de indeferimento liminar, porquanto, nos termos do artigo 629.º, n.º 3, al. c), do CPC: «3 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação: a) …; b) …; c) Das decisões de indeferimento liminar da petição de ação ou do requerimento inicial de procedimento cautelar».
Face ao exposto, a decisão recorrida não deve ser qualificada como decisão surpresa, por se tratar de decisão que estava no âmbito das expectativas normais da recorrente à data em que foi proferida.
Concluindo:
Tendo em consideração a conjugação que deve existir entre todos os princípios processuais, quando operam dinamicamente nos processos concretos, designadamente entre o princípio do contraditório por um lado, e os da celeridade e da economia processual, por outro, o tribunal pode indeferir liminarmente a petição executiva, sem ouvir antes a Exequente, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, com fundamento em incompetência em razão da matéria, quando, previamente à data da decisão sob recurso, a questão já tinha sido decidida no mesmo sentido em dois acórdãos de Tribunais da Relação e em um acórdão do Tribunal de Conflitos, nos quais a Autora tinha sido parte.
(III) Ainda que a recorrente não adira à argumentação que fica indicada, os efeitos práticos de outra decisão alternativa seriam os mesmos.
Com efeito, entendendo-se que existiu violação do princípio do contraditório e que tal violação implicaria a repetição do processado em 1.ª instância, com toda a probabilidade o juiz acabaria por decidir no mesmo sentido que subjaz à decisão sob recurso, pelo que seria produzida atividade processual relevante sem qualquer proveito a não ser o que resulta da reafirmação dos princípios processuais e reposição do processado devido.
Entendendo-se que a violação do contraditório constitui um vício que se transmite e afeta a própria sentença, porquanto existirá excesso de pronúncia ( Posição sustentada pelo Prof. Teixeira de Sousa (em blogippc.blogspot.pt) em comentário ao acórdão do TRE de 10 de abril de 2014 (www.dgsi.pt), segundo a qual a omissão do contraditório antes da sentença implica que a sentença seja nessa parte nula, por excesso de pronúncia, nos termos da al. b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, porque o tribunal não podia tomar conhecimento da decisão que analisou e decidiu (não podia porque não tinha ouvido previamente a parte).
), neste caso, dada a regra do n.º 1 do artigo 665.º do CPC, que determina a substituição do tribunal recorrido pelo tribunal de recurso, o tribunal da Relação teria de apreciar o mérito da questão, ouvindo o recorrente, se porventura este não se tivesse pronunciado já sobre a matéria nas alegações do recurso.
Neste caso, havendo como se julga haver, unanimidade na jurisprudência sobre a questão até ao momento, dificilmente se encontrariam argumentos que implicassem decisão contrária a essa jurisprudência por parte desta Relação.
Em qualquer um destes casos se chegaria, na prática, ao mesmo resultado processual, isto é, à incompetência do tribunal recorrido em razão da matéria.
Cumpre, pelo exposto, manter a decisão recorrida.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Coimbra, 10 de Outubro de 2018


Alberto Ruço ( Relator )
Vítor Amaral
Luís Cravo