Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
948/03.0TBTNV-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: ARRESTO
REQUISITOS PROCESSUAIS
CRÉDITO ACTUAL E NÃO CRÉDITO FUTURO OU HIPOTÉTICO
CRÉDITO DE TORNAS
Data do Acordão: 05/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 619º, Nº 1, C. CIV., 406º A 411º CPC
Sumário: I – Para o decretamento do arresto basta que sumariamente (“summaria cognitio”) se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito (“fumus boni iuris”) e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio conduza à perda da garantia patrimonial (“periculum in mora”).

II - É pressuposto ou requisito essencial para o decretamento da providência cautelar de arresto que o requerente da mesma seja credor do requerido, tenha sobre ele um crédito.

III - Embora em sede de procedimento cautelar baste que se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito, tem de tratar-se de crédito actual, constituído, vigente e não de crédito futuro, hipotético, eventual (ainda que provável).

IV – Em inventário subsequente a divórcio em que foi relacionada unicamente, como benfeitoria, uma casa de habitação construída pelo casal em prédio rústico próprio de um dos cônjuges, não tem o outro cônjuge, sobre este, enquanto não for feita e homologada partilha nesse sentido, um crédito de tornas correspondente a metade do valor da dita benfeitoria.

V – Falta, neste caso, ao crédito de tornas, actualidade.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. RELATÓRIO

            A..., intentou, em 25/03/2008, por apenso aos autos de inventário em consequência de divórcio nº 948/03.0TBTNV-B, a correr termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, procedimento cautelar de arresto contra B..., pedindo o decretamento, sem audição prévia do requerido, do arresto do prédio urbano sito no Largo Sampaio, Arcozelo, freguesia e concelho de S. Pedro do Sul, composto de casa de habitação, com 3 pisos e logradoiro, inscrito na matriz sob o art.° 2903 e descrito na Conservatória do Registo Predial de S. Pedro do Sul, sob o n.° 2109 - freguesia de S. Pedro do Sul.

            Alegou, para tanto, em síntese, que, pelas razões que explica, tem sobre o requerido um crédito de € 57.000,00 e que, pelos motivos que igualmente descreve, receia perder a garantia patrimonial do seu crédito.

            O requerimento inicial foi indeferido liminarmente, nos termos e com os fundamentos constantes do despacho de fls. 17 e 18 dos autos.

            Inconformada, a requerente interpôs recurso, para o qual indicou a espécie apelação[1], a subida imediata e nos próprios autos e o efeito suspensivo.

            Na alegação que logo incluiu no requerimento de interposição, formulou a recorrente as conclusões seguintes:

(…)

O recurso foi admitido na espécie e com o regime de subida e o efeito indicados pela recorrente.

Inexistindo quaisquer questões que devam ser apreciadas antes do julgamento do objecto do recurso, cumpre decidir.


***

            Tendo em consideração que, nos termos do disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil[2], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada a questão de saber se havia ou não motivo para o decretado indeferimento liminar do requerimento inicial do procedimento cautelar de arresto instaurado pela recorrente A....


***

            2. FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. De facto

            Os elementos de facto e incidências processuais relevantes para a decisão do recurso são os que resultam do antecedente relatório, que aqui se dá por reproduzido e ainda os seguintes:

(…)

            2.2. De direito

            Nos termos do nº 1 do artº 234º-A, nos casos referidos nas alíneas a) a e) do nº 4 do artigo 234º, pode o juiz, em vez de ordenar a citação, indeferir liminarmente a petição, quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções, dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 476.°.

            O caso dos autos enquadra-se na al. b) do nº 4 do artº 234º e o Mº Juiz “a quo” indeferiu liminarmente o requerimento inicial do procedimento cautelar com o fundamento de o pedido ser manifestamente improcedente.

            A recorrente discorda, entendendo que o procedimento cautelar devia prosseguir.

            Quid juris?

           

            O arresto, do ponto de vista do direito processual, é um procedimento cautelar especificado que se rege pelas normas que lhe são próprias (artºs 406º a 411º) e, quando estas sejam omissas, ainda pelas do procedimento cautelar comum, com excepção do preceituado no artº 387º, nº 2 (artº 392º, nº 1).

            Consiste tal procedimento numa apreensão judicial de bens, à qual são, “grosso modo”, aplicáveis as disposições relativas à penhora (artº 406º, nº 2) - funciona como pré-penhora[3] - e o seu decretamento há-de fundamentar-se no justificado receio do credor de perder a garantia patrimonial do seu crédito (artº 406º, nº 1).  

            Ao requerente do arresto compete, nos termos do artº 407º, nº 1, deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devam ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.

           

Mas também o direito substantivo, nos artigos 619º a 622º do Cód. Civil, se refere ao arresto, como forma de conservação da garantia patrimonial do credor.

            É dos princípios gerais e consta do artº 601º do Cód. Civil, que a garantia do credor é o património do devedor. Assim, quanto menor for tal património, menos garantido está o credor, a quem, por isso, não interessa a respectiva diminuição.

            Daí que a própria lei substantiva tenha previsto que “o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo”- artº 619º, nº 1 do Cód. Civil.

            E, efectuado o arresto, o credor fica seguro da sua garantia pois os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação a si, de acordo com as regras próprias da penhora (artº 622º, nº 1 do Cód. Civil).

            Inclusivamente, nos termos do artº 846º, a penhora de bens arrestados faz-se por simples despacho que converte o arresto em penhora, a qual é registada por mero averbamento no registo predial.

            Para o decretamento do arresto basta que sumariamente (“summaria cognitio”) se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito (“fumus boni iuris”) e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio conduza à perda da garantia patrimonial (“periculum in mora”).

            Assim delineado, em traços largos, o esboço da figura da providência cautelar especificada em apreciação e o resumo da sua regulamentação, vejamos se, “in casu”, face ao teor do requerimento inicial, era ou não manifesta a improcedência do pedido.

            É pressuposto ou requisito essencial para o decretamento da providência cautelar de arresto que o requerente da mesma seja credor do requerido, tenha sobre ele um crédito.

            Embora em sede de procedimento cautelar baste que se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito, tem de tratar-se de crédito actual, constituído, vigente e não de crédito futuro, hipotético, eventual (ainda que provável).

            A recorrente ultrapassa a questão da actualidade do crédito com uma construção jurídica que, se bem vemos, se revela pouco consistente.

            Entende ela que, face à relacionação como benfeitoria da casa de habitação construída pelo casal no terreno de propriedade exclusiva do requerido, tal casa passou a pertencer a este também em exclusivo, ficando ela credora de metade do respectivo valor.

            Não encontramos fundamento jurídico para tal entendimento.

            Com efeito, a relacionação da casa como benfeitoria não operou automaticamente a entrada da mesma na esfera patrimonial do requerido, não implica necessariamente que venha a ser-lhe adjudicada no inventário[4], nem, portanto, obsta a que, v. g., no caso de adjudicação à requerente, venha a desenhar-se uma situação de possível acessão industrial imobiliária (artºs 1339º a 1343º do CC).

Mesmo admitindo que a verba única relacionada no inventário virá a ser adjudicada ao interessado B..., sendo o quinhão da requerente integrado por tornas, sempre terá de concluir-se que não tendo, na data da instauração do procedimento cautelar, sido ainda realizada a conferência de interessados, nem, consequentemente, sido decidida a composição dos quinhões e feita e homologada a partilha, o direito de crédito da requerente sobre o requerido não existia ainda.

            Falta, portanto, o aludido requisito – crédito da requerente sobre o requerido – imprescindível ao decretamento do arresto.

            Ou, visto o caso noutra perspectiva, face ao teor do requerimento inicial, o pedido é manifestamente improcedente, o que justifica o indeferimento liminar.

           

            Como escreve Abrantes Geraldes[5] referindo-se aos procedimentos cautelares, nada obsta a que, em sede de despacho liminar, perante deficiências na alegação da matéria de facto ou na formulação do pedido, o tribunal confira imediatamente ao requerente a possibilidade de corrigi-las, desde que se apresentem com uma certa gravidade e não seja previsível a sua natural superação através da subsequente tramitação procedimental.

            Não é, porém, esse o caso dos autos. Com efeito, não estamos perante uma deficiência sanável, merecedora de despacho de aperfeiçoamento, mas de manifesta improcedência, consistente na falta de um requisito essencial, insusceptível de sanação. Ou seja, decorrendo logicamente do requerimento inicial que, contra o alegado pela requerente, inexiste o crédito desta sobre o requerido, nada há passível de correcção. A improcedência do pedido é manifesta e o indeferimento liminar inarredável.

            Não era caso, portanto, de formulação de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artº 508º, nº 2.

            A inexistência (ao menos por ora) do crédito da requerente prejudica o conhecimento da existência ou não do justo receio de perda da garantia patrimonial (artº 660º, nº 2).

            Soçobram, pois, as conclusões da alegação da recorrente, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da decisão recorrida.

            Pode, portanto, cumprindo o disposto no artº 713º, nº 7 do CPC, elaborar-se o seguinte

            SUMÁRIO:

            I – Embora em sede de procedimento cautelar de arresto baste que se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito, tem de tratar-se de crédito actual, constituído, vigente e não de crédito futuro, hipotético, eventual (ainda que provável).

            II – Em inventário subsequente a divórcio em que foi relacionada unicamente, como benfeitoria, uma casa de habitação construída pelo casal em prédio rústico próprio de um dos cônjuges, não tem o outro cônjuge, sobre este, enquanto não for feita e homologada partilha nesse sentido, um crédito de tornas correspondente a metade do valor da dita benfeitoria.

            III – Falta, nesse caso, ao crédito alegado, actualidade.


***

            3. DECISÃO

            Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

            As custas são a cargo da recorrente.


***

                                                                                  Coimbra,


[1] Face à data da instauração do procedimento cautelar – 25/03/2008 – aplica-se já aos autos o Código de Processo Civil com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem outra menção.
[3] Ac. STJ de 18/05/95, in CJ, STJ, III, II, 92.
[4] O interessado B... não é obrigado, apenas por ser proprietário do terreno onde a casa foi edificada, a aceitar que a mesma lhe seja adjudicada por inteiro, nomeadamente pelo valor da avaliação feita no inventário.
[5] Temas da Reforma do Processo Civil, 2ª edição, pág. 166.