Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
224/07.0GTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: TAXA DE ALCOLÉMIA
ERRO MÁXIMO ADMÍSSIVEL
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 292º CP,97º, Nº 5 DO CPP
Sumário: O juiz não pode no início da audiência de julgamento, sem qualquer produção de prova, proferir despacho aplicando dedução de erro máximo admissível á taxa de alcoolémia constante da leitura do talão do alcoolímetro, reduzindo a TAS de 1, 26 g/l para 1,16 g/l no sangue, ordenando a remessa dos autos à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, por em consequência a infracção passar a ser punível a título de contra-ordenação.
Decisão Texto Integral: Processo sumário, do 3.º Juízo, do Tribunal Judicial da Guarda

***

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
*
No processo supra identificado, foi submetido a julgamento em processo sumário o arguido A , imputando-se-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
*
Declarada aberta a audiência de julgamento o senhor juiz, sem qualquer produção de prova, limitou-se a proferir despacho aplicando a margem máximo de erro admissível da taxa de alcoolémia apresentada no talão, convertendo a TAS de 1,26 g/l em 1, 16 g/l no sangue, ordenando em consequência a remessa dos autos à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, uma vez que tal dedução implicou a conversão da infracção de crime em contra-ordenação.
O despacho é do seguinte teor:
«Compulsados os autos constata-se a fls. 4 que a prova da taxa de alcoolémia constante dos autos é em exame ao ar inspirado pelo arguido, que apresentam, segundo o registo do aparelho urna TAS de 1,26.
Decorre da Portaria 1556/2007 de 10/12/2007, bem como da Portaria 902-A/2007 de 13/08 e da Lei 18/2007 de 17/05, que o alcoolímetro deverá ser sujeito a aprovação anual e nos quais admissíve1 na segunda aprovação um erro de 8% entre a TAE e a sua conversão em TAS a realizar pela máquina.
Assim e porque em sede probatória impera o "pró dúbio pró réu", depois de efectuar a dedução da margem máxima de erro admissíve1 da taxa de alcoolémia apresentada no talão resulta que a mesma é de 1,16 gr/1, o que é inferior à taxa que a lei estabelece corno condição objectiva para preenchimento do tipo legal de crime de condução em estado de embriaguez - ­artigo 292.º, do CPP.
Assim porque tal questão é prévia e não depende da produção de qualquer outra prova, além da existente nos presentes autos, ter-se-á, liminarmente, que declarar a inexistência dos pressupostos que a lei faz depender para a verificação do crime, sendo assim a presente acusação manifestamente infundada.
Pelo exposto, declaro como não puníveis, do ponto de vista criminal, os factos objecto dos presentes autos, e, consequentemente, absolvo, sem conhecimento dos mesmos, o arguido.
Porque do entendimento supra exposto resulta que os factos consubstanciam a prática de uma contra ordenação muito grave, determino o reenvio dos presentes autos à Autoridade Nacional Segurança Rodoviária para os fins tidos por conveniente, uma vez que o Tribunal não tem competência, e, inexistindo facto que a lei qualifica como crime, para aplicar qualquer coima ou sanção acessória de contra ordenação, pois caso se aplicasse, o Tribunal estaria a privar o arguido de um grau de jurisdição».
*
Deste despacho interpôs recurso o Ministério Público, pugnando pela revogação do despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine, a desqua1ificação dos factos como contra ordenação e a sua qualificação como crime, a submissão do arguido a julgamento sob a forma sumária ou a remessa dos autos para outra forma de processo criminal.
Formulou as seguintes conclusões:
«1. Com a decisão proferida pelo M.mo Juiz "a quo" ocorre uma quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
2. A decisão de que ora se recorre é arbitrária e ilegal.
3. O arguido deveria ter sido submetido a julgamento, ainda que, a final, viesse a ser absolvido.
4. Não poderia ter sido absolvido, da forma como o foi, por despacho, sem ter sido julgado.
5. Pois o Tribunal estava tematicamente vinculado pela acusação do arguido ao julgamento sob a forma sumária.
6. Não se concorda que possam ser “desqualificados”, por despacho, factos crimes em contra ordenação, factos aqueles remetidos para julgamento sob a forma de processo sumário.
7. Não se concorda com a interpretação do Tribunal relativa às verificações metrológicas dos alcoolímetros.
8. A decisão ora em apreço violou, entre muitas outras, as disposições dos art. 381.º, 382.º, 383.º, 385.º, 386.º, 387.º».
*
Notificado o arguido para os efeitos do art. 413.º, do Cód. Proc. Penal, não respondeu.
Nesta Relação o Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, sufragando os fundamentos da motivação de recurso, pugna pela procedência do recurso, submetendo-se em consequência o arguido a julgamento.
Colhidos os vistos legais, cumpre-nos decidir.
*
O Direito:
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Questão a decidir:
Apreciar se o juiz pode, no início da audiência de julgamento de processo sumário, sem qualquer produção de prova, e sem assegurar o contraditório, aplicar a dedução de erro máximo admissível á taxa de alcoolémia constante da leitura do talão do alcoolímetro, reduzindo a TAS de 1, 26 g/l para 1,16 g/l no sangue, com a consequente remessa dos autos à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, por a infracção passar a ser punível como contra-ordenação.

Já defendemos que é admissível sustentar a margem de “erro máximo admissível”, em decisões de recurso das quais fomos relator, quando a taxa de alcoolémia é obtida através do aparelho “DRAGER ALCOTEST, modelo 7110MK III-P”, aprovado pelo IPQ (DR III Série, n.º 223 de 25 de Setembro de 1996 e DR III Série n.º 54, de 5 de Março de 1998) e cuja utilização foi autorizada através do Despacho n.º 001/DGV/ALC./98, de 6 de Agosto, de 1998 designadamente nos acórdãos de 7/11/2007, Recurso n.º 140/06.2GBACB.C1, do 2.º Juízo, de Alcobaça e de 12/12/2007, Recurso n.º 76/07.0PANZR.C1, da Nazaré.
A jurisprudência, designadamente nesta Relação, não é pacífica nesta questão.
Porém, entendemos que tal posição que vimos defendendo não deve ser tida como um princípio aplicado de forma automática, dependendo de cada caso.
O Ministério Público recorre habitualmente da sentença com o fundamento de que o tribunal a quo devia ter dado como provada a taxa que resultou da leitura do aparelho utilizado. Diremos que tudo depende da posição assumida pelo arguido e tendo em conta os elementos probatórios em que o tribunal fundamenta a sua convicção.
Porém, uma coisa é certa, o juiz não pode de forma arbitrária, no início da audiência de julgamento, sem qualquer produção de prova, proferir despacho aplicando dedução de erro máximo admissível á taxa de alcoolémia constante da leitura do talão do alcoolímetro, reduzindo a TAS de 1, 26 g/l para 1,16 g/l no sangue, ordenando a remessa dos autos à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, por em consequência a infracção passar a ser punível a título de contra-ordenação.
O senhor juiz, o que devia ter feito por sentença, após produção de prova, fixando a matéria de facto, para permitir o contraditório e de forma a que os intervenientes pudessem reagir relativamente á matéria de facto fixada, por mero despacho, à revelia de qualquer comando legal, no início da audiência de julgamento, limitou-se a considerar que o alcoolímetro deu uma leitura de 1,26 g/l no sangue, mas que a mesma corresponde a uma taxa efectiva de 1,16 g/l no sangue.
Limitou-se a alicerçar o despacho recorrido na Portaria 1556/2007 de 10/12/2007, bem como da Portaria 902-A/2007 de 13/08 e da Lei 18/2007 de 17/05, com o único fundamento de que o alcoolímetro deverá ser sujeito a aprovação anual, sendo admissíve1 na segunda aprovação um erro de 8% entre a TAE e a sua conversão em TAS a realizar pela máquina.
Justifica a aplicação daquela margem de erro fazendo apelo ao princípio ao princípio “in dubio pro reo”.
Para tal, consigna expressamente no seu despacho:
«Assim e porque em sede probatória impera o "pró dúbio pró réu", depois de efectuar a dedução da margem máxima de erro admissíve1 da taxa de alcoolémia apresentada no talão resulta que a mesma é de 1,16 gr/1, o que é inferior à taxa que a lei estabelece como condição objectiva para preenchimento do tipo legal de crime de condução em estado de embriaguez - ­artigo 292.º, do CP».
Ora, o próprio despacho é contraditório, pois a aplicação do princípio “in dubio pro reo”, como se afirma no próprio despacho deve resultar no espírito do julgador após esgotar todos os elementos de prova oferecidos pela acusação e pela defesa e dos meios de prova de que oficiosamente se pode recorrer.
Ora, nada disto aconteceu.
O julgador, só deve fazer uso do princípio in dubio pro reo quando a dúvida se torna irremovível, isto é, quando o tribunal não dispuser de elementos de prova que a permitam remover no sentido da condenação.
O princípio in dubio pro reo, pressupõe que o juiz deve decidir com base nas regras da experiência e sua livre convicção, nos termos do art. 127.º, do CPP, mas tal implica que, enquanto julgador, julgue o facto que lhe é submetido à apreciação e o submeta ao contraditório e só depois deve fazer uma apreciação crítica da prova, fundamentando devidamente a sua convicção, designadamente a razão por que chegou ao estado de dúvida.
Não é manifestamente o caso.
Impõe-se pois, que no exame crítico se indique, no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da sua convicção.
Ora, no caso dos autos, quanto à matéria de facto dada como assente, relativamente à taxa de que o arguido era portador no momento da condução e que levou à convolação de crime para contra-ordenação, o senhor juiz, no despacho não procedeu ao exame crítico dos elementos de prova e não justificou, designadamente a razão de fazer corresponder a taxa de 1,26 g/l que resultou da leitura do alcoolímetro a uma taxa efectiva de 1,16 g/l no sangue.
Na fundamentação do despacho, este sem qualquer cobertura legal, pois devia tê-lo feito em sentença, após produção da prova oferecida, limitou-se a justificar que a TAS é de 1,16 g/l e foi aplicada à taxa registada pelo aparelho alcoolímetro (1,26 g/l) a margem de erro máximo admissível, ao abrigo do disposto na Portaria n.º 1556/2007 de 10/12/2007, bem como da Portaria n.º 902-A/2007 de 13/08 e da Lei n.º 18/2007 de 17/05.
Como já referimos a questão da aplicação da margem de erro admissível, não pode resultar de forma automática e não tem sido pacífica na jurisprudência.
Ora, se não foi questionada a TAS que constava da acusação, o senhor juiz não podia mesmo em julgamento aplicar a “margem máxima de erro admissível, se a questão lhe tivesse sido suscitada e em caso de aplicação devia submeter tal probabilidade ao contraditório, por não ser pacífica a sua aplicação.
A dúvida não foi suscitada e além disso não está devidamente justificada a dedução ao valor apurado pelo alcoolímetro - no caso dos autos, 1,26 g/l - o valor do erro máximo admissível, em nome do princípio “in dubio pro reo”, admitindo o valor de 1,16 g/l.
Concluímos assim que o despacho enferma de falta de fundamentação, nos termos do art. 97.º, n.º 5, do CPP.
Por outro lado, com o despacho recorrido o senhor juiz violou os princípios da legalidade e do contraditório (art. 2.º e 327.º, do CPP e art. 32.º, n.º 5, da CRP).
Se não vejamos.
O arguido foi submetido a julgamento em processo sumário e o senhor juiz proferiu a fls. 10 despacho do seguinte teor:
«Registe e autue como processo sumário.
Julgamento imediato».
Não podia pois o senhor juiz depois deste despacho dar o dito por não dito, sob pena dos destinatários do mesmo não compreenderem qual a razão por que entendeu que os factos que lhe foram submetidos a julgamento eram susceptíveis de enquadramento legal como crime e depois de declarada aberta a audiência de julgamento entendeu que eram subsumíveis a contra-ordenação.
Ora, uma vez ordenado o registo e autuação como processo sumário, o senhor juiz devia ter prosseguido a audiência de julgamento seguindo as formalidades do art. 381.º e segts. do CPP.
Proferido aquele despacho, o senhor juiz admitiu a imputação dos factos e a incriminação de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do CP, feita pelo Ministério Público, não podendo mais tarde por sua iniciativa vir dizer no início da audiência de julgamento sem qualquer produção de prova e sem ouvir os intervenientes processuais que afinal os factos não preenchem qualquer tipo legal de crime, mas antes um mera contra-ordenação.
No mesmo sentido o Ac. do TRP, de 22/11/2007, Proc. n.º 0744117, acessível in www.trp.pt/jurisprudencia.
A acusação define o objecto do processo, submetido a julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto à sua qualificação jurídica e as alterações que advierem durante a audiência de julgamento pautar-se-ão pelas formalidades constantes dos art. 358.º e 359.º, do CPP.
Assim, impunha-se que houvesse a produção da prova oferecida nos autos e fossem ordenadas as diligências que oficiosamente o tribunal entendesse, nos termos do art. 340.º, do CPP e só depois deveria ser tomada a posição que adoptou, sem embargo de tal posição nos merecer sérias reservas quanto à fundamentação que consta do despacho recorrido.
É de todo estranha a posição do tribunal a quo, pois não se compreende como se pode julgar acusação deduzida (o Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção – art. 389.º, n.º 2, do CPP) sem apreciar e ter em conta a prova oferecida nos autos que lhe servia de suporte, isto é, o agente autuante e o talão da taxa de alcoolémia registada.
O tribunal a quo ao não conhecer da matéria da acusação omitiu o dever de pronúncia e a observância das formalidades prescritas por que se rege o processo sumário nos art. 381.º e segts., do CPP.
Mais ainda, não se compreende, independentemente da admissibilidade da “margem máxima de erro admissível, que é discutível, que não se tenha dado cumprimento ao princípio do contraditório para decisão daquela questão incidental como impunha o art. 327.º, do CPP.
«…o juiz ou tribunal, que, ocupando uma situação de supremacia e de independência relativamente ao acusador e ao acusado, não pode promover o processo (ne procedat judex ex officio), nem condenar para além da acusação (sententia debet esse conformis libello). A definição do thema decidendum pela acusação é, pois, uma consequência da estrutura acusatória do processo penal.
(…)
O tribunal mantém plena independência para julgar o caso que lhe é submetido, mas apenas esse caso (ne eat iudex ultra petita) e o caso não é constituído simplesmente por factos destituídos de qualquer significação jurídica, mas por factos valorados em que a própria consciência do agente quanto à significação juridico-criminal desse comportamento é objecto de juízo e consequentemente de prévia prova em contraditório na audiência de julgamento – Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Verbo, vol. I, 2.ª Ed., 1994, pág.325 e 339»
Concluímos deste modo que o juiz não pode, no início da audiência de julgamento de processo sumário, sem qualquer produção de prova, e sem assegurar o contraditório, aplicar a dedução de erro máximo admissível á taxa de alcoolémia constante da leitura do talão do alcoolímetro, reduzindo a TAS de 1, 26 g/l, para 1,16 g/l no sangue com a consequente remessa dos autos à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, por a infracção passar a ser punível a título de contra-ordenação.
Nestes termos procederá necessariamente o recurso interposto.
*
Decisão:
Pelo exposto, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência se revoga o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que ordene a realização da audiência de julgamento e depois decidir em conformidade com a prova constante dos autos.
Sem custas.
Coimbra, …………………………………………..


..............................................................................
(Inácio Monteiro)


..............................................................................
(Alice Santos)