Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1099/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. BELMIRO ANDRADE
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
ENUMERAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS E NÃO
Data do Acordão: 05/05/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTIGO 374º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:

I - O tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões – relevantes para a decisão a proferir - suscitadas na acusação e na contestação, por forma a que não fiquem dúvidas de que foram apreciados.
II - Quando a acusação e a contestação constituem a afirmação e negação dos mesmos factos, pronunciando-se o tribunal pela prova dos mesmo na afirmativa daí resulta necessariamente que se pronunciou sobre a versão oposta, não se justificando que o tribunal de um lado estabeleça “provado que sim” e de outro “não provado que não”.

Decisão Texto Integral:

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ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


I. RELATÓRIO

1. No processo n° 264/03.8GOLRA do 3º Juízo Criminal do Tribunal de Leiria, em que é arguido BB, melhor id. nos autos, após julgamento, foi o mesmo condenado:
- como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292°, n° 1 do Cód. Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 4,00 perfazendo a multa o montante global de € 400,00 e ainda na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 6 meses.

2. Dessa decisão recorre o arguido, formulando, como remate da fundamentação apresentada, as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
1. A factualidade dada como provada nos pontos II - 1 e II - 3 da matéria dada como assente na Sentença recorrida resultam de erro notório na apreciação da prova.
2. Perante a prova produzida não se pode dar como provado que, no dia 29.08.2003, pelas 21h.48m., o arguido tenha conduzido o veículo PJ-56-14, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,72 g/l.
3. O arguido apenas admitiu ter conduzido até ao local onde foi sujeito ao teste de alcoolémia, mas nega que o tenha feito sob o efeito do álcool, que afirma ter consumido já naquele local.
4. Da prova produzida resulta inequivocamente que, quando os agentes da autoridade chegaram ao local, já o arguido ali estava há algum tempo.
5. A testemunha afirmou claramente que não viu o arguido conduzir o automóvel.
6. As declarações do arguido não entram em contradição com o depoimento da testemunha ouvida na Audiência de Julgamento.
7. As declarações do arguido não se podem considerar inverosímeis, sobretudo quando se fundamenta essa inverosimilhança numa referência genérica às regras da experiência comum, com ausência ou insuficiência de fundamentação lógico racional de tal consideração.
8. Devem ser dados como provados os factos alegados pelo arguido nos artigos 7°, 8°, 9°, 10°, 13° e 15°, reforçando-se, desta forma, a convicção de que não existe incompatibilidade entre as versões apresentadas pelo arguido e pela testemunha.
9. A douta Sentença recorrida viola o princípio da livre apreciação, previsto no art. 127° do Código de Processo Penal, no sentido em que não respeitou o entendimento que unanimemente lhe é atribui do. Sentido esse, que traduz o reconhecimento ao julgador de liberdade na formação da sua convicção, liberdade essa que não pode ser vista como uma manifestação de arbitrariedade, mas antes como uma liberdade condicionada à observância das regras de experiência comum, necessariamente objectivável e sustentável do ponto de vista racional.
10. A Sentença recorrida viola o disposto no art. 374°, n.o 2 do Código de Processo Penal, de acordo com o qual teria de enumerar os factos relevantes para a decisão da causa que considera provados e não provados, por não conter uma fundamentação suficientemente consistente para dar cumprimento à função que com este preceito se pretende assegurar.
11. Em face do art. 374°, n.o 2 do C.P.P., é ainda necessário que se enumerem as provas produzidas que concretamente motivaram a convicção do Tribunal na fixação da matéria provada e não provada, e que sobre estas recaia um exame critico que permita convencer os interessados da correcta decisão e que permita aos sujeitos processuais e ao Tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz.
12. A concreta exaustão com que estes elementos destinados a fundamentar a convicção que o julgador formou são introduzidos em cada Sentença dependerá, dir-se-ia, das concretas circunstâncias do caso sub judice, nomeadamente do grau de consistência da prova produzida.
13. A Sentença deverá pois ser "tanto quanto possível completa" nesta explicação.
14. A fundamentação da douta Sentença recorrida é manifestamente insuficiente.
15. Isto porque, estamos perante um caso em que a fragilidade da prova produzida, nomeadamente a que foi supra analisada, obrigariam no seu entender a um maior grau de exaustão na explicação do raciocínio que está na base da decisão a quo.
16. Não havendo provas inequívocas quer no sentido de se poderem dar como provados os factos da acusação, quer no sentido de se darem os mesmos como não provados, e em face do princípio do in dubio pro reo, não basta a mera invocação da inverosimilhança da versão apresentada pelo arguido para se chegar à decisão recorrida, sobretudo atento o teor do depoimento da testemunha e o facto de este não apresentar contradições com as declarações do arguido.
17. Pelo que a douta sentença recorrida é nula, nos termos do art. 379°, al. a) C.P.P..
18. Ainda que assim se não considere, a matéria dada como provada, em face da prova produzida, traduz-se na impossibilidade de determinar se o arguido ingeriu o vinho antes ou depois de ter conduzido.
19. Subsistindo a dúvida, deve o arguido ser absolvido de acordo com o princípio do in dubio pro reo.
20. Deve ainda concluir-se que a Sentença recorrida violou o princípio do in dubio pro reo ao condenar o arguido apesar de subsistirem dúvidas quanto à prática pelo arguido dos factos susceptíveis de integrar a conduta criminalmente proibida que lhe é imputada.
21. Tendo em conta a factualidade que deve ser provada, a decisão recorrida viola o art. 292°, n.o 1 do Código Penal, uma vez que a conduta do arguido não é susceptível de integrar a conduta aí prevista e punida. Pelo que o arguido deve, em face da alteração da matéria de facto provada, ser absolvido.
Termos em que deve a Sentença recorrida ser declarada nula ou, em alternativa, ser corrigida a matéria de facto dada como assente e, em consequência ser o arguido absolvido.

3. Respondeu o digno magistrado do MºPº, pugnando pela improcedência do recurso, por falta de fundamento das razões apresentadas pelo arguido.

4. No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, o recorrente não respondeu.
Realizada a audiência, não se verificando obstáculos ao conhecimento de mérito, cumpre conhecer e decidir.
***

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO é a seguinte:
A) Factos provados:
1. No dia 29.08.2003, cerca das 21h.48m. o arguido conduzia o automóvel de matrícula PJ-56-14, pela Estrada do Campo, em Aroeira, Sismaria, Leiria.
2. Submetido ao exame de pesquisa do álcool no sangue efectuado através do teste n° 0207 do aparelho "Seres Ethylometre", modelo 679T, o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,72 gr./l.
3. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que não podia conduzir o veículo referido após a ingestão de bebidas alcoólicas na quantidade referida em 2 e que a sua conduta é criminalmente proibida e punida pela lei.
4. O arguido é madeireiro, auferindo o salário aproximado de € 350,00.
5. O arguido vive em casa dos pais.
6. O arguido paga a quantia mensal de € 206,00 por conta de um empréstimo para aquisição de veículo.
7. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado por decisão datada de 28.10.2002, pela prática, em 31.12.2000, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

B) Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da presente causa, designadamente aqueles que o arguido alegou na sua defesa.


2. São as questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões que o tribunal de recurso tem que apreciar, sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – Cfr. Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.
Isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP, de acordo como o Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
No caso vem invocado o erro notório na apreciação de prova, a violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da livre apreciação da prova, e por ultimo os vícios da sentença enunciados no art. 374º do CPP.
Por uma questão de precedência lógica, nos termos dos arts. 368º/369º do CPP, por remissão do art. 423º, n.º5 do mesmo diploma, conhece-se em primeiro lugar dos vícios da sentença e só depois dos relativos ao julgamento em si.


2.1. Refere o recorrente que a sentença recorrida viola o disposto no art. 374°, n.º 2 do Código de Processo Penal, por não enumerar os factos relevantes para a decisão da causa que considera provados e não provados e por não conter uma fundamentação suficientemente consistente o exame critico que permita convencer os interessados da correcta decisão e o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz.
Ora, para além da descrição da matéria de facto provada e não provada, que se mostra devidamente elencada, fazendo referência expressa a toda a matéria relevante para a decisão, nos termos acima descritos, também a sentença fundamenta essa decisão, da seguinte forma:
«««« O tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido e da testemunha inquirida.
Importa referir que não colhe a defesa do arguido, sendo totalmente inverosímil, quer por si só, quer quando contraposta com a da testemunha ouvida, soldado da Guarda Nacional Republicana chamado a intervir. Na realidade, quando a testemunha foi chamada ao local por uma pessoa que se queixava de furto de milho, solicitou ao arguido que efectuasse o teste de detecção do álcool no sangue, depois de ele ter assumido ser o condutor do veículo. tendo-o guiado até aí, nada tendo referido quanto a festas e garrafões, sendo certo que a testemunha nada encontrou no local.
A testemunha acrescentou que o arguido não apresentou qualquer justificação na altura, limitando-se a submeter-se ao exame de pesquisa do álcool no sangue.... O tribunal atendeu, finalmente, ao teor do documento de fls. 6...»»»»

Resulta assim da simples leitura da transcrição acabada de fazer que a sentença fez referência explícita a toda a prova produzida em audiência.
Com efeito, como resulta da respectiva acta (fls. 59 e verso) nenhuma outra prova foi produzida para além do depoimento do arguido e da referida testemunha de acusação. A que há que acrescentar o exame do resultado do teste efectuado com o aparelho próprio, devidamente homologado para o efeito a que a sentença se refere como documento de fls. 6.
Por outro lado, ainda que de forma sintética, analisa criticamente essa prova, designadamente o depoimento do arguido, na medida em que o resultado do teste, por não questionado, não justifica maiores considerações.
Conjugando ainda as provas produzidas com as regras da experiência comum, partindo do resultado do teste indicado no “documento de fls. 6”, que constitui o talão emitido pelo aparelho técnico apropriado. Aparelho esse devidamente homologado, em obediência aos mais rigorosos parâmetros de segurança.

Poderia sustentar-se – ainda que não seja essa a perspectiva da fundamentação do recurso – que a sentença padece do vício em referência por não elencar, um por um, os factos da contestação provados e não provados.
Mas o próprio comando legal do art. 374º, n.º2 do CPP embora obrigue à enumeração dos factos provados e não provados, refere logo a seguir, quanto aos fundamentos que a exposição deve ser “tanto quanto possível completa, ainda que concisa”.
E, como tem decidido o STJ – v. entre outros: Ac. STJ de 15.01.1997, na CJ/STJ, tomo I/97, p. 181; Ac. STJ de 05.02.1998, publicado na CJ/STJ, tomo I/98, p. 189; Ac. STJ de 11.02.1998, BMJ 474º, p. 151; Ac. STJ de 02.12.1998, publicado na CJ/STJ, tomo III/98, p. 229 - a elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação.
A contestação não aparece como um acto isolado do processo. Surge integrada num encadeado de actos, designadamente tendo por referência a acusação a que se opõe ou contesta. Pelo que só tem verdadeiro sentido quando articulada com essa acusação que pretende contrariar. De onde que muitas vezes, a tomada de posição quanto à matéria da acusação implica simultaneamente a tomada de posição quanto à contestação, nomeadamente quando na primeira se afirma a prática de um facto ou determinado efeito desse facto e na segunda se nega esse mesmo facto ou efeito impugnado.
Daí que, como expressivamente, refere o Ac. STJ de 12.03.1998, BMJ 475º, p. 233, “o art. 374º, n.º2 do CPP não exige, relativamente aos factos não provados a mesma minúcia que preside à indicação dos factos provados, tendo o tribunal que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, maxime na contestação com interesse para a decisão”.
O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra, que geralmente são a afirmação e a negação do mesmo “recorte de vida” ou dos seus efeitos essenciais para efeitos de responsabilidade criminal.
Como decidiu o Ac. STJ de 29.06.1995, CJ/STJ, tomo 2/95, p. 254 “se da comparação entre a contestação e a enunciação da matéria de facto provada e não provada se concluir que toda a examinada na contestação foi concretamente examinada, a nulidade que possa existir não tem qualquer relevo ... apenas se podem considerar como não provados os factos (da contestação) incompatíveis com os provados se houver a certeza de que foram investigados”.
O juiz tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões – relevantes - suscitadas pelas partes, mas tem também o dever de as sintetizar na emaranhada teia que muitas vezes constituem as peças processuais. Desde logo para não perder de vista essencial em detrimento do acessório, evitando o risco para que CALAMANDREI adverte (em Eles os Juízes Vistos Pelos Advogados, Livraria Clássica Editora, ed. de1981, p. 55): “a alegação prolixa incita o juiz à distracção”.
Ora quando um facto é afirmado na acusação e negado na contestação, se depois de apreciadas as provas carreadas para os autos, o juiz dá como provada a versão – afirmativa - da acusação, desnecessário se torna repetir que a oposta não ficou provada. Porque constitui consequência lógica necessária da primeira. Se de um lado se afirma «praticou» e de outro «não praticou», dando-se como «provado que sim», é desnecessário - porventura estulto, por repetitivo - acrescentar «não provado que não».
Neste sentido já ALBERTO DOS REIS (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra editora, 3ª ed., vol. III, p. 217) na clareza que lhe era peculiar, em ensinamento dirigido ao processo civil, que aqui tem plena aplicação, esclarecia: “é frequente o mesmo facto ser articulado pelo autor na forma positiva e pelo réu na forma contrária. Então basta quesitá-lo sob uma das formas, para que as testemunhas de ambas as partes sejam inquiridas sobre ele”.
Assim, como decidiu o AC. STJ de 31.01.1996, BMJ 453º, p. 345, citado no douto parecer do MºPº, “É puro preconceito formalista dizer que não se provaram certos factos que estão em flagrante contradição, pela negativa, com outros anteriormente considerados como provados”.
Ou como decidiu o Ac. STJ 29.06.1995, CJ/STJ, tomo 2/95, p. 254, citado no mesmo parecer, “Se da comparação entre a contestação e a enunciação da matéria de facto provada e não provada se concluir que toda a alegada na contestação foi concretamente examinada e apreciada, a nulidade que possa ter existido não tem qualquer relevo”.
Assim, o que releva e importa apreciar é se, sem margem para dúvidas, o juiz tomou posição clara sobre as questões suscitadas na contestação e relevantes para a decisão.
Acrescente-se que sobre a matéria da contestação nenhuma prova foi produzida – salvo as declarações do arguido – uma vez que como consta da acta da audiência de discussão e julgamento, foram prescindidas todas as testemunhas de defesa arroladas. Pelo que nunca poderia haver outros factos provados com base em provas não produzidas.
Ora no caso a questão relevante suscitada na contestação é precisamente apenas e tão-só aquela que foi referida: a de que o arguido não conduziu no estado evidenciado pelo teste, por ter ingerido as bebidas que determinaram a taxa de álcool depois de ter imobilizado o veículo.
E sobre tal questão a decisão pronunciou-se efectiva e pormenorizadamente.
Pelo que não padece assim a sentença, tão-pouco nesta perspectiva, do vício em causa.


2.2. Questão diferente é a da avaliação da prova produzida – a que se reconduzem os três outros vícios invocados - erro notório, violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da livre apreciação da prova.
O erro notório na apreciação da prova, constitui uma das três situações enunciadas no art. 410º, n.º2 do CPP como fundamento do recurso, ainda quando a lei restrinja a cognição do tribunal a matéria de direito – vícios de conhecimento oficioso, nos termos do acórdão do STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95. Com efeito tais situações constituem fundamento do recurso “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” – texto do corpo do referido n.º2.
No entanto, a alteração da decisão da matéria de facto tomada pelo tribunal recorrido com este fundamento tem o seu âmbito delimitado desde logo pelo texto do mesmo preceito - “desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência”.
Em conformidade com a letra da lei (“erro notório ... que resulte do texto da decisão”) tem entendido a jurisprudência que o mesmo “só existe quando, do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária aquela a que chegou o tribunal” - Ac. STJ de 01.04.1998, processo 120/98, cit. por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos, cit., p. 68.
Trata-se de “um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio” Ac. STJ de 03.06.1998, processo n.º 272/98, citado pelos mesmos autores.
“Erro notório na apreciação da prova existe quando, usando um processo de racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado, uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência” –Ac. STJ de 01.04.1998, processo 1547/98, ainda citado no mesmo local.
“O conceito de erro notório na apreciação das provas tem que ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” – Ac. STJ de 06.04.1994, na CJ/STJ, t.2/1994, p. 186.
Para o recorrente o erro notório resultaria do facto de ter sido dado como provado que o arguido tinha conduzido o veículo no estado revelado pelo teste, uma vez que o agente da GNR que procedeu ao teste não presenciou o arguido no exercício da condução.
Ora, da leitura da decisão recorrida não resulta manifestamente o vício em questão, dentro do enquadramento referido, nem do texto da decisão em si (decisão e respectiva fundamentação), nem do seu confronto com as regras da experiência.


2.3. Aliás a forma como o recorrente coloca a questão, mais do que susceptível de subsunção ao conceito de erro notório, prende-se com a avaliação da prova. O que nos reconduz à apreciação dos dois outros vícios invocados – violação dos princípios in dubio pro reo e da livre apreciação da prova.
Neste aspecto a sentença, assenta, como se disse, nas declarações da única testemunha ouvida. Mas não só. Isto porque conjuga o dito depoimento com o também referido resultado do teste levado a cabo e percentagem alcoólica do ar expirado pelo arguido detectado nesse mesmo teste.
A essa prova o arguido contrapõe – apenas - o seu próprio depoimento. Depoimento que no que ora interessa, refere que, tendo conduzido o veículo durante um percurso de 70/80 km, desde Pataias, onde as 6 ou 7 companheiros de trabalho que viajarem também na viatura, tinham procedido ao corte de uma mata de eucaliptos, e tendo-lhes sido oferecido u garrafão de vinho, pararam naquele local “para o provar”. Daí conclui que a taxa de álcool no sangue evidenciada resultou de álcool ingerido no local, depois de ter imobilizado o veículo – e que portanto não conduziu sob o efeito do álcool.
Repare-se antes de mais que a testemunha ouvida, agente da GNR, referiu expressamente que no local ninguém apresentou tal versão dos factos – o que a loquacidade de 6 ou 7 companheiros de trabalho juntos, tendo acabado de “provar” um garrafão de vinho, não deixaria de alegar profusamente, se tivesse qualquer resquício de verdade. Mais refere a mesma testemunha que não viu nem lhe foi mostrado qualquer garrafão – o que também não deixaria de acontecer, se fosse verdade o que refere o arguido.
Acresce que, para além da declaração do arguido, não foi produzida qualquer prova que aponte nesse sentido. Nem o arguido a invoca. Nenhum dos companheiros presentes referenciados pelo arguido - nem sequer o próprio pai – se apresentou ou foi ouvida em audiência que tenha “dado a cara” por tal “história”.
As próprias declarações do arguido, à medida que foi respondendo as perguntas do Mº Juiz, evidenciam sucessivas hesitações e contradições (cfr. designadamente quando se refere ao garrafão cheio, que depois diz já não cheio e por fim refere de novo cheio; quando diz que telefonou a um amigo para ir buscar a carrinha, mas á frente já diz que tinha sido o pai a telefonar; quando refere que pararam para “provar” o vinho e depois refere que esvaziaram completamente o garrafão).
Acresce, em termos de experiência comum, não se compreende que um grupo de trabalhadores, depois de um dia inteiro de trabalho, a cortar madeira – no mês de Agosto -, findo o dia de trabalho, tendo recebido um garrafão de vinho (que só o arguido refere) tivessem percorrido cerca de 70 km. em direcção às suas casas e só quando se encontravam já a apenas cerca de 5 km. das suas residências, se tivessem lembrado de encostar, à beira da estrada, a escassos minutos de casa, para beber. Não para uma simples “prova”, mas para emborcar todo o conteúdo do garrafão - 5 (cinco) litros - de vinho. A seco, antes do jantar!!!.
Não é a decisão que viola as regras da experiência comum, mas sim a versão apresentada pelo arguido, que, a ser aceite, sem mais, correspondia, por um lado a atribuir eficácia de prova plena, que manifestamente não têm, às suas declarações. E por outro lado esquecer que o arguido depôs “em causa própria” e em seu favor, sendo certo que nada corrobora ao de leve, sequer, o seu depoimento.

Assim o recurso não tem não só o menor fundamento no que toca ao invocado erro notório da apreciação da prova, como pelo contrário, aceitar a versão do arguido é que constituiria um erro grosseiro, por destituída de sentido e não apoiada em qualquer outro meio de prova.

Pelas mesmas razões não foi violado o princípio in dubio pro reo - que supõe uma dúvida razoável, depois de toda a prova produzida, que no caso se não verifica.
Nem o princípio da livre apreciação da prova, porque a decisão se encontra devidamente fundamentada, de forma clara e racional, no resultado do teste efectuado com aparelho adequado, cujo resultado não foi posto em causa, no depoimento do agente da GNR que procedeu ao teste e refere não lhe ter sido referido no local, por nenhum dos vários indivíduos presentes, qualquer garrafão ou ingestão de bebida no local, depois da imobilização do veículo, o que não deixaria de suceder, se tivesse algum fundo de verdade, sendo certo ainda que a versão apresentada pelo arguido não é corroborada por qualquer outro elemento de prova.

Pelo que o recurso tem que improceder


III. DECISÃO
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.------
Custas pelo recorrente, fixando-se taxa de justiça pela interposição do recurso, (atenta a situação económica do arguido, complexidade do recurso e total falta de fundamento – art. 82º CCJ) em 10 (dez) UC.