Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1376/06.1TBCRB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: HIPOTECA
OBJECTO
OBRIGAÇÃO FUTURA
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
Data do Acordão: 03/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - VARAS MISTAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 280º E 686º DO C.CIV.
Sumário: I – Conforme consta do art.º 686º, n.º 1, do C. Civil, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

II - Destinando-se a hipoteca a garantir o pagamento de créditos existe uma ligação incindível entre o direito de crédito garantido e o direito real de garantia, sendo aquele determinante para a conformação deste, pelo que se diz que a hipoteca é acessória do direito de crédito que garante.

III - Assim, a necessária determinabilidade do objecto de qualquer negócio jurídico – art.º 280º, do C. Civil – exige não só que os bens dados em hipoteca sejam individualizados no respectivo negócio constitutivo, como também o crédito ou créditos garantidos devam ser determináveis, não podendo essa determinação ser efectuada nos termos previstos no art.º 400º do C. Civil, que não se aplica a negó­cios de prestação de garantia.

IV - Se alguém garante o pagamento de uma determinada dívida é duma ele­mentar lógica que deva saber o que garante, pois só assim estará assegurado o cumprimento do grande princípio geral do direito civil da autodeterminação das partes contratantes.

V - Daí que as fianças conhecidas na praxis como fianças omnibus sejam consideradas nulas.

VI - Apesar de nas hipotecas o património que garante a satisfação dos crédi­tos se encontrar limitado a bens individualizados, estas também deverão ser conside­radas nulas se os créditos garantidos não forem minimamente determináveis à data da sua constituição.

VII - O n.º 2 do art.º 686º do C. Civil permite que as hipotecas garantam obrigações futuras. Mas essas obrigações, apesar de futuras, devem estar determina­das ou serem minimamente determináveis no momento da constituição da hipoteca.

VIII - A fixação de um tecto que limite o montante dos créditos garantidos é um modo eficaz do garante ter a noção da dimensão máxima do seu compromisso, face à impossibilidade de na altura se poder prever a dimensão exacta do crédito garantido futuro.

IX - Constando do título constitutivo da hipoteca, relativamente aos créditos por ela garantidos, a identidade do seu devedor, o limite máximo do seu valor e o tipo de relação negocial que os pode originar, não se pode dizer que os créditos garantidos não se encontravam minimamente determináveis à data da outorga dessa hipoteca.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa intentada pelo Exequente contra os Executados
vieram:
1 - O ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F..., reclamar o pagamento do seu crédito, no montante global de € 115.815,06 sobre a executada B..., alegando, em síntese:
Ø A executada deve a esta instituição as contribuições referentes aos meses de Fevereiro de 2005 a Junho de 2006, no montante de € 100.387,17.
Ø Às mencionadas contribuições acrescem juros de mora até integral pagamento, a calcular de acordo com o determinado no art.º 18º do DL 103/80, de 9.5, na redacção que lhe foi dada pelo DL 275/82 de 15.7.
Ø Os juros de mora vencidos até Novembro de 2006 são no montante de € 13.225,89.
Ø A executada pagou as contribuições referentes aos meses de Fevereiro, Maio e Junho de 2003; Fevereiro, Abril, Junho, Novembro e Dezembro de 2004 e Janeiro de 2005, depois da data fixada para o efeito, pelo que se constituiu em mora.
Ø Estes juros ascendem a € 2.202,00.

2 – O ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F..., reclamar o seu crédito no montante global de € 1.827,69, sobre a executada E..., alegando, em síntese:
Ø A executada por exercer actividade profissional por conta própria no distrito de F..., está abrangida pelo regime dos trabalhadores independentes, estando obrigada ao pagamento das suas contribuições próprias, incidentes sobre a remuneração convencionada, o que nem sempre cumpriu.
Ø Deve a executada ao reclamante as contribuições respeitantes aos meses de Junho de 2006 a Maio de 2007, no total de € 1.704,53.
Ø Estas contribuições deveriam ter sido pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, pelo que ao seu valor acresce o de juros de mora até integral pagamento, sendo de € 1.23,16 o valor dos vencidos até Julho de 2007.

3 - O ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F..., recla­mar o seu crédito no montante global de € 2.064,27, sobre a executada E..., alegando, em síntese:
Ø A executada por exercer actividade profissional por conta própria no distrito de F..., está abrangida pelo regime dos trabalhadores independentes, estando obrigada ao pagamento das suas contribuições próprias, incidentes sobre a remuneração convencionada, o que nem sempre cumpriu.
Ø Deve a executada ao reclamante as contribuições respeitantes aos meses de Junho de 2006 a Junho de 2007, no total de € 1.911,39.
Ø Estas contribuições deveriam ter sido pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, pelo que ao seu valor acresce o de juros de mora até integral pagamento, sendo de € 1.52,88 o valor dos vencidos até Agosto de 2007.

4 – O Banco G..., reclamar o paga­mento do seu crédito, no montante de € 446.348,56, acrescido dos juros vincendos até integral pagamento, contados à taxa contratual, sobre a C..., ale­gando em síntese:
Ø Em 29.8.05, o reclamante, a pedido de C..., emprestou-lhe a quantia de € 450.000,00, pelo prazo de 5 anos a contar da data da primeira actuali­zação, tendo sido o reembolso fixado em prestações trimestrais constantes e sucessi­vas de capital e juros.
Ø O mutuário liquidou duas rendas, encontrando-se vencidas e não pagas as referentes aos meses de Maio, Agosto e Novembro de 2006, Fevereiro e Maio de 2007.
Ø A dívida do mutuário ascende, na data da reclamação, ao montante de € 446.348,56.
Ø Com data de 9.8.05, através de escritura pública, os executados D...e E..., constituíram hipo­teca voluntária sobre o prédio urbano composto de casa de habitação de cave e rés do chão sito em X..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 41, a favor do reclamante para garan­tia de pagamento e liquidação de:
- todas e quaisquer obrigações e/ou responsabilidades assumidas e/ou assumir pela C...... , até ao montante global de € 750.000,00;
- dos juros, cuja taxa, para efeitos de registo se fixou em 10% ao ano, acrescida de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal;
- das despesas judiciais e extrajudiciais, computadas para efeitos de registo em € 30.000,00, elevando o montante de capital e acessórios garantido para € 1.950.000.00.
Ø  O prédio sobre que incide a hipoteca encontra-se penhorado.
Ø Nos termos do convencionado no documento complementar anexo à escritura, a penhora do prédio implica a exigibilidade imediata das obrigações que a hipoteca assegura.
Ø A hipoteca encontra-se registada a favor do reclamante.

5 – O Ministério Público, reclamar o pagamento de um crédito no valor de € 1814,85, sobre o executado D..., alegando:
Ø O executado com referência ao prédio penhorado sob a verba n.º 1 do auto de penhora, deve à Fazenda Nacional a quantia de € 1.814,85, respeitante ao IMI de 2005.

A..., veio impug­nar:
a) a reclamação de créditos apresentada pelo ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F..., relativamente aos cré­ditos por este reclamados com base nas contribuições vencidas nos períodos de Fevereiro de 2005 a Julho de 2006,  devidas pela B..., nos termos seguintes:
Ø A quantia peticionada a título de juros de mora devidos pelo paga­mento extemporâneo das contribuições, não se encontra abrangida pelo privilégio creditório estabelecido no art.º 11, do DL 103/80, de 9.5.
Ø Mesmo entendendo-se de forma diversa, sempre, apenas os referentes ao ano de 2005, no valor de € 200,17, estariam abrangidos na previsão do art.º 734º, do C. Civil.
Conclui, pedindo a não graduação daquele crédito no valor de € 2.202,00.

A esta impugnação respondeu o reclamante, defendendo que aquele cré­dito goza de privilégio imobiliário, não estando sujeitos ao limite temporal de dois anos.
Conclui pela improcedência da impugnação.

b) a reclamação de créditos apresentada pelo Banco G..., nos termos seguintes:
Ø Da leitura da escritura da constituição da hipoteca conclui-se que aquela visou tanto as dívidas da sociedade constituídas em momento anterior à sua outorga, como as surgidas em momento posterior.
Ø A jurisprudência tem entendido que a fiança das obrigações futuras é nula, orientação acolhida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2001, publicado no DR I-A-57 de 8 de Março, o qual decidiu:
É nula por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança das obrigações futuras, quando o fiador de constitua garante de todas as responsabilidades prove­nientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado interve­nha.
Ø A doutrina da fiança omnibus tem plena aplicação no domínio da hipoteca de obrigações futuras, e bem assim, no caso sub iudice, em que o crédito reclamado, foi constituído em momento posterior ao da constituição da hipoteca.
Ø Do teor da escritura da hipoteca – a qual não foi constituída para garantira especificamente os valores reclamados –, celebrada entre o Banco G... e os executados singulares – terceiros perante a dívida –, outra conclusão se pode retirar que não seja a da nulidade da parte que garante o pagamento de obrigações indeter­minadas, presentes ou futuras, da segunda.
Ø Não consta daquela escritura qualquer critério que permita determinar objectivamente, o âmbito das obrigações assumidas pela executada, pelo que não pode deixar de aplicar-se a sanção da nulidade.
Ø Um critério de determinabilidade não se basta com a mera fixação de um limite máximo e pela descrição exemplificativa das obrigações que o Banco tinha em mente assegurar, pois os negócios cambiários indicados na escritura da hipoteca em apreço fazem o dia-a-dia de uma instituição bancária, pelo que, sem uma concretização adicional, permanece indeterminável o objecto da garantia.
Ø Ignora a concessão e utilização pela executada C..., do crédito reclamado.
Concluiu pela improcedência da reclamação apresentada com funda­mento na nulidade da garantia real invocada, ou, subsidiariamente, por não provado o crédito reclamado.

A esta impugnação respondeu o reclamante, defendendo a validade da hipoteca.
Conclui pela improcedência da impugnação.



Veio a ser proferida decisão que julgou verificados todos os créditos reclamados, com excepção do reclamado pelo ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F... em relação à executada E..., no montante de € 1.827,69, por duplicação da reclamação, julgando impro­cedentes as impugnações apresentadas, concluiu do seguinte modo:
Assim, importa reconhecer os créditos reclamados, e graduá-los com preferência, sem prejuízo da precipuidade no que concerne às custas da presente execução – art.º 455 do código de processo civil.
Gozam os créditos provenientes de contribuições devidas à Segurança Social de privilégio mobiliário geral e imobiliário, de acordo com o disposto nos art.ºs 10 e 11 do dec-lei 103/80 de 9 de Maio, tendo em consideração a declaração de inconstitucionalidade do ac. Tribunal Constitucional 363/2002—D.R.16/10/2002-I-A . Ou seja, não preferem à hipoteca.
O crédito exequente tem registo de penhora.
O crédito reclamado pelo Banco G... tem a seu favor registo de hipoteca a qual, de harmonia com o disposto no art. 822º Cód. Civil, confere ao exequente, o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior e não goze de privilégio especial - art.º. 686 do C.C.
  Por seu turno, nos termos do disposto no artigo 751 do C.C. “os privi­légios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”.
Ora, no que concerne aos privilégios, na medida em que derivam direc­tamente da lei, sendo atribuídos em função da causa do crédito, eles surgem a partir do momento em que tal crédito se constitui.
O crédito reclamado pelo Mº.Pº.: de harmonia com o disposto no art. 744 do Cód. Civil, o Estado e as autarquias locais gozam de privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos por contribuição predial.
Em seguida e, em primeiro lugar procede-se ao pagamento do crédito agora reclamado pelo Mº.Pº.em representação da Fazenda Nacional e com garantia especial; em segundo lugar, pagar-se-á o credito garantido por hipoteca com registo anterior, do Banco G...; depois seguir-se-á o crédito reclamado pelo I.S.S. e por último o crédito reclamado pela exequente.

Sobre esta decisão recaiu pedido de reforma, tendo, na sequência do mesmo, sido esclarecido que os créditos se graduavam pela seguinte forma:
O crédito reclamado pelo Ministério Público relativo ao IMI, tem privi­légio imobiliário especial, e por isso prefere à hipoteca
A Fazenda Nacional para cobrança do IMI (DL 287/03 de 12.11), goza de privilégio creditório imobiliário especial, nos termos do disposto nos art.º 736º e 744º do C. Civil e art.º 122º, n.º 1, do CIMI, graduando-se pela ordem indicada nos art.º 748º e 751º, do C. C..
O imóvel penhorado como n.º 1 do auto de penhora de fls. 67, prédio urbano sito o Casal de Cortezes, inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o n.º 2653, tem registada a favor do Banco G... uma hipoteca.
O crédito da Fazenda Nacional, reclamado pelo Ministério Público reporta-se ao IMI desse mesmo prédio.
Ora, tendo em atenção o privilégio especial supra referido, e, relativa­mente a este imóvel, a graduação terá de o ser em primeiro lugar para o crédito do Mº Pº e em segundo lugar para oBanco G..., credor com garantia hipotecária e, só em terceiro lugar para o crédito do exequente, com registo de penhora.
Relativamente aos restantes imóveis penhorados, não recaindo sobre os mesmos garantia real ou privilégio especial, dos produtos das suas vendas pagar-se-ão em primeiro lugar os créditos reclamados pelo ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F... relativamente aos prédios e bens de cada um dos respectivos devedores (no caso a B... e E....) e depois o crédito do exequente.
Relativamente aos restantes bens, propriedade dos devedores, sem garantia ou privilégio, pagar-se-à o crédito da exequente.

                                             *

 Inconformada com esta decisão recorreu a Exequente, apresentando as seguintes conclusões:

1ª – Excluindo um dos imóveis penhorados (prédio urbano descrito sob o n.º 41/19850412 na C. R. de X...), a gradua­ção concretizada no presente processo reuniu numa só graduação, todos os créditos em concurso, sem específica consideração das responsabilidades de cada executado e dos bens cujo produto se destinará ao seu pagamento.
2ª – A sentença de verificação e graduação de créditos deveria ter des­trinçado quais os créditos por que responde cada grupo de bens penhorados e, bem assim, dividido a graduação com vista a permitir a concretização, a final, dos pagamentos aos credores; pelo que não o fazendo, a Douta Sentença acaba por extravasar o âmbito dos pedidos dos credores reclamantes e, deste modo, acaba ferida de nulidade, nos termos do art.º 668º, n.º 1, al. e).
 3ª – A reclamação de créditos apresentada pelo Banco G..., baseia-se numa hipoteca, dita de “obrigações futuras”, no âmbito da qual o critério de determinação das obrigações abrangidas pela mesma é definida, tão-só, com base no montante máximo a garantir, limitando-se a respec­tiva escritura a remeter o enquadramento de tais obrigações numa qualquer opera­ção de concessão de crédito no âmbito da prática bancária, pelo que não existe critério algum para determinar a exacta responsabilidade dos garantes dentro desse tecto estabelecido e até ele.
4ª – É nula por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obriga­ções futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.
5ª – Mutatis mutandis, por maioria de razão, para que se pudesse aceitar a validade de uma hipoteca de obrigações futuras, deveriam constar da escritura subjacente: um critério da origem ou natureza da dívida (as partes têm que circuns­crever no instrumento constitutivo da garantia a que tipo de dívidas é que a mesma se reporta); um critério de limitação temporal (fixação de um prazo durante o qual a garantia é válida, contribuindo-se assim para que o garante não passe um “che­que em branco” ao beneficiário); um critério de limitação quantitativa (estabeleci­mento de um limite ou plafond de crédito).
6ª – Inexistindo na escritura indicada pelo credor Banco G...., os dois primeiros critérios aludidos na conclusão anterior – imprescindíveis para a aceita­ção da validade da hipoteca de obrigações futuras – a garantia real invocada por tal credor não respeita os requisitos de determinabilidade constantes do art.º 280º do Código Civil e, desse modo, padece de nulidade.
7ª – Da nulidade da escritura de constituição de hipoteca, decorre que, ao credor reclamante Banco G... não assiste qualquer direito de créditos garanti­dos, passe-se a repetição, por garantia real (por nula), na sequência do que, em obediência ao disposto no art.º 865ºº, deve a sua reclamação ser julgada totalmente improcedente.
8ª – Pelo exposto, foram violados os artigos 280º, 400º, 654º, 686º, todos do Código Civil, bem como 661º, 664º e 668º, 865º, 868º, 867º e 868º, estes últimos do Código de Processo Civil.
Conclui pela procedência do recurso e, em consequência, pede a substi­tuição da decisão recorrida por outra que:
a) proceda à graduação separada dos créditos que foram reclamados sobre cada bem ou grupos de bens;
b) declare a nulidade da escritura celebrada entre o Banco G..., e os reclamados, indeferindo, consequentemente, o crédito reclamado por tal institui­ção de crédito por inexistência de garantia real que a suporte.

Pelo Banco G..., foram apresentadas contra-alegações, restritas à validade da hipoteca.

                                             *

1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações da recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A sentença é nula por extravasar o âmbito dos pedidos dos credores reclamantes, nos termos do art.º 668º, n.º 1, al. e), do C. P. Civil?
b) A hipoteca invocada como garantia do crédito reclamado pelo Banco G..., é nula?

                                             *

2. Da nulidade da sentença

Invoca a recorrente a nulidade da sentença por violação do disposto no art.º 668º, n.º 1, e), do C. P. Civil, alegando que a mesma extravasa o âmbito do pedido dos credores reclamantes, ao reunir numa só graduação todos os créditos em concurso, sem específica consideração das responsabilidades de cada executado e dos bens cujo produto se destinará ao seu pagamento.
Alega ainda que a sentença recorrida ao omitir quem são os responsáveis pelos créditos reclamados, que bens respondem e por que dívidas, faz com que a decisão de graduação seja imperceptível, devendo a mesma ter destrinçado quais os créditos por que responde cada grupo de bens penhorados e dividido a graduação.
Independentemente da qualificação do vício apontado à sentença recor­rida, o mesmo não se verifica, porquanto, na sequência do pedido feito, foi proferido despacho esclarecedor da primeira decisão proferida e que da mesma faz parte integrante.
Consta desse despacho:
O crédito reclamado pelo Ministério Público relativo ao IMI tem privilé­gio imobiliário especial e por isso prefere à hipoteca.
A Fazenda Nacional para cobrança do IMI (DL 287/03 de 12.11), goza de privilégio creditório imobiliário especial, nos termos do disposto nos art.º 736º e 744º do C. Civil e art.º 122º, n.º 1, do CIMI, graduando-se pela ordem indicada nos art.º 748º e 751º, do C.C..
O imóvel penhorado como n.º 1 do auto de penhora de fls. 67, prédio urbano sito o Casal de Cortezes, inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o n.º 2653, tem registada a favor do Banco G... uma hipoteca.
O crédito da Fazenda Nacional, reclamado pelo Ministério Público reporta-se ao IMI desse mesmo prédio.
Ora, tendo em atenção o privilégio especial supra referido, e, relativa­mente a este imóvel, a graduação terá de o ser em primeiro lugar para o crédito do Mº Pº e em segundo lugar para o Banco G..., credor com garantia hipotecária e, só em terceiro lugar para o crédito do exequente, com registo de penhora.
Relativamente aos restantes imóveis penhorados, não recaindo sobre os mesmos garantia real ou privilégio especial, dos produtos das suas vendas pagar-se-ão em primeiro lugar os créditos reclamados pelo ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F... relativamente aos prédios e bens de cada um dos respectivos devedores (no caso a B... e E...) e depois o crédito do exequente.
Relativamente aos restantes bens, propriedade dos devedores, sem garantia ou privilégio, pagar-se-à o crédito da exequente.

Pese embora a graduação dos créditos esteja efectuada de um modo pouco ortodoxo, o certo é que com algum esforço interpretativo se consegue perce­ber qual o conteúdo da decisão e a ordem de graduação, tendo presente que neste recurso não foi colocada em crise a decisão que julgou reconhecidos os créditos, com excepção daquele que se encontra garantido por hipoteca.
Assim, da leitura do excerto transcrito resulta:
- que o crédito reclamado proveniente de IMI e respeitante a imóvel pro­priedade do executado D..., bem como o crédito reclamado pelo Banco G..., e garantido por hipoteca, serão pagos pelo produto da venda daquele bem, dando-se pagamento, em 1º lugar ao crédito reclamado pelo Ministério Público; em 2º ao crédito reclamado pelo Banco G..., e em terceiro ao crédito do exequente.
- que pelo crédito reclamado pelo ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F... em relação à executada E..., respondem os bens imóveis e demais bens penhorados propriedade desta, graduando-se este crédito em primeiro lugar, seguido da quantia exequenda.
- que pelo crédito reclamado pelo ISS – Centro Distrital de Segurança Social de F..., em relação à executada B..., respondem os bens imóveis e demais bens penhorados proprie­dade desta, graduando-se, este crédito em primeiro lugar, seguido da quantia exe­quenda.
- que o produto da venda dos restantes bens penhorados propriedade de todos os executados, dará pagamento à quantia exequenda.
Daqui resulta que todos os bens penhorados foram considerados na gra­duação de créditos efectuada e apesar de não terem sido individualizados é perceptí­vel a sua identificação, tendo sido descriminados pela sua titularidade conjugada com o facto de sobre os mesmos incidir garantia real ou privilégio creditório.
Também decorre da leitura da decisão que foram considerados como reconhecidos todos os créditos nos precisos termos em que foram reclamados
Assim, conclui-se que a decisão considerou todos os bens penhorados, graduou todos os créditos que julgou reconhecidos e que correspondem a todos os que foram reclamados, e determinou pelo produto da venda de quais bens é que os mesmos serão pagos, pelo que não se verifica a deficiência que lhe foi apontada pela recorrente
 
                                             *

3. Da validade da hipoteca

Veio o Banco G..., reclamar o pagamento de um seu crédito, no montante de € 446.348,56, acrescido dos juros vincendos até integral pagamento, contado à taxa contratual, sobre C..., invocando que o mesmo se encontra garan­tido por hipoteca voluntária a seu favor, constituída por D....
A exequente defende a nulidade desta hipoteca por indeterminabilidade do seu montante.
Na sentença recorrida a hipoteca em causa foi julgada válida.

                                             *
Para aferir da validade desta garantia, importa ter presente a verificação dos seguintes factos:
1 – Por instrumento notarial de 9.8.2005, lavrado no Cartório Notarial de Pombal, onde compareceram D... e E..., como primeiros outorgantes, e H... , na qualidade de procurador e em representação do Banco G..., como segundo outorgante, foi por aqueles declarado:
Que para garantia do bom pagamento e liquidação:
1 – de todas e quaisquer obrigações e/ou responsabilidades assumidas e/ou a assumir pela sociedade com a firma C..., …, perante o Banco representado do segundo outorgante, por via de crédito bancário, concedido e/ou a conceder, por valores descontados e/ou adiantados e/ou por garantia bancá­rias prestadas e/ou a prestar em nome e a solicitação daquela sociedade, e designa­damente para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósitos à ordem, da subscrição de cheques, e/ou de livranças, do pagamento de fianças, e/ou avales, até ao montante global do capital de setecentos e cinquenta mil euros.
2 – Dos juros estabelecidos e/ou a estabelecer para quaisquer das opera­ções acima aludidas, que desde já se fixam para efeitos de registo predial até à taxa nominal de 10% ao ano, acrescidos de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal;
3 – De outros eventuais encargos e despesas judiciais e extrajudiciais não decorrentes da mora, incluindo honorários de advogados e solicitadores, que o Banco venha a fazer para cobrar os seus créditos, computadas para efeitos de registo em trinta mil euros, o que eleva o montante máximo de capital e acessórios garantido para um milhão e noventa e cinco mil euros;
O primeiro outorgante marido constitui a favor do Banco G..., que o segundo outorgante representa, hipoteca voluntária sobre o seguinte imóvel:
Prédio urbano, sito no X..., composto de casa de habitação de cave e rés-do-chão, descrito na Conservatória do Registo Predial de X... sob o número quarenta e um/..., e lá inscrito a favor do primeiro outorgante pela inscrição G, apresentação quatro, de vinte e dois de Julho de 2005, inscrito provisoriamente na respectiva matriz urbana sob o número 2653.
Pela primeira outorgante foi dito:
Que presta a seu referido marido o consentimento necessário para a constituição da presente hipoteca.
 ….
Que a presente hipoteca se rege por esta escritura e pelo documento complementar, elaborado nos termos do n.º 2, do art.º 64º, do Código do Notariado, que fica a fazer parte integrante desta escritura, cujo conteúdo eles outorgantes, nas respectivas qualidades em que outorgam, declararam conhecer perfeitamente, pelo que dispensam a sua leitura.
Pelo segundo outorgante na referida qualidade em que outorga foi dito:
Que para o Banco seu representado aceita a hipoteca ora prestada.

2 - Esta hipoteca voluntária a favor do Banco G..., encontra-se registada na ficha do prédio urbano composto por casa de habitação de cave e rés-do-chão, com área total de 14.190 m2, sito em X..., inscrito na matriz urbana da freguesia de ..... sob o art. 2653°, e descrito na Conservatória do Registo Predial de X..., na ficha n.º 41/..., desde 11.8.05, assegurando o montante máximo de € 1.095.000,00, para garantir todas e quaisquer responsabilidades e/ou obrigações assumidas ou a assumir pela sociedade C..., com sede em X... , à taxa de juro anual até 10%, acrescido de uma sobretaxa de 4% ao ano, e caso de mora; despesas € 30.000,00

3 – O crédito reclamado tem origem num contrato de mútuo celebrado em 29.8.05, entre o Reclamante e a sociedade C..., mediante o qual aquele lhe emprestou € 450.000,00, contrato esse que a mutuária incumpriu.

4 – O prédio sobre o qual incide a hipoteca encontra-se penhorado nos autos principais.

                                             *

Conforme consta do art.º 686º, n.º 1, do C. Civil, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Neste caso, D... hipotecou um imóvel para garantia do bom pagamento e liquidação de obrigações e/ou responsabilidades assumidas e/ou a assumir pela sociedade C..., perante o Banco G.... É a hipoteca de um bem para garantia da satisfação de dívidas passadas e futuras de terceiro.
Defende a exequente que estamos perante uma hipoteca global em que valem os mesmos argumentos que servem para considerar nula a fiança omnibus por constituir um negócio de objecto indeterminável, em que o crédito reclamado foi constituído em momento posterior ao da constituição da hipoteca, porquanto, em seu entender, não consta da escritura qualquer critério que permita determinar objecti­vamente, o âmbito das obrigações garantidas com a hipoteca.
Destinando-se a hipoteca a garantir o pagamento de créditos existe uma ligação incindível entre o direito de crédito garantido e o direito real de garantia, sendo aquele determinante para a conformação deste, pelo que se diz que a hipoteca é acessória do direito de crédito que garante [1].
Assim, a necessária determinabilidade do objecto de qualquer negócio jurídico – art.º 280º, do C. Civil – exige não só que os bens dados em hipoteca sejam individualizados no respectivo negócio constitutivo, como também o crédito ou créditos garantidos devam ser determináveis, não podendo essa determinação ser efectuada nos termos previstos no art.º 400º, do C. Civil, que não se aplica a negó­cios de prestação de garantia [2].
Se alguém garante o pagamento de uma determinada dívida é duma ele­mentar lógica que deva saber o que garante, pois só assim estará assegurado o cumprimento do grande princípio geral do direito civil da autodeterminação das partes contratantes.
Daí que as fianças conhecidas na praxis como fianças omnibus sejam consideradas nulas [3].
Apesar de nas hipotecas o património que garante a satisfação dos crédi­tos se encontrar limitado a bens individualizados [4], estas também deverão ser conside­radas nulas se os créditos garantidos não forem minimamente determináveis à data da sua constituição [5].
Voltando ao nosso caso verifica-se que a hipoteca garantia não só a satis­fação de créditos já constituídos, mas também créditos a constituir, ou seja créditos futuros.
O crédito aqui reclamado, com invocação da garantia da hipoteca impug­nada, tem data posterior à constituição da hipoteca pelo que é um crédito futuro relativamente a ela.
O n.º 2, do art.º 686º, do C. Civil, permite que as hipotecas garantam obrigações futuras. Mas essas obrigações, apesar de futuras devem estar determina­das ou serem minimamente determináveis no momento da constituição da hipoteca.
No título constitutivo da hipoteca estabeleceu-se que esta garantiria todas e quaisquer obrigações e/ou responsabilidades assumidas e/ou a assumir pela sociedade com a firma C..., perante o Banco representado do segundo outorgante, por via de crédito bancário, concedido e/ou a conceder, por valores descontados e/ou adiantados e/ou por garantia bancárias prestadas e/ou a prestar em nome e a solicitação daquela sociedade, e designadamente para garan­tia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósitos à ordem, da subscrição de cheques, e/ou de livranças, do paga­mento de fianças, e/ou avales, até ao montante global do capital de setecentos e cinquenta mil euros.
2 – Dos juros estabelecidos e/ou a estabelecer para quaisquer das opera­ções acima aludidas, que desde já se fixam para efeitos de registo predial até à taxa nominal de 10% ao ano, acrescidos de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal;
3 – De outros eventuais encargos e despesas judiciais e extrajudiciais não decorrentes da mora, incluindo honorários de advogados e solicitadores, que o Banco venha a fazer para cobrar os seus créditos, computadas para efeitos de registo em trinta mil euros, o que eleva o montante máximo de capital e acessórios garantido para um milhão e noventa e cinco mil euros”.
Relativamente à possibilidade do garante prefigurar os créditos futuros garantidos com a constituição da hipoteca, nomeadamente o crédito reclamado, da análise do título constitutivo da hipoteca constata-se em primeiro lugar que foi estabelecida a identidade do devedor – a sociedade C... – pelo que só créditos que tivessem esta sociedade como devedora é que poderiam fazer valer-se desta garantia.
Em segundo lugar, estabeleceu-se um limite máximo para o valor global dos créditos garantidos [6], sem que este valor se revele irrazoável. A fixação de um tecto que limite o montante dos créditos garantidos é um modo eficaz do garante ter a noção da dimensão máxima do seu compromisso, face à impossibilidade de na altura se poder prever a dimensão exacta do crédito garantido futuro [7]. O B.G.B. (§ 1190) prevê, inclusive, as chamadas hipotecas de máximoHöchstbetragshypotek –, as quais garantem créditos futuros, fixando-se apenas um limite máximo para estes créditos de conteúdo e montante perfeitamente indeterminado. Vaz Serra só não incluiu a previsão deste tipo de hipotecas no Anteprojecto do nosso C. Civil, por não ter sentido necessidade de uma especial regulação, estando a mesma abrangida pelas regras gerais da hipoteca [8].
Em terceiro lugar identificou-se, pela indicação de diversas operações bancárias, os negócios jurídicos de onde poderiam resultar os créditos garantidos, o que fornece ao garante os parâmetros necessários a que este possa ponderar o risco de funcionamento da garantia prestada.
Constando do título constitutivo da hipoteca, relativamente aos créditos por ela garantidos, a identidade do seu devedor, o limite máximo do seu valor e o tipo de relação negocial que os pode originar, não se pode dizer que os créditos garantidos não se encontravam minimamente determináveis à data da outorga da hipoteca, nomeadamente o crédito reclamado de que é devedora a sociedade Lena­Peças, L.da, que tem um montante contido no referido tecto e que resultou de um dos negócios incluídos na escritura de constituição de hipoteca – mútuo bancá­rio.
Deste modo se conclui que a hipoteca feita valer nesta reclamação não é nula por indeterminabilidade do crédito reclamado, pelo que deve ser julgado improcedente o recurso.

                                             *

Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto por A..., confirmando-se a sentença recorrida.

                                             *

Custas do recurso pela recorrente.


[1] Neste sentido Isabel Menéres Campos, em Da hipoteca, pág. 85 e seg, da ed. de 2003, da Almedina, Almeida Costa, em Direito das obrigações, pág. 946, da 11ª ed., da Almedina, Eduardo dos Santos, em Curso de direitos reais, pág. 15, da ed. pol. de 1986, da Universidade Livre de Lisboa, e Santos Justo, em Direitos reais, pág. 475, da ed. de 2007, da Coimbra Editora,     

[2] Neste sentido, relativamente à fiança, Januário Gomes, em Assunção fidejussiória de dívida, pág. 676-678, da ed. de 2000, da Almedina.

[3] Sobre este questão, por todos, Januário Gomes, na ob. cit., pág. 597 e seg..

[4] Note-se contudo que se tem defendido, que, em princípio, as fianças omnibus quando fica convencionado que a responsabilidade do fiador está limitada a um determinado bem não são nulas por indeterminabilidade do objecto. Vide, neste sentido Januário Gomes, na ob. cit., pág. 681.

[5] Neste sentido Isabel Menéres Campos, na ob. cit., pág. 103-114, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, em Garantias de cumprimento, pág. 201, da 4ª ed., da Almedina e os Acórdãos do T. R. Coimbra, de 16.11.04, relatado por Monteiro Casimiro, acessível em www.dgsi.pt , proc. n.º 2450/04, e do T. R. Porto, de 14.2.07, relatado por Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt , proc. n.º 0636941.


[6] A fixação deste valor máximo é, aliás, exigida, para registo da hipoteca, pelo Código de Registo Predial.

[7] Sustentam que essa indicação é suficiente para que o objecto duma hipoteca global de créditos futuros não possa ser considerado indeterminável, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, na ob. cit., pág. 201-202, e os Acórdãos do T. R. Coimbra, de 16.11.04, relatado por Monteiro Casimiro, proc. n.º 2450/04, do T. R. Porto, de 14.2.07, relatado por Pinto de Almeida, proc. n.º 0636941, e do T. R. de Lisboa de 4.12.07, relatado por Rui Moura, proc. nº 8524/2007 – 1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[8] Denuncia esta opção em Hipoteca, no B.M.J. n.º 62, pág. 60-62.