Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
651/20.7T8LMG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: TRANSACÇÃO
HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 289.º, 290.º E 291.º, TODOS DO CPC E ARTIGOS 280.º, 281.º, E 1248.º, N.º 1, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Se alguma das partes pretender, no próprio processo em que foi proferida a sentença de homologação da transacção, que esta seja anulada terá de demonstrar que o objecto do litigio não estava na disponibilidade das partes ou não tinha idoneidade negocial ou as pessoas que intervieram na transacção não se apresentavam com capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto.

II – Se a parte pretender dar sem efeito a transacção com base na existência de vícios da vontade ou de vícios no objecto do negócio jurídico em que se traduz a transacção terá de instaurar acção na qual peça a declaração da nulidade ou a anulação desse negócio jurídico.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I -  AA, por apenso aos autos de divórcio sem consentimento, que resultaram de reconvenção sua em acção de separação judicial de pessoas e bens intentada contra ela pelo então seu marido, BB, veio, ao abrigo do disposto nos arts 1793º CC e 990º CPC,  requerer a atribuição da casa de morada de família, pedindo que, após o decretamento do divórcio, lhe seja atribuído o direito à utilização da mesma.

Alegou, em síntese, que tem 73 anos de idade, a casa de morada de família  foi construída após o matrimónio  em terreno que constitui bem próprio dela,  e por razões de saúde dela, porque é doente oncológica, e da neta, a quem dá apoio, e que sofre de distrofia muscular congénita e perturbação de desenvolvimento intelectual, deve a  mesma ser-lhe atribuída, referindo que o Requerido já viveu noutra casa  no período em que esteve sujeito a vigilância electrónica em processo de violência doméstica contra a sua pessoa, referindo ainda sofrer de depressão com ataques de pânico e viver aterrorizada por partilhar a mesma casa com o Requerido, sendo as respectivas situações económicas equivalentes.

Estando pendente, como resulta do atrás referido, acção de divórcio sem consentimento, a Exma Juíza a quo designou a mesma data, nuns e nos outros autos, para tentativa de conciliação.

Nessa data, 7/10/2021, e neste processo, consoante resulta da respectiva acta, as partes solicitaram a colaboração do Tribunal tendo em vista a resolução consensual do litigio, para que o mesmo verificasse se era possível a divisão e utilização independente daquela casa, de forma autónoma, por ambos.

 O Tribunal deslocou-se ao local nesse mesmo dia, tendo verificado que atenta a estrutura da habitação e o número de divisões, se mostrava possível efetuar a sua divisão de molde a permitir que ambos usufruíssem da casa de forma independente.

Em função do que, pelas partes e pelos seus Ilustres Mandatários, foi dito terem chegado a acordo nestes autos, nos seguintes termos:

 1º -À Requerente AA, será atribuída: - a parte da cozinha, sala de jantar, no 1º andar e as duas entradas, da parte da frente lado sul. - e o último piso onde se situam os quartos e a casa de banho

 2º -Ao requerido BB, será atribuída: - a entrada pela garagem no rés-do-chão e garagem, - no 1º andar a casa de banho, dois quartos e uma sala - o anexo a Norte, com cozinha e arrumos.

3º -A sala de bilhar será utilizada pelos dois, requerente e requerido, quando os netos vierem para lá brincarem, ficando a chave com a requerente AA.

 4º-  No prazo máximo de 15 dias requerente e requerido procederão as alterações necessárias dos bens e retiradas dos mesmos.

5º -Quantos aos géneros serão divididos em partes iguais.

6º -Comprometem-se ainda requerente e requerido a terem acesso ao aquecimento central, água e luz a dividir pelos dois, bem como a chave dos equipamentos.

7º - Quanto ao teto da cozinha, situado a Norte, montagem de banca, canalização da água e pintura estabelecem um limite máximo de € 1.500,00 ( mil e quinhentos euros) para as obras a realizar.

 8º -As custas serão em partes iguais.

Tendo de seguida sido proferida a seguinte sentença, da qual foram os mesmos logo notificados: 

 «Em face do exposto, atenta a qualidade dos intervenientes homologo por sentença o acordo que antecede nos seus exatos termos, condenando as partes ao seu integral cumprimento.

 Custas em partes iguais, conforme acordado.

Fixo o valor da ação em € 30.000,01.

Registe e Notifique».

Por sua vez, e como conta da respectiva acta, nos autos de divórcio, as partes disseram estarem de acordo na convolação dos autos para divórcio por mútuo consentimento, acordando no seguinte:

1º - Não existem filhos menores;

2º -Os cônjuges prescindem reciprocamente de alimentos;

3º -A atribuição da casa de morada de família até à partilha já se encontra decidida no processo apenso;

4º -Indicaram como bens comuns os seguintes: casa de morada de família, sita na ..., nº 17, ...; dois veículos automóveis cuja matrícula  indicaram; um tractor; dois prédios rústicos em ...  um prédio urbano no ...; benfeitorias em prédios rústicos.

5 º- Animais de estimação, um cão que fica atribuído à cônjuge mulhe .

Tendo de seguida sido proferida sentença que homologou os acordos supra referidos por acautelarem devidamente os interesses dos cônjuges,  decretando o divórcio entre eles e dissolvido o respectivo casamento.

No dia 13/10/2021, a Requerente revogou a procuração à advogada que ate então a patrocinava e,  através de email de CC,  referiu o seguinte: «Devido ao meu estado de nervos e ansiedade, não reflecti sobre o que estava verdadeiramente a acontecer, estando eu agora mais ciente e mais calma, não concordo com o que ali foi dito. Não aceito os termos propostos na diligência de 7/17/2021, que para min não tem qualquer nexo ou sentido», concluindo no sentido de ser dado «sem efeito o ali tratado, prosseguindo o processo os seus ulteriores trâmites até ao final».

Foi proferido despacho, apontando que o requerimento em causa, embora em nome da Requerente AA, não se encontrava por ela assinado nem se mostrava provindo de um e-amial do qual se pudesse concluir ser da mesma, ordenando a sua notificação para apresentar requerimento no processo assinando-o e respeitando o disposto no art 144º CPC.

 A Requerente apresentou em 15/10/2021 requerimento do mesmo teor do anterior, sendo por ela assinado.

Nesse mesmo dia outorgou procuração a favor de novo mandatário, a qual se mostra junta aos autos de divórcio.

Foi ordenado o cumprimento do disposto no art 47º CPC, tendo em conta a revogação do mandato, e ordenado que se notificasse o Requerido do acima referido requerimento.

Ainda na 1ª instância foi proferido despacho, em 10/12/2021, nos seguintes termos:

«Tal como consta da acta de 07/10/2021, que foi comunicado e explicado às partes, tendo as mesmas logrado obter um acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, acordo este que ficou a constar da mesma, foi nesse dia proferida sentença nestes autos.

Não se verificando a existência de qualquer erro material, nulidade ou necessidade de reforma, com a prolação da aludida sentença esgotou-se imediatamente o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ou seja, não pode o juiz voltar a pronunciar-se sobre a causa.

Assim sendo, nada podemos determinar na sequência do requerido pela Requerente, uma vez que tal versa sobre a matéria da causa e sobre isso já foi proferida sentença, tendo-se esgotado o poder jurisdicional, nos termos do art 613º do CPC».

 II – Veio a Requerente interpor recurso – que designou de “Revisão” – cujas alegações concluiu do seguinte modo:

1-Ao abrigo do princípio da economia processual, se dá aqui por reproduzido tudo quanto supra se escreveu,

2-. Atendendo ao estado de incapacidade acidental que a Recorrente se encontrava no momento do acordo quanto à atribuição da casa de morada da família, entendemos que há lugar a nulidade do mesmo.  

3. A Recorrente não se encontrava lúcida.

 4. Estava sob grande pressão, com ansiedade e medo.

5.O que a levou a ouvir a decisão proferida pela sua mandatária sem contestar.

6. Todos os presentes perceberam, porquanto o homem médio facilmente perceberia a sua falta de capacidade naquele momento para decidir o que fosse.

7. A recorrente juntou aos autos relatórios de avaliação física e psicológica, os quais corroboram que a mesma não deve continuar a viver com o Requerido.

8. Devido a sofrer violência física e psicológica perpetrada por aquele.

9.Assim que a Recorrente se reestabeleceu expressou inequivocamente ao tribunal recorrido que o acordo não expressava a sua real vontade, através dos requerimentos datados de 13 e 15 de outubro.

10. Pelo que, não existem dúvidas quanto ao facto de que o acordo para atribuição da casa de morada da família não corresponde à vontade real da Recorrente, tão pouco satisfaz as suas necessidades.

Termos em que deve o presente recurso ser recebido, julgado procedente por provado e por via dele, ser declarada a nulidade do acordo para atribuição da casa de morada da família.

Contra-alegou o Requerido, concluindo do seguinte modo:

 1. Não merece qualquer reparo a sentença ora recorrida, já que faz a leitura correcta e justa da situação em apreço.

2. No caso dos autos, a lide iniciou-se com instauração de ação judicial de separação de pessoas e bens instaurada pelo recorrido. Na resposta à ação, a recorrente, em reconvenção, propôs ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, tendo, ainda, por apenso, instaurado o incidente de atribuição da casa de morada de família e aqui em crise.

3. Na tentativa de conciliação estiveram presentes a Mma. Juíza de Direito; o Ex.mo Senhor Funcionário Judicial; o Recorrido e o seu Mandatário (ora signatário); a Recorrente e a sua Mandatária;

4. Na tentativa de conciliação, e uma vez que não houve acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, requereram ambas as partes a colaboração do Tribunal com vista à resolução consensual do litígio, tendo a Sra. Juiz do Tribunal a quo se deslocado ao local, a fim de averiguar se era possível a divisão e utilização independente por recorrente e recorrido da casa de morada de família.

5. Foi na sequência da verificação, in loco, pela Sra. Juiz do Tribunal a quo da existência de condições da moradia para albergar ambas as partes na mesma, que foi acordado a conversão do divórcio sem consentimento do outro cônjuge, em divórcio por mútuo consentimento e a divisão da casa nos termos explanados nas “Atas de Tentativa de Conciliação”, até à partilha.

6. Segundo a noção plasmada no artigo 1248º do CC, a transação é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, que podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.

7. No caso sub judice, a transação em mérito constitui um verdadeiro negócio jurídico bilateral e consensual que foi celebrado perante a Sra. Juiz a quo e resulta de conciliação por si obtida – cfr. nº 4, do art. 290º do CPC.

 8. Pretende a recorrente com a interposição do presente recurso de revisão de sentença, emitir uma declaração contrária a toda a atividade processual que desenvolveu na presente lide e com a alegação de factos que relevam erro/vicio de vontade que se revelam serem falsos e contrários à livre e espontânea vontade de ambas as partes e manifestados na transação homologada pela sentença em mérito.

9. Sucede que, nos termos do disposto no art. 696º, nº 1 do CPC, o recurso extraordinário de revisão interpõe-se de decisões transitadas em julgado.

 10. Atento a data da homologação da sentença – 07/10/2021 - e a apresentação das alegações de recurso de revisão – 25/10/2021 -, a recorrente apresentou o presente recurso quando a sentença em mérito ainda não havia transitado em julgado.

 11. Porque a recorrente interpôs o recurso aqui em crise sem que tivesse deixado decorrer o trânsito em julgado da sentença em mérito, a mesma não cumpriu o processualmente prescrito, pelo que o mesmo deve ser liminarmente indeferido. O que se requer para todos os efeitos legais.

12. Por outro lado, a Recorrente, aquando da realização da tentativa de conciliação, não se limita a dar o seu consentimento a quem quer que seja para que o divórcio seja decretado por mútuo consentimento e para que seja decretada a homologação da transação da casa de morada de família.

13. Como é unanimemente aceite, a vontade negocial deve ser livre, esclarecida, ponderada e formada de um modo julgado normal e são.

14. E a ora Requerente praticou, por si e em seu nome, todos os actos de que depende o normal desenrolar do processo de divórcio por mútuo consentimento. E fê-lo por sua livre e espontânea vontade e sem que tenha sido coagida por quem quer que seja, uma vez que a mesma estava a ser coadjuvada pela sua ilustre e experiente Mandatária, e a transação em mérito resultou da conciliação obtida pela Mma. Juiz do Tribunal a quo que se deslocou ao local.

15. O erro-vício ou erro-motivo, que se traduz num erro na formação da vontade e do processo de decisão, existe quando ocorre uma falsa representação da realidade ou a ignorância de circunstâncias de facto ou de direito que intervieram nos motivos da declaração negocial, de modo que, se o declarante tivesse perfeito conhecimento das circunstâncias falsas ou inexatamente representadas, não teria realizado o negócio ou tê-lo-ia realizado em termos diferentes.

16. No caso sub judice é manifesto que não existiu qualquer erro na formação da vontade da Recorrente, sendo que a postura da mesma com a alegação de factos que se revelam contrários ao que efetivamente aconteceu naquela diligência, constitui uma atitude de manifesta litigância de má-fé.

17. Para além do supra exposto, a recorrente não esclarece no seu requerimento se pretende desistir da instância ou do pedido, alegando apenas que não aceita os termos propostos na diligência do dia 07/10/2021, com a conclusão que se dê sem efeito o ali tratado.

18. Sendo, por definição, o divórcio por mútuo consentimento requerido por ambos os cônjuges, iniciada a instância por seu impulso conjunto, não pode uma das partes dela dispor livremente.

19. É que o destino da casa de morada da família não se apresenta só como um efeito do divórcio por mútuo consentimento, mas antes como uma condição de admissibilidade do mesmo.

20. O acordo de atribuição da casa de morada de família, tal como os demais indicados no nº 2, do art. 1775º (alimentos e poder paternal) do C. Civil está sujeito ao controlo judicial quanto ao respetivo conteúdo e validade, sendo que a sua falta ou a insuficiente proteção dos interesses de algum dos cônjuges ou dos filhos determina a recusa de homologação e o indeferimento do pedido de divórcio – arts. 1776º, nº 2 e 1778º do C. Civil.

21. Pelo que, tendo as partes neste processo acordado, espontânea e livremente, em converter o divórcio sem o consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento, como inequivocamente acordaram, celebrando também de sua livre vontade os acordos previstos no nº 1, do art. 1775º do C. Civil nos precisos termos que constam das “Actas de Tentativa de Conciliação”, de 07/10/2021, estava a recorrente assessorada por ilustre e experiente Mandatária, e ainda, porque os acordos resultaram de conciliação obtida pela Sra. Juiz a quo, que se deslocou ao local, só por manifesta litigância de má-fé é que se compreende o comportamento da recorrente quando pretende, agora, emitir uma declaração contrária a toda a atividade processual que desenvolveu na presente lide.

22. Sem dúvida que a recorrente nega factos pessoais, trazendo aos autos uma versão que sabia não ser verdadeira, o que tem de se entender como conduta grave e consciente, visando entorpecer a ação da justiça, violando, assim, deveres de probidade, colaboração e o agir de boa-fé processual.

 23. Nessa conformidade, deve a recorrente ser condenada como litigante de má-fé, no pagamento de multa e indemnização condigna a favor do recorrido, cuja quantificação se deixa ao prudente arbítrio de V. Ex.a, devendo, quanto à indemnização incluir o reembolso das despesas e honorários ao mandatário do recorrido, nos termos do disposto no art. 542º e nas als. a) e b), do nº 1, do art. 543º, ambos do C.P.C., a fixar logo por. Ex.a, em quantia não inferior a 2.500,00€ ou, caso assim o não entenda, a liquidar após a decisão final, com as demais consequências legais.

Neste Tribunal ordenou-se a notificação da Requerente para responder ao pedido de litigância de má fé deduzido pelo Requerido nas contra-alegações, o que a mesma fez, pronunciando-se no sentido da inexistência daquela.

II – Os factos a ter em consideração no presente recurso emergem do acima relatado.

IV – Do confronto entre as conclusões das alegações e a decisão recorrida, resulta constituir objecto do presente recurso, saber se o acordo relativo à utilização da casa de morada de família que veio a ser homologado por sentença, pode, através do presente recurso, ser tido como nulo por incapacidade acidental da Recorrente aquando da sua realização, e saber se esta, recorrendo como recorreu, incorreu em litigância de má fé.

A maior estranheza que o recurso em causa comporta resulta de a Recorrente pretender, pelo menos aparentemente, interpor recurso de revisão da sentença homologatória do acordo de atribuição[1] da casa de morada de família  com fundamento em vicio da vontade da mesma, mas sem que, no entanto, a sentença em causa estivesse, aquando da interposição desse recurso, já transitada, sabendo-se, como se sabe, que o recurso de revisão, sendo um recurso extraordinário, tem por objecto, por definição, sentenças transitadas em julgado.

Inclusivamente, quando se verifique demora anormal na tramitação da causa em que se funda a revisão e exista risco de caducidade, situação em que, como resulta do nº 5 do art 697º CPC, o interessado pode interpor recurso (de revisão) mesmo antes de naquela acção ser proferida decisão, é-lhe imposto que requeira logo a suspensão da instância no recurso, até que essa decisão transite em julgado.

Neste condicionalismo, ter-se-á que tratar o recurso interposto pela Requerente como um recurso normal de apelação, como, aliás, o inculca, a circunstância da mesma  não ter feito, afinal, qualquer referência ao art 696º ou seguintes do CPC, concernentes ao recurso de revisão, apenas se tendo referido aos arts  644º/1 al a), 645º, 646º e 647º do CPC, além de que o interpôs, não por apenso, nos termos do art 688º/1 CPC, mas na própria acção em que foi proferida a sentença homologatória da transacção.

Prossigamos, pois, em função deste entendimento.

Dispõe o art 1248º/1 CC que a «transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões», explicitando o art 1250º, que «a transacção preventiva ou extrajudicial constará de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida, e constará de documento escrito nos casos restantes».

Na situação dos autos a transacção que foi alcançada constitui, obviamente, uma transacção obtida na pendência do litígio – por isso não preventiva - e obedeceu à forma escrita, como resulta de se mostrar formalizada na acta da audiência de julgamento em resultado de conciliação obtida pelo juiz – art 290º/4 CPC.

Este, em obediência ao disposto neste preceito, tendo examinado se pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a transacção era válida, concluindo pela positiva, homologou-a «por sentença ditada para a acta, condenando nos respectivos termos».

A sentença homologatória da transacção constitui, também ela, uma sentença de mérito - e por isso condena e absolve nos seus precisos termos – mas, por vontade das partes, expressa no negócio jurídico em que se traduz a transacção, não aplica o direito objectivo aos factos em causa na acção. È também em função da vontade das partes que tal sentença extingue a instância sem proceder a essa aplicação – art 277º al d) CPC- e que faz caso julgado material - art 291º/2 CPC – pelo que, quando condenatória, forma título executivo.

A falta de poderes do mandatário judicial e a irregularidade do mandato não justificam a recusa de homologação, como resulta do regime estabelecido no nº 3 do art 291º CPC.

Como refere Lebre de Freitas, «através (da desistência do pedido, da confissão do pedido) e da transacção, as partes dispõem da situação jurídica de direito substantivo afirmada em juízo (…). Estes actos dispositivos de direito civil determinam, assim, o conteúdo dos direitos e deveres das partes (…) que a subsequente homologação judicial vem tutelar, extinguindo o processo (tornado inútil pela supressão do litígio) e abrangendo-as na autoridade do caso julgado. No momento de proferir a sentença homologatória, o juiz encontra-se assim perante as situações jurídicas definidas pelas partes. A tutela judiciária é, ainda aqui, tutela de situações jurídicas dela carecidas, já não porque necessitadas duma definição, mas porque à definição feita pelas partes falta a força do caso julgado» [2].

A transacção constitui um negócio jurídico privado, com cujo intrínseco conteúdo material o juiz nada tem a ver, limitando-se, para conceder a respectiva homologação, à verificação de determinadas condições que se mostram extrínsecas àquele conteúdo.

Assim, a sentença homologatória só pode ser concedida se o objecto do litigio estiver na disponibilidade das partes - art 289º CPC -, tiver idoneidade negocial – 280º e 281º CC-, se as pessoas que intervêm na transacção tiverem capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto – art 287º CPC -, devendo o juiz, no caso de transacção, «verificar também a pertinência do objecto do negócio para o processo, isto é, a sua coincidência com o pedido deduzido», sem prejuízo de ter em conta que «a transacção pode envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido» – cfr referido art 1248º/2 CC- podendo estas finalidades fazerem intervir terceiro para assegurar a disponibilidade subjectiva do direito [3] .

Por isso, a sentença homologatória não constitui «resposta» ao pedido formulado pelo autor na acção. Sendo uma sentença de mérito, não o é por ter conhecido do pedido do A. ou do do R., mas porque absorve o conteúdo do negócio jurídico em que se traduz a transacção, condenando e absolvendo nos termos exactamente pretendidos e resultantes das concessões reciprocas das partes em que aquela se traduz. Com o que, «havendo homologação, a sentença é proferida em conformidade com a vontade das partes e não mediante aplicação do direito objectivo aos factos provados, tutelando o direito subjectivo ou o interesse juridicamente protegido que, em conformidade, se verifique existir». [4] 

 Note-se que, do negócio jurídico em que se traduz a transacção, não resulta, só por si, nem o caso julgado nem a extinção do processo.

Estes dois efeitos processuais advêm da intermediação da sentença homologatória, que só pode ser concedida, como acima se referiu, na ocorrência das referidas condições.

Ora, se alguma das partes pretende no próprio processo em que foi proferida a sentença de homologação da transacção, que esta seja anulada, e que, em consequência dessa anulação seja reposta a situação anterior à mesma, de modo a que a causa venha a ser julgada em função dos factos nela alegados – como parece ser o caso da aqui apelante - apenas o poderá fazer se no recurso que dela interponha fizer valer a inexistência em concreto de algumas das acima referidas condições para a mesma ter sido proferida.

Quer dizer, haverá de demonstrar – pese embora a sua responsabilidade pelo resultado homologatório, pois que o pediu enquanto parte do negócio em que a transacção se analisa - que a fiscalização pelo juiz da regularidade e validade do acordo foi irregularmente realizada, já que, afinal, o objecto do litigio não estava na disponibilidade das partes ou não tinha idoneidade negocial ou as pessoas que intervieram na transacção não se apresentavam com capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto.

O recurso da sentença homologatória da transacção há-de, pois, incidir sobre um vício da própria sentença homologatória, como se faz notar no Ac RL 12/12/2013 [5], sendo que o normal é que, existindo tal vício, se apresente a fazê-lo valer em recurso dessa sentença terceiro que se mostre afectado pelo caso julgado que daquela decorre[6]

 Fora desta  situação – que as conclusões das alegações no presente recurso não reflectem minimamente – a parte interveniente na transacção, para lograr o objectivo que a apelante parece pretender no recurso – que se reabra a discussão no processo de modo a que o mesmo siga os seus termos normais conducentes a uma sentença que conheça do pedido formulado  em função dos factos constantes do mesmo - tem que, fora deste, lograr por um lado, a destruição dos efeitos substantivos da transacção e o processual resultante do caso julgado atribuído a esses efeitos pela homologação da transacção, e por outro, a destruição do efeito processual decorrente da extinção da instância no processo em que foi produzida a sentença homologatória.

A destruição daqueles efeitos substantivos obtê-la-á, a parte, em processo autónomo, alegando e provando a existência de vícios da vontade nos outorgantes, ou vício no objecto do negócio jurídico em que se traduz a transacção  – cfr Ac RL  3/2/2009 [7] - e pedindo a declaração da nulidade ou a anulabilidade desse negócio jurídico (no caso desta, sem prejuízo da caducidade correspondente), servindo-se para o efeito do regime geral dos negócios jurídicos.

Por isso, o nº 1 do art 291º CPC refere que «a (…) transacção pode ser declarada nula ou anulada como os outros actos da mesma natureza», querendo com isso tornar claro que se pretende, neste particular, remeter para o regime jurídico do negócio jurídico – arts 285º/289º CC - como o salienta Lebre de Freitas [8].

A sentença que declare a nulidade ou a anulabilidade da transacção pode decretar  os efeitos substantivos daí emergentes, pelo que «anulada a transacção  - seja por via de acção (art 301º/2), seja por via de oposição à execução (art 814ºal h) do COC ) – a sentença que a havia homologado perde a sua eficácia, enquanto titulo executivo e enquanto acto que determina os direitos e obrigações das partes, já que, nesta parte, se deve considerar eliminada ou inutilizada e substituída  pela decisão posterior que, em conformidade com a lei, declara nula ou anula a transacção que aquela havia julgado válida». [9]

A destruição do efeito de extinção da instância produzido pela sentença  homologatória só pode, porém, obtê-lo, através da interposição de recurso de revisão.

Desde o DL 38/2003 - que no âmbito do aCPC deu ao então nº 2 do art 301º a redacção que hoje consta do nº 2 do art 291º do actual CPC [10] – que a parte que pretenda um e outro dos referidos objectivos os pode obter interpondo meramente recurso de revisão, e não já, como anteriormente, através da propositura de dois processos.

Referindo-se a essa situação, comentam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[11]: «Esta duplicidade de meios (acção e recurso) fundava-se na distinção entre os efeitos (negociais) do acto de confissão do pedido, desistência ou transacção e os efeitos (processuais) da sentença que o homologa (…) Mas sendo desnecessariamente complexa, melhor seria um esquema, como o do CPC de 1939, que se contentasse com um único meio processual para a impugnação simultânea do acto das partes e do acto jurisdicional». Acrescentando: «Este esquema vigora de novo desde o DL 38/2003; a acção prévia ao recurso de revisão é dispensada (art 696-d); o recurso de revisão tem de ser interposto no prazo de 60 dias contado a partir do momento em que a parte tem conhecimento do fundamento de nulidade ou anulabilidade do negócio de auto composição do litígio, mas não depois do prazo de cinco anos sobre o trânsito da sentença homologatória - art 697º/2. (…) O nº 2 prevê em alternativa ao recurso de revisão, a proposição de acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação da confissão, desistência ou transacção. Tem-se assim em conta a eventualidade de se pretender atacar apenas o negócio jurídico de auto composição e não também a sentença que o homologou, sem prejuízo da responsabilidade do autor pelas custas  - art 535º/1-d). O único prazo que a acção terá de respeitar é o da caducidade do direito à anulação».

Deverá notar-se que quando deixe ser possível à parte servir-se do recurso  de revisão  - porque o não haja interposto no prazo de 60 dias após o conhecimento do fundamento da nulidade ou da anulabilidade do negócio jurídico em que se traduz a transacção e dentro dos cinco anos sobre o trânsito da sentença homologatória – deve considerar-se haver ainda interesse processual na interposição da acção  para fazer valer a nulidade ou anulabilidade do negócio de auto composição do litigio, ou na defesa que para esse efeito a parte apresente na oposição à execução[12], por subjazer à parte que assim aja interesse directo e legítimo nesse sentido[13].

            Evidentemente que, não utilizando a parte o recurso de revisão – porque o não pretenda ou porque já esteja fora do contexto temporal em que o teria de fazer - apenas vai obter a anulação da transacção, pelo que «a sentença que a havia homologado perde a sua eficácia, enquanto titulo executivo e enquanto acto que determina os direitos e obrigações das partes, já que nesta parte se deve considerar eliminada ou inutilizada pela decisão posterior que, em conformidade com a lei, declara nula ou anula a transacção que aquela havia julgado válida», e já não a reabertura da instância no processo em que foi proferida a sentença homologatória, efeito que só poderia alcançar através do recurso de revisão.

            Feitas estas considerações, ter-se-á de julgar improcedente o presente recurso, visto que  não tem por objecto um qualquer vício da própria sentença homologatória, mas antes um vicio da vontade da aqui Recorrente no acto da transacção, vicio esse a  que cabe o regime da anulabilidade, sendo que o direito potestativo da anulação só pode ser feito através de acção judicial (art 287º CC ), estando, pois, excluído, de todo o modo,  que o pudesse fazer em recurso da sentença homologatória [14].

            Será possível, crê-se, à aqui Recorrente utilizar ainda o recurso de revisão após o trânsito em julgado da decisão aqui proferida.

           

            Relativamente ao pedido de condenação da Recorrente em litigância de má fé formulado pelo Recorrido nas suas alegações (cfr ponto 23 das mesmas), entende-se que não é motivo para essa condenação a circunstância de aquela ter invocado, ainda que  através de meio de processo impróprio, vicio da sua vontade no acto da transacção. E isto, por muito esdruxulo que esse vício se possa considerar, visto que a mesma foi antecedida da deslocação do tribunal à casa de morada de família, e que é condição da anulabilidade por incapacidade acidental que o facto seja notório ou conhecido do declaratário, sendo que o facto é notório quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar – art 257º/1 e 2  CC- o que naturalmente teria sucedido com a Exma Juíza da 1ª instância.

            De todo o modo, aquela invocação, no contexto dos autos – em face do estado de tensão emocional de que a Requerente dá nota logo na interposição da acção - não traduz, só por si, dolo ou negligência grave, que é sempre pressuposto da litigância de má fé.

           

            V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação, e improcedente o pedido de condenação da apelante como litigante de má fé, mantendo a decisão recorrida.

            Custas pela apelante.

Coimbra, 26 de Abril de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)

(…)



               [1] - Dir-se-á em vez de “atribuição”, utilização, por estar em causa um acordo destinado a vigorar apenas até à partilha.
[2]Introdução ao Processo Civil», Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 36
[3] - «Código de Processo Civil Anotado», Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Vol I, 3ª ed, p 571
[4] - -«Introdução ao Processo Civil», Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 35

[5] -  Relator, Rui Vouga
[6] - Na situação do acórdão acima mencionado, o recurso da sentença homologatória é interposto pelos sócios da sociedade insolvente, sendo esta quem era parte no processo e estando nele representada pelo administrador da insolvência.
[7] Relatora, Conceição Saavedra
[8] «Código de Processo Civil Anotado», Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, lugar citado
               [9]  - Cfr ponto V e VI do sumário do Ac R P 27/5/2010 (Mª Catarina Gonçalves)

[10] - Redacção essa que é a seguinte: «O trânsito em julgado da sentença proferida sobre  a confissão, a desistência ou a transacção não obsta a que se intente acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação».
[11]-  «Código de Processo Civil Anotado», Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, lugar citado
[12]- Constitui fundamento de oposição à execução baseada em sentença (homologatória de confissão ou transacção), nos termos do art 729º al i), «qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses actos».
[13] - Cfr Ac R G 27/5/2010 (Mª Catarina Gonçalves), Ac R E 16/6/2016 (Manuel Bargado), Ac R P 27/5/2010 ( de novo, Mª Catarina Gonçalves)

               [14] - Veja-se a este respeito, CPC Anotado Lebre de Freitas / Isabel Alexandre,  anotação 4 ao art 291º CPC