Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
296/06.4TBSRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 09/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1353º DO CÓD. CIVIL E 7º DO CÓD. DO REGISTO PREDIAL
Sumário: I. A acção de demarcação tem como pressuposto o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio cuja demarcação se pretende; No entanto, a finalidade específica da acção não é o reconhecimento desse direito, mas fazer funcionar o direito que o proprietário tem de obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre os prédios (1353º, do Cód. Civil).

II. Atenta a natureza e função do registo – essencialmente declarativa e não constitutiva – a presunção do art.º 7 do Cód. do Registo Predial não abrange os elementos descritivos alusivos ao prédio (área e confrontações).

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

A... e esposa B.... , residentes no lugar de .... , .... , concelho de Pombal , intentaram a presente acção contra C... e esposa D..., residentes no lugar ... , freguesia de .... , concelho de Soure, pedindo :

a) que se declare os autores como únicos e exclusivos proprietários do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure sob o nº 00908 da freguesia de Degracias, composto dos artigos rústicos 1742 e 1743 e dos urbanos 361 e 397 (sendo que o prédio urbano já se encontra inscrito na matriz respectiva sob um único artigo que é o 552) , todos da mesma freguesia;

b) que se declare que os autores adquiriram a propriedade plena do referido prédio por meio de usucapião, em virtude de por eles mesmos e seus antepossuidores terem exercido actos de posse contínua, pacífica, de boa fé, pública e titulada e na convicção de serem os únicos proprietários durante 49 anos seguidos;

c) que seja “declarado que o prédio dos autores supra identificado, no artigo 4 desta p.i.é constituído em parte, no espaço, área e localização, por uma parcela de terreno com a área de 418º m2, que confina do lado nascente com o prédio dos Réus identificado no doc. Nº 6, adquirida pelo falecido pai do autor através da escritura pública junta sob o doc. Nº 5, que corresponde ao antigo artigo matricial rústico 1743, (em que por lapso o notário escreveu o nº 1745) sendo que esta parcela faz parte integrante do prédio dos autores, nele se tendo incorporado desde a data da referida escritura pública”

d) que se declare “que o prédio dos autores supra identificado mantém a área actual, e, por conseguinte as respectivas delimitações de todos os lados inalteradas desde o dia dez de Setembro de 1957 data da escritura pública junta sob o doc. Nº 5, em que foi adquirido o rústico correspondente ao antigo 1743, encostado ao 1742, e identificado no artigo 4 desta p.i.passou a ter a área e delimitações que tem hoje.”

e) que se declare que a estrema entre o prédio dos autores e o prédio dos réus se faz através de seis marcos de pedra implantados no solo, durante 49 anos consecutivos, ao longo da estrema no sentido Sul /Norte nos locais assinalados na planta que juntam, devendo, em consequência, serem recolocados aqueles que se verificarem em falta;

f) que se condene os réus a reconhecer o que consta nos pontos antecedentes;

g) que se condene os réus a absterem-se de praticar qualquer acto lesivo da propriedade dos autores, seja de intromissão no citado prédio dos autores, seja de destruição do que aí se encontre;

h) que se condene os réus a absterem-se de praticar quaisquer actos de alteração da estrema, ou de alteração dos marcos existentes e que venham a ser repostos para demarcação da mesma entre o prédio deles e o prédio dos autores;

i) que se declare que os réus são civilmente responsáveis pelos danos morais causados aos autores e sofridos por estes como consequência directa e necessária dos diversos actos de esbulho praticados pelos réus ou sob as ordens destes no prédio dos autores;

j) que se condene os réus a pagar a cada um dos autores a quantia de 2.500 euros a título de indemnização pelos danos morais sobreditos .

Para fundamentar a sua pretensão alegam, em síntese, serem proprietários exclusivos de um prédio, que identificam, antes constituído pelos artigos matriciais rústicos 1742 e 1743 e pelos urbanos 361 e 397, e após anexação, pelo artigo rústico 2564 e pelo urbano 552, descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure a favor do autor marido, prédio adquirido por partilha da herança de E... e marido F... . Por sua vez, o pai do autor adquiriu parte desse prédio por compra a G... e mulher. Os réus são possuidores de um prédio rústico inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1744 , que confronta com o prédio dos autores, nomeadamente com a parcela do prédio destes constituída pelo artigo matricial rústico 1743 . O pai do autor, antes da aquisição do artigo rústico 1743, a fim de construir o forno maior , pediu a G... e à mulher deste autorização para prolongar o bico do forno cerca de 30 cm no terreno deles, o que foi autorizado, pelo que, após aquela aquisição, o forno do pai do autor passou a estar integralmente na sua propriedade. Do bico do forno até à estrema com o prédio dos réus, o prédio dos autores possui cerca de 6 metros de largura por cerca de 73m de comprimento no sentido Sul/Norte. Desde 1957 a estrema entre os prédios era demarcada por 7 marcos em pedra colocados de alto a baixo no sentido Sul/Norte, partindo do caminho público, conforme croquis que juntam. Em Novembro e Dezembro de 2005, os réus, ou alguém com o seu consentimento, arrancaram e destruíram marcos, destruíram arbustos, flores, árvores e pedras e alagaram um muro em pedra e cimento situado no terreno dos autores, junto ao caminho. Em consequência , os autores sentiram grande desgosto, consternação, humilhação, constrangimento, arrelias, noites sem dormir e depressão .  

Os réus contestaram, invocando que o bico do forno do imóvel dos autores sempre esteve em terreno dos réus, que na estrema entre os dois prédios apenas existiam dois marcos e que os réus nunca praticaram quaisquer actos sobre o prédio dos autores.

Em reconvenção pedem :

l) que se declare que a linha divisória entre os dois prédios une dois pontos : um situado a cerca de 9,10 m da esquina do forno da casa dos autores, a 16,30 m do ponto mais próximo da linha divisória com o prédio vizinho a Nascente, e a cerca de 68 m do ponto mais próximo situado no limite de ambos os prédios a Norte; e o outro ponto situado no limite Norte de ambos os prédios, junto à parede que os delimita com o prédio vizinho, a cerca de 68 m do ponto anterior e a cerca de 4,80 m do ponto mais próximo encontrado na linha divisória do prédio dos réus com o prédio vizinho a Nascente ;

m) que se condene os autores reconvindos a reconhecer a linha divisória acima definida e a permitir que os réus, os autores ou alguém a seu mando possam colocar dois marcos nos pontos definidos.

Em suma, alegam que o prédio inscrito na matriz predial da freguesia de Degracias sob o artigo 1744 veio à posse dos réus por herança de H... e mulher E..., pais do réu marido, por escritura pública de partilhas de 20/2/75; que os réus, desde há mais de 20 anos, directamente ou por outras pessoas a seu mando, procederam à limpeza de mato e ervas daninhas nesse prédio, fizeram o terreiro e mondaram as árvores, colheram a azeitona e mato, de forma continuada, à vista de toda a gente, sem oposição e na convicção de serem os seus únicos e legítimos donos; que a linha divisória entre o prédio dos réus e dos autores, há mais de 20 anos que vinha sendo por todos respeitada e passava por dois pontos: por um ponto onde em tempos se conheceu um marco, junto à parede que limita os terrenos a Sul com o caminho, a cerca de 9,10 m da esquina do forno da casa dos autores e a cerca de 16,30 m do ponto mais próximo da linha divisória com o prédio vizinho a Nascente e a cerca de 68 m do ponto mais próximo situado no limite de ambos os prédios a Norte; e por outro ponto situado no limite Norte de ambos os prédios, junto à parede que os delimita com o prédio vizinho, o qual se situava a cerca de 68 m do ponto anterior e a cerca de 4,80 m do ponto mais próximo encontrado na linha divisória do prédio dos réus, com o prédio vizinho.

Os autores responderam, impugnando a factualidade alusiva ao pedido reconvencional.

Foi proferido despacho saneador e elaborada base instrutória, que sofreu reclamação, parcialmente atendida.

Procedeu-se a julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações.

Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:

“Por todo o exposto, julgo procedentes a acção e a reconvenção no que toca à necessidade de fixação da linha divisória entre os prédios, mas ambas improcedentes no que se refere à indicação feita pelas partes nos respectivos articulados, pelo que:

- declaro os AA. como únicos e exclusivos proprietários do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure sob o nº 00908 da freguesia de Degracias , composto dos artigos rústicos 1742 e 1743 e dos urbanos 361 e 397 (sendo que o prédio urbano já se encontra inscrito na matriz respectiva sob um único artigo que é o 552), que adquiriram por meio de usucapião, o qual é constituído em parte por uma parcela de terreno que confina do lado Nascente com um prédio dos RR., que corresponde ao artigo matricial rústico 1743, adquirido pelo falecido pai do A. através de escritura pública datada de 10/9/57, data a partir da qual o prédio mantém as mesmas delimitações inalteradas;

- procedo à demarcação entre os prédios identificados nos pontos 1 e 7 dos factos provados, nas suas confrontações nascente e poente, respectivamente, nos seguintes termos: a linha divisória é constituída por um segmento de recta situado ao meio da faixa de terreno que é delimitada, a nascente, pela linha divisória indicada pelos AA. na planta de fls. 46, e a poente, por um segmento de recta paralelo à linha divisória indicada pelos RR. no croquis de fls. 104 mas situado no exterior da parede do forno da casa dos AA..

Custas da acção e da reconvenção pelos AA. e pelos RR., em partes iguais .

Registe e notifique”.

Não se conformando, os autores e réus recorreram, sendo o recurso dos réus subordinado.

Os autores formulam, em síntese, as seguintes conclusões:

 “A - A sentença recorrida padece do vício de omissão de pronúncia, porque não se pronúncia sobre dois dos pedidos de reivindicação de propriedade formulados pelos Autores, violando desta feita o disposto no artigo 660º, nº 2 do Código de Processo Civil, e consequentemente ser declarada nula face ao disposto no artigo 668º, nº 1- d) do código de Processo Civil.

B- A sentença, no respectivo ponto 11 da matéria provada contém ainda outra causa de nulidade que é a contradição na respectiva fundamentação gerada pela forma incorrecta e equívoca, também prejudicial para os autores, como está escrito esse ponto, (ao dizer que o pai do A A... pediu autorização para prolongar o bico do forno aos antecessores do terreno dos Réus, quando esta matéria já tinha sido objecto de reclamação e de correcção e ficou sobejamente provado que foi ao seu próprio antecessor da parcela de terreno que hoje é do Autor, foi ao G... que o pai do A A... pediu autorização e que não foi poara prolongar o forno para o terreno dos Réus). Assim o ponto 11 da matéria provada está em contradição com os pontos 15 e 16, sendo que a oposição entre a fundamentação, e entre esta e a decisão, como é o caso, gera a nulidade da sentença , conforme prevê o artigo 668º nº 1 c) do Código de Processo Civil.

C- A sentença também não contém a análise crítica das provas, o que constitui falta de fundamentação legalmente exigida, e causa de nulidade da sentença face ao disposto no artº 668º nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil.

D- A sentença recorrida, além de se ter alheado e de não ter apreciado parte da prova documental e parte da prova testemunhal efectivamente produzidas pelos Autores, mesmo no pouco que apreciou e decidiu, possui escassa e deficiente fundamentação não fazendo análise crítica das provas, nem a subsunção às regras aplicáveis, limitando-se a apreciar, em abstracto, a questão da demarcação, pelo que sendo a falta de fundamentação causa de nulidade, também esteve vício conduz à nulidade da sentença, violando esta tal como se apresenta regras de direito processual civil e de direito constitucional, nomeadamente as seguintes:- artigo 659º, nº 3 do Código de Processo Civil e o artigo 205º da Constituição da República Portuguesa (CRP). A fundamentação deficiente é causa de nulidade face ao disposto no artigo 668º, nº 1, b) do Código de Processo civil.

E- A violação do artigo 205º da CRP, e a omissão de pronúncia são causas de nulidade que conduzem automaticamente à violação do artigo 20º da CRP, porque constituem negações explícitas do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva. Ou seja, a sentença recorrida viola o direito dos autores à tutela jurisdicional efectiva, e viola o artº 20º da CRP, o que constitui, por si só, causa de nulidade da douta sentença recorrida.

E) A decisão recorrida padece de alheamento total à prova testemunhal produzida pelos autores, bem patente nos depoimentos das testemunhas dos autores cujas transcrições se juntam quase na íntegra para facilitar a melhor e mais rápida percepção por parte dos Venerandos Desembargadores;

F) A decisão recorrida não apreciou nem tomou em consideração a certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Soure referente à característica e dimensões da parcela de terreno reivindicada pelos Autores na sua totalidade anteriormente correspondente ao artigo matricial 1743.

G- Pontos de facto da Base instrutória incorrectamente julgados:

Ponto 1- contrariamente ao decidido, dever ser provado, porque a prova documental abunda e ficou provado que o prédio dos Autores já é do tamanho que tem agora há mais de 40 anos. Encontra-se descrito na conservatória com a área que de facto possui, tudo com base em documentos legais, e não foi provado que tem outra área diferente daquela que está provada nos documentos, consequentemente tem a área que consta dos documentos

H - Ponto 2 a que corresponde o quesito onde se pergunta se a parte do prédio que anteriormente correspondia ao artigo 1743 tem a área de 418m2, foi incorrectamente julgado, e a resposta correcta deve ser “provado”, com base na prova produzida pelo documento das Finanças, e na prova produzida pelos depoimentos das testemunhas I... (e não Nogueira), depoimento gravado na cassete 3, rotações 758 até final do lado A, todas as rotações do Lado B, e ainda cassete 4 rotações 001 a 1531 do lado A, conforme acta de Julgamento de 24/07/2007, e J... , cujo depoimento está gravado na cassete 2, lados A e B, e cassete 3 do lado A rotações 768, conforme acta de julgamento de 24/07/2007, filhas daquele que vendeu a parcela ao pai do Autor e que disseram que o talho do Autor tem a mesma dimensão do terreno do Réu, ou seja, porque eram “sortes de herdeiros iguais”, eram lotes iguais, um era do Manuel e outro do H....

I- Se em “G” da matéria assente consta área do prédio dos Réus como sendo de 418 m2,  e se essa indicação, tal como a da área do parcela de terreno dos Autores confinante com este, vigorou tantos anos, sem que tenha sido provado o contrário, não se compreende porque é que agora um Tribunal dizer que não se provou a área.

J- Ainda que de outra forma os autores não tivessem adquirido a propriedade sobre a parcela de terreno correspondente ao que foi o artigo matricial 1743, com a área de 418m2, sempre o teriam adquirido por usucapião, por terem sempre feito uso dessa parcela em toda a sua extensão, desde que foi adquirida pelo pai do Autor em 1957, conforme provado pelos depoimentos das testemunhas parcialmente transcritos em anexo, para os quais se remete.

L- A área da parcela em causa foi dada por não provada  porque em dada altura os Réus alegaram que os documentos eram feitos com base nas declarações de quem os fazia! Pois, mas essas declarações ao fim de vinte anos transformam-se em direitos adquiridos, e os documentos devem ter algum valor. Porque se for como a Meretíssima juiz entendeu, ninguém pode estar seguro de ser dono de alguma coisa. Basta que outro diga que os documentos que tem se baseiam em meras declarações de quem os fez!

M - O ponto 8º da base instrutória (distância entre o bico do forno e a estrema com os Réus) foi incorrectamente julgado ao ser dado como não provado. Deveria ser dado como provado no mínimo em 5 (cinco) metros, de acordo com a prova produzida pelos depoimentos de diversas testemunhas dos Autores, bem conhecedoras do local e que depuseram de forma isenta. Foram elas as testemunhas I..., J..., (cujos depoimentos se encontram nas cassetes já em cima identificadas, e ainda as testemunhas L... referiu 5 metros (cassete 4, todas as rotações do lado B, lado A 1531 até final, e cassete 5 lado A rotações 001 a 790 conforme acta de julgamento de 24/07/2007 ,M..., referiu serem 5 a 6 metros (cassete 1 lados A e B, conforme acta de julgamento de 24/07/2007),

N – A prova efectivamente produzida, documental e testemunhal, já em cima devidamente identificada, é mais do que suficiente para julgar procedente o pedido de reivindicação de propriedade dos Autores, pedido feito autonomamente relativamente à parcela de terreno em causa, devendo estes ser declarados como proprietários dessa parcela de terreno, com exclusão, d’outrém e a área da mesma como sendo de 418m2.

O- Evidentemente que tal parcela, conforme ficou sobejamente provado faz parte integrante do prédio dos AA identificado em 1 da matéria assente.

P– A Delimitação da estrema entre o prédio dos Autores e o dos Réus deve ser determinada em consequência do prévio reconhecimento dos Autores como proprietários da parcela em causa, confinante com os Réus, e pelos limites desta, também provados.

Q- Consequentemente, e face a todo o exposto não existem dúvidas sobre a propriedade da parcela de terreno em discussão que é por inteiro dos Autores.

R- A estrema entre o prédio dos Autores e o dos Réus deve ser demarcada com base em toda a prova produzida e com base na procedência do pedido de reivindicação de propriedade dos autores relativo à parcela de terreno correspondente ao artigo matricial 1743.

S- Por conseguinte atendendo à prova produzida pelos depoimentos das testemunhas filhas do G...- I... e J..., e ainda M... e L..., e N..., conhecedoras e frequentadoras da parcela em causa, a estrema entre esta e o terreno dos Réus, dado o desaparecimento dos marcos, mas porque é possível determiná-la com um risco de erro mínimo deve ser declarada como sendo à distância máxima de um metro da esquina do alpendre junto ao caminho a Sul, e depois enviesa para poente ficando distanciada da ponta do forno 5 metros e setenta centímetros (6 metros menos 30 cms que já eram ocupados pelo bico do forno) e deve seguir para Norte sendo ao fundo determinada sempre a nascente da oliveira antiga que lá está, e desde que entre estes pontos e 30 cms atrás do bico do forno estejam 418m2. ou seja, a estrema pode ser traçada apenas com os referidos pontos, tendo como ponto de referência a área total da parcela dos Autores”.

Os réus formulam as seguintes conclusões.

“A) Os pontos 7, 8, 11, 15, 16 e 20, da matéria de facto são contraditórios entre si.

 B) O teor do ponto 6 da matéria de facto deverá ser alterado de acordo com o teor do documento que o suporta e reproduz, ou seja:

Mediante escritura pública lavrada em 10 de Setembro de 1957 no Cartório Notarial de Soure, F..., pai do autor A..., adquiriu parte do prédio referido em 1, por compra a G... e mulher, prédio esse correspondente ao antigo artigo 1743 da matriz predial rústica, e que ali se encontra descrito como terra de semeadura no sítio da Eira Velha, limite das Mocifas de Santo Amaro, confinante do Norte com João Cardoso, do Sul com caminho público, nascente com António Moreira e Poente com Manuel dos Santos Miguel.

C) A resposta ao quesito 5º A da Base Instrutória, que foi respondido Provado, deverá ser alterada para: Não Provado. 

D) A resposta ao quesito 6º da Base Instrutória, que foi respondido Provado, deverá ser alterada para: Não Provado. 

E) A decisão sub judice defrauda o contrato que subjaz ao normativo ínsito no art. 1354º, nº2 do C.C.: ou se logra determinar os limites dos prédios, com base nos títulos, na posse ou por outro meio de prova; ou não se logra tal determinação, hipótese em que se distribui o terreno em litígio em partes iguais.

F) Definitivamente a norma que, sendo excepcional, sequer comporta derivações por analogia, não admite soluções mitigadas, como aquela que é preconizada pelo Tribunal a quo: determinação dos limites prediais até um certo ponto (30 cm para além do bico do forno) e indeterminação a partir desse ponto…

G) A aplicação que o Tribunal a quo faz do nº2 do art. 1354 do C.C. implicou que o modo como se procedeu à demarcação prejudicasse os RR. por duas vezes porquanto estes se confrontam com uma decisão que, a uma parte e em seu desfavor, determina os limites do prédio dos AA, dentro do terreno em litígio para, depois, sonegando a faixa assim determinada à lide, redefinir um novo litígio e faixa de terreno que, agora à razão de indeterminação dos limites prediais, vai, finalmente, distribuir em duas partes iguais.

H) Ao julgar assim o Tribunal a quo mais do que fazer da norma ínsita no art. 1354º, nº2 do C.C. uma aplicação que a mesma teleologicamente não consente, violou a letra e espírito dessa norma.

I) Impondo-se, pois, acolhidos os argumentos da presente apelação, revogar a douta sentença no sentido da divisão, em partes iguais, a faixa de terreno em litígio, sem qualquer prévia correcção da linha divisória alegada pelos RR.”                   

Os autores apresentaram contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu por provada a seguinte factualidade, aditando esta Relação a respectiva proveniência:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure sob o nº 00908, a favor do autor A... o prédio rústico ali descrito como sendo composto de terra de semeadura com oliveiras e mato e casas de arrumação, com a área de 1.210 m2 , situado no lugar de Eira Velha  Mocifas de Santo Amaro, freguesia de Degracias, concelho de Soure, e que confronta a Norte com José Augusto Chícharo, Sul com Manuel dos Santos Miguel, do Nascente com João Cardoso e outro e Poente com caminho público, correspondente aos artigos matriciais rústicos 1742 e 1743 e aos artigos urbanos 361 e 397 (alínea A) dos factos assentes).

2. Encontra-se igualmente averbada a aquisição desse prédio a favor do autor marido, referido como sendo casado no regime da comunhão geral com a autora mulher, por partilha por herança de E... e marido F... (alínea B) dos factos assentes).

3. Os prédios anteriormente descritos na matriz rústica sob os artigos 1742 e 1743, correspondem actualmente ao artigo 2564 da mesma matriz predial rústica (alínea C) dos factos assentes).

4. E os artigos da matriz urbana nº 361 e 397 deram origem ao artigo matricial urbano nº 552 (alínea D) dos factos assentes).

5. Por escritura pública de partilha por óbito de E... outorgada em 9 de Junho de 1999 no Cartório Notarial de Soure, lavrada a folhas 36 do Livro 171-C , foi adjudicado ao autor A... o prédio referido no ponto 1 (alínea E) dos factos assentes).

6. Mediante escritura pública lavrada em 10 de Setembro de 1957 no Cartório Notarial de Soure, F..., pai do autor A..., adquiriu parte do prédio referido no ponto 1, por compra a G... e mulher, prédio esse correspondente ao antigo artigo 1743 da matriz predial rústica, e que ali se encontra descrito como terra de semeadura situada na Eira Velha, confinante do Norte com João Cardoso, Sul com caminho público, nascente com Manuel dos Santos Miguel e Poente com o comprador, ou seja, com o próprio pai do autor, F... (alínea F) dos factos assentes).

7. Aos réus pertence o prédio rústico inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1744 e ali descrito como sendo composto por terra de semeadura e mato, com duas oliveiras, localizada no lugar de Eira Velha, freguesia de Degracias, concelho de Soure, que confronta do Norte com João Cardoso, do Sul com caminho público, do nascente com G... e do poente com Encarnação Santos Moreira, ora com os autores, e ali descrito igualmente como tendo a área de 418 m2 (alínea G) dos factos assentes).

8. Os prédios referidos nos pontos 1 e 7 confrontam entre si, confrontando ainda ambos com o mesmo caminho público e são paralelos relativamente um ao outro (alínea H) dos factos assentes).

9. O réu marido recebeu o prédio referido no ponto 7 por herança de H... e mulher, mediante escritura de partilha outorgada em 20 de Fevereiro de 1975 no Cartório Notarial de Soure (alínea I) dos factos assentes).

10. O prédio dos réus confronta com o dos autores pela parcela que correspondia ao artigo matricial 1743 (alínea J) dos factos assentes).

11. A fim de construir um forno, junto à estrema do prédio referido no ponto 1 que na altura confinava com G..., o pai do autor A... pediu autorização para prolongar o bico do forno, de modo a que este ocupasse cerca de 30 cm do terreno referido no ponto 7 (alínea L) dos factos assentes).

12. O prédio dos autores, referido no ponto 1, é composto de terreno e casa de habitação (resposta ao quesito 1º).  

13. A parcela desse prédio que correspondia ao artigo matricial 1742 era formada pela junção de vários terrenos adquiridos pelo falecido pai do autor A... (resposta ao quesito 3º).

14. Desde 1957, data da escritura a que se alude no ponto 6, que o prédio referido no ponto 1 tem a mesma compleição (resposta ao quesito 5º).

15. A autorização referida no ponto 11, para prolongar o bico do forno, foi pedida pelo pai do autor A... a G... e mulher (resposta ao quesito 5ºA).

16. O prédio a que pertence a parcela de terreno ocupada pelo pai do autor A... com a construção da ponta do forno a que se refere o ponto 11, foi adquirida por este a G... e mulher mediante a escritura pública referida no ponto 6 (resposta ao quesito 6º).

17. As parcelas de terreno dos autores e dos réus são mais estreitas ao fundo, a Norte, do que junto do caminho público (resposta aos quesitos 7º e 19º).

18. Em finais do ano de 2005 foram arrancados marcos colocados pelo autor e foram destruídas plantas existentes numa parcela de terreno que os autores entendem pertencer ao prédio referido no ponto 1 e foi derrubado parte de um muro paralelo ao caminho público que havia sido construído pelo autor, tendo alguns pedaços dos marcos e das plantas sido colocados num degrau da casa dos autores (resposta aos quesitos 11º a 14º).

19. Com o que consta no ponto anterior, os autores têm sofrido desgosto e consternação, vivem nervosos e sobressaltados, o que lhes tem provocado noites mal dormidas (resposta ao quesito 15º).

20. Desde há mais de 49 anos até esta data que os autores, por si e por aqueles a quem antes deles o terreno referido no ponto 1 pertenceu, vêm cultivando esse terreno, e actuando como se donos desse prédio se tratassem, convictos de não lesarem direitos de terceiros, à vista de todos e sem oposição de ninguém (resposta ao quesito 16º).

21.Os prédios de autores e réus confrontam entre si do lado Nascente/Poente (resposta ao quesito 17º).

22. Desde a data da escritura referida no ponto 9 e até à presente data, sem interrupções, que os réus, por si e por intermédio de outras pessoas a seu mando, procedem à limpeza do mato do prédio referido no ponto 7 e colhem a azeitona das oliveiras ali existentes (resposta ao quesito 20º).

23. O que fazem à vista de todos e sem que ninguém tivesse deduzido qualquer tipo de oposição, convictos de serem donos desse terreno e de não lesarem direitos de qualquer pessoa (resposta ao quesito 21º).

24. A linha que separa o prédio dos réus do situado a Nascente dele coincide com uma vedação em rede ali existente e é respeitada há mais de 20 anos pelos réus e pelos seus vizinhos (resposta aos quesitos 25º e 29º).

25. Há mais de 20 anos que o terreno dos autores é lavrado e semeado desde o limite da construção nele existente até ao seu limite Norte (resposta ao quesito 26º).

26. Sendo que o terreno dos réus desde há mais de 20 anos que não é lavrado nem semeado (resposta ao quesito 27º).

III- FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes – os réus recorreram subordinadamente – e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar, fundamentalmente:

- da nulidade da sentença;

- do erro no julgamento da matéria de facto; 

- dos pressupostos da demarcação.

2. Os autores sustentam que a sentença da 1ª instância incorre em nulidade, por omissão de pronúncia (art. 668º, nº1, al) d ), por contradição entre a factualidade assente entre si e entre esta e a decisão (art. 668º, nº1, al) c) e, por último, por falta de fundamentação (art. 668º, nº1, al) b). Vejamos.

                                             *

Os autores invocam que a acção proposta é uma acção que tem “uma dupla função”, com “duas causas de pedir independentes”, constituindo uma acção de “reivindicação e de demarcação” e que a Sra. Juiz não conheceu dos pedidos supra indicados sob as alíneas c) e d), pedidos alusivos à parcela de terreno que correspondia ao artigo matricial nº 1743 e alegadamente constituída por uma parcela de terreno com a área de 418 m2.

Na sentença recorrida a Sra. juiz começa referindo que pelos “pedidos formulados nos autos, conclui-se que as partes pretendem a demarcação dos seus prédios”, após o que passa a apreciar a natureza da acção de reivindicação versus a acção de demarcação.

Pela estrutura da decisão e fundamentação de direito aí expressa, é notório que a Sra. juiz considerou estarmos, verdadeiramente, quer por banda dos autores quer por banda dos réus (que deduzem reconvenção), perante uma acção de demarcação. E entendeu bem.

Na acção de reivindicação – acção de condenação, nos termos do art. 4º, nº2, al) b –, a pretensão real é a da entrega da coisa e, se bem que a actividade jurisdicional também se possa dirigir à apreciação da existência do direito, essa apreciação é, essencialmente, pressuposto do conhecimento da pretensão material formulada e que se prende com aquela entrega (art. 1311º, nº1 do C.Civil). [ [1] ]

 “Como já deixámos antever, reúnem-se nas acções de condenação dois juízos: um de apreciação – implícito – e outro de condenação – explícito. O tribunal não pode condenar o eventual infractor sem que antes se certifique da existência e violação do direito do demandante. Simplesmente as duas operações – apreciação e condenação – não gozam de independência”. [ [2] ]

Ou seja, “a vertente condenatória parece prevalecer sobre a declaratória”. [ [3] ]

Daí a dificuldade na delimitação entre a acção reivindicação e a acção de demarcação nos casos em que, como acontece na hipótese em apreço, estamos perante a actio finium regundorum, ou seja, uma acção que tem por finalidade a fixação/determinação das estremas dos prédios confinantes, quando haja dúvidas acerca dos limites de cada um – e por confronto com a acção de demarcação destinada apenas à colocação de marcos nas estremas. [ [4] ]

Neste tipo de acções a causa de pedir é complexa – a existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou duvidosas –, pressupondo-se o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio cuja demarcação se pretende. Mas a finalidade específica da acção não é o reconhecimento desse direito de propriedade, mas fazer funcionar o direito do proprietário de obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio – 1353º, do Cód. Civil.

Neste contexto, inexiste qualquer omissão de pronúncia por parte do tribunal, sendo a questão de mera interpretação e análise dos pedidos formulados pelos autores e causa de pedir invocada.

                                             *

Mesmo que assim se não entendesse, sempre consideraríamos que, no caso, não se omitiu o conhecimento de qualquer pedido formulado pelos autores e muito menos se alterou a estrutura da acção apresentada na petição inicial, mormente fazendo “tábua rasa das questões de reivindicação propostas pelos autores”, como estes referem nas alegações de recurso.

Pode ler-se na decisão:

“No caso em apreço provou-se que os AA. são proprietários do prédio rústico sito em Eira Velha, Mocifas de Santo Amaro, freguesia de Degracias, concelho de Soure , constituído por terra de semeadura com oliveiras e mato e casas de arrumação , que se encontra inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 2564 e na respectiva matriz urbana sob o artigo 552 , anteriormente inscrito sob os artigos 1742 e 1743 (rústicos) e 361 e 397 (urbanos) .

Na verdade, os AA. não só têm a seu favor a presunção derivada do registo predial - cfr. os pontos 1 e 2 dos factos provados e o disposto no artigo 7º do C. de Registo predial -; como adquiriram o prédio originariamente através da usucapião – cfr. o ponto 20 dos factos provados e o disposto nos artigos 1251º, 1255º, 1287º, 1288º e 1296º, todos do C.C..

Por seu lado , os RR . são donos de um outro prédio rústico , no mesmo lugar , composto de terra de semeadura e mato, com duas oliveiras, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 1744 – cfr. os pontos 7 , 22 e 23 dos factos provados e igualmente o disposto nos artigos 1251º, 1255º, 1287º , 1288º e 1296º do C.C.”.

Em conformidade com essa fundamentação, na parte conclusiva da sentença, declarou-se os autores como únicos e exclusivos proprietários do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure sob o nº 00908 da freguesia de Degracias , composto dos artigos rústicos 1742 e 1743 e dos urbanos 361 e 397, nos termos supra indicados no relatório.

O que o tribunal não fez foi julgar inteiramente procedente a pretensão formulada pelos autores, nos termos em que o foi, pela singela razão de que a Sra. Juiz não considerou provada a factualidade que os autores haviam invocado e que era pertinente nessa sede, questão que, de todo, não pode confundir-se com uma situação de omissão de pronúncia.

Efectivamente, o cerne da acção reside, sem dúvida, na demarcação entre o prédio dos autores e o prédio dos réus, respectivamente na sua estrema nascente/poente, sendo que na linha divisória o terreno que, por banda dos autores, está em discussão é, exactamente, aquele que estava inscrito na matriz sob o art. 1743 e que hoje não tem autonomia relativamente às demais parcelas que compõem o aludido prédio descrito na C.R. Predial (artigos rústicos 1742 e 1743 e urbanos 361 e 397). [ [5] ]

Ora, não se vê como podia a Sra. Juiz julgar como os autores pretendem, quando estes não provaram a invocada área e delimitação, com referência a cada uma das parcelas e, especificamente, àquela (nº 1743).

A declaração que se pede que o tribunal profira e vertida nas alíneas c) e d) supra indicadas, reconduz-se, na sua essência, a uma actividade declarativa, conexionada com a averiguação da titularidade do direito, mais consentânea com a fundamentação (de facto) da decisão do que com a própria decisão em si.

Considerando que nada se provou de pertinente nessa sede, não admira que não se encontre, na parte decisória, a pretendida “declaração”.

                                             *

Quanto à contradição alegadamente existente entre a factualidade consignada sob os nºs 11 com a indicada nos nºs 15 e 16 da sentença, não estamos perante questão que releve nesta sede, parecendo-nos que não há qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, para os efeitos a que alude o art. 668º, nº1 alínea c).

Aliás, compulsando o corpo das alegações verifica-se que os autores repetem a argumentação exposta, agora a propósito da matéria de facto dada como assente, e que impugnam, sendo a esse propósito que deve ser apreciada a invocada contradição.

                                             *

Por último, os autores consideram que a sentença “não contém a análise crítica das provas” e ainda que “possui escassa e deficiente fundamentação”.

O juiz deve “indicar os factos que considera provados e interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes” – art. 659º, nº2 –, bem como, no que concerne à fixação da factualidade assente, “analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador” – art. 653º, nº2 e 659, nº3 –, sob pena de nulidade da sentença –art. 668.º, nº 1, a) b.

Está em causa, fundamentalmente, salvaguardar o dever de fundamentar as decisões, não bastando a simples adesão aos fundamentos alegados pelas partes – art. 158º –, em consonância com o que dispõe o art. 205.º, n.º 1, da CRP e em ordem a que a decisão seja perceptível aos interessados  a quem a mesma é dirigida e aos cidadãos em geral, permitindo também, de forma mais eficiente, o controlo da sua legalidade.

No entanto, como é pacificamente entendido, apenas a falta absoluta de fundamentação integra o referido vício, e não já a fundamentação deficiente, medíocre ou não convincente.

No caso em apreço, é absolutamente evidente que não ocorre o vício aludido. O tribunal de 1ª instância fundamentou de forma suficiente a resposta aos quesitos, aludindo ao depoimento de determinadas testemunhas e conjugando não só esses depoimentos entre si como com outros elementos de prova, por exemplo a resultante de inspecção judicial realizada, em suma, explicitando o seu percurso valorativo.

Eventual discordância com o julgamento da matéria de facto feito pela Sra. juiz não permite que se considere ter ocorrido uma omissão de fundamentação, como parecem entender os autores, sendo que o tribunal de 1ª instância justificou a formação da sua convicção, de sorte que a decisão proferida não surge como arbitrária, discricionária  ou descontextualizada, em face da prova produzida.

Quanto aos fundamentos de facto e de direito enunciados na sentença, é líquido que não ocorre qualquer falta de fundamentação, sendo certo que os autores recorrentes nem sequer concretizam o invocado vício.

Conclui-se que a decisão não enferma das nulidades invocadas.

3. É pacificamente entendido que a selecção da matéria de facto, feita pelo julgador aquando do saneamento do processo e por este levada à “factualidade assente” e à “base instrutória” – “especificação” e “questionário” na terminologia do CPC 67 -, não conduz a caso julgado formal que obste à sua posterior modificação, ainda que as partes não tenham apresentado qualquer reclamação – art. 511º, nº 2 –, sendo que essa alteração pode ser feita quer em sede de audiência de julgamento, quer por via de recurso, exactamente porque estamos perante uma peça processual preparatória [ [6] ] da decisão. [ [7] ]

Em sede de recurso, os Autores insurgem-se contra a formulação da alínea L) da factualidade assente, vertida no ponto nº 11 dos factos enunciados – “A fim de construir um forno, junto à estrema do prédio referido no ponto 1 que na altura confinava com G..., o pai do autor A... pediu autorização para prolongar o bico do forno, de modo a que este ocupasse cerca de 30 cm do terreno referido no ponto 7 ” –, invocando ter ocorrido erro na remessa que aí se faz para a factualidade enunciada no “ponto 7”, e a consequente contradição com a factualidade enunciada nos pontos 15 e 16, alusiva aos quesitos 5º A e 6º.

Salienta-se já que o problema não reside na resposta aos quesitos mas remonta a momento anterior, aquando da prolação do despacho saneador.

Efectivamente, tendo sido formulada a alínea L), os autores apresentaram reclamação, que foi parcialmente deferida. No entanto, ainda assim, parece-nos evidente que a nova formulação encontrada para essa alínea não corresponde à alegação das partes, ponderando a versão dos autores e a impugnação dos réus, como passamos a demonstrar:

Os autores alegaram, no art. 36º da petição inicial:

“Quando o pai do autor construiu o forno existente numa dessas casas (posteriormente unificadas, agora uma única casa), que é o mesmo forno que ainda lá se encontra e que se mantém inalterado quanto ao espaço que ocupa, ainda não tinha adquirido a parcela de terreno, correspondente ao art. 1743, a qual ainda era ao tempo da construção do forno do G... e da mulher.

E, no art. 37º do mesmo articulado:

“A fim de construir o forno maior do que lhe permitia o limite do terreno do lado do forno à data da construção deste (junto à estrema que na altura era com G...), o pai do Autor pediu ao G... e à mulher deste autorização para prolongar o bico do forno cerca de 30 (trinta) centímetros no terreno destes”.

Mais acrescentam, nos arts. 38º e seguintes, que o G... e mulher deram autorização ao pai do autor para a construção do “bico” do forno “sobre o terreno deles”.

A este propósito, os réus referem, na contestação que “È falso o que alegam em 36. O bico do forno do imóvel dos AA está e sempre esteve em terreno dos RR”. – art. 9º – e que “É falso o que dizem em 37. A autorização para prolongar a construção (forno) por terreno alheio foi pedida aos antepossuidores do prédio que é hoje dos réus”. – art.10º.

Vamos agora contextualizar estas afirmações.

Não há qualquer dúvida que o prédio dos autores – descrito no registo predial, recorde-se, como correspondendo aos artigos matriciais rústicos 1742 e 1743 e aos artigos urbanos 361 e 397  – e dos réus – que corresponde ao artigo matricial rústico 1744  – confinam precisamente na parcela do prédio dos autores constituída pelo antigo artigo rústico 1743, prédio que o pai dos autores (F...) adquiriu a G... mulher (O....), por escritura pública outorgada em 10 de Setembro de 1957. O que está em causa e as partes discutem é, fundamentalmente, a área desses terrenos (artigos 1743 e 1744) e demarcação entre os prédios.[[8] ]      

Ou seja, na posição dos autores o bico do forno, à data em que foi construído, foi-o em terreno que não lhes pertencia e que estes posteriormente adquiriram, ou seja, o art. 1743. Na tese dos réus o bico do forno foi construído em terreno que pertencia aos seus ante possuidores e que actualmente lhes pertence, ou seja, o art. 1744.

Assim sendo, não podia dar-se como provado, em sede de despacho saneador, a factualidade constante da referida alínea L), nos termos em que o foi porquanto, afirmando-se aí que a autorização foi pedida para que o bico do forno “ocupasse cerca de 30 cm do terreno referido no ponto 7 ”, ou seja, do terreno inscrito na matriz sob o art. 1744, que é, precisamente, o terreno dos réus, está-se a dar como assente um facto que era controvertido.

Nessa medida, verifica-se a apontada contradição entre essa factualidade e os quesitos 5º A e 6º, que mereceram resposta positiva – depois consignados nos pontos 15 e 16 da sentença – porquanto o G... foi o ante possuidor do prédio inscrito na matriz sob o art. 1743 e nunca o foi do art. 1744.    

Concluindo, deve ser alterada a alínea L) dos factos assentes, agora o ponto nº 7 da sentença – como os autores haviam propugnado em sede de reclamação à selecção dos factos feita aquando da prolação do despacho saneador – que passará a ter a seguinte redacção, correspondente à versão dos autores, na parte aceite pelos réus:

A fim de construir um forno, junto à estrema do prédio referido em A), que na altura confinava com G..., o pai do autor A... pediu autorização para prolongar o bico do forno, de modo a que este ocupasse cerca de 30 cm de outro terreno.

Saliente-se que os réus, no recurso subordinado, aludem à mesma contradição. No entanto, relevam a mesma em sede de resposta aos quesitos, argumentando que a resposta aos quesitos 5º A e 6º devia ser “não provado” – e não de “provado”, como aconteceu –, assim impugnando o julgamento da matéria de facto.

Refira-se que a alteração em apreço pouco ou nada releva em termos decisórios. É que na sentença recorrida, apesar da aludida alínea L), a Sra. juiz não considerou essa factualidade e atentou, ao invés, na factualidade constante dos quesitos 5º A e 6º. Assim, pode ler-se na sentença recorrida:

“Por último, há que recorrer então ao critério fixado no artigo 1354º , nº 2 do C.C. – divisão do terreno em litígio em partes iguais.

Para tanto, há que partir das linhas divisórias indicadas pelas partes nos respectivos articulados : os AA. afirmam que a linha divisória coincide com a indicada na planta de fls. 46 ; por sua vez os RR. afirmam que a linha divisória está retratada no croquis de fls. 104, ou seja, coincide com o segmento de recta que une dois pontos, o primeiro situado a cerca de 9,10 m da esquina do forno da casa dos AA ., a 16,30 m do ponto mais próximo da linha divisória com o prédio vizinho a Nascente, e a cerca de 68 m do ponto mais próximo situado no limite de ambos os prédios a Norte ; e o outro ponto situado no limite Norte de ambos os prédios, junto à parede que os delimita com o prédio vizinho, a cerca de 68 m do ponto anterior e a cerca de 4,80 m do ponto mais próximo encontrado na linha divisória do prédio dos RR. com o prédio vizinho a Nascente .

Contudo, neste aspecto há, necessariamente, que efectuar uma correcção na linha divisória indicada pelos RR., de acordo com a prova produzida. É que os RR. invocaram que parte do forno da casa dos AA. se encontra implantado no prédio que lhes pertence, quando resultou apurado que, depois de prolongar o bico do forno em terreno alheio (com autorização do dono) o pai do A. adquiriu o prédio ocupado pela dita construção, pelo que a partir de então tal terreno faz parte integrante do prédio que hoje é dos AA. .

Deste modo, o terreno em litígio é delimitado, a nascente, pela linha divisória indicada pelos AA. na planta de fls. 46, e a poente, por um segmento de recta paralelo à linha divisória indicada pelos RR. no croquis de fls. 104 mas situado no exterior da parede do forno da casa dos AA..

Em conclusão, a linha divisória entre os prédios dos AA. e dos RR. é constituída por um segmento de recta situado a meio da faixa em litígio identificada no parágrafo anterior”. (sublinhado nosso)”

Nessa parte procede-se, pois, à rectificação do ponto nº 7 da factualidade assente (alínea L dos factos provados), nos termos indicados. 

4. Está em causa apreciar a resposta do tribunal de 1ª instância aos quesitos 1º e 2º da Base instrutória, sustentando os autores apelantes que os depoimentos de algumas testemunhas, apreciados na sua globalidade e em conjunto com a restante prova, nomeadamente documental, justificaria decisão diferente, isto é, que se respondesse positivamente a tais quesitos – e não restritivamente, como aconteceu relativamente ao quesito 1º e negativamente ao quesito 2º –, sendo que se procedeu à gravação da prova produzida em audiência de julgamento. [ [9] ]

Essencialmente, pretende-se averiguar da área do prédio dos autores (quesito 1º) e, especificamente, do artigo matricial rústico nº 1743 (quesito 2º).

Os autores pretendem ainda que se altere a resposta – negativa – ao quesito 8º, referindo que se deve considerar provado que o terreno dos autores possui “no mínimo em 5 metros quanto à distância do marco em frente à porta” e “quanto ao comprimento o mesmo é facilmente determinável no local”. [ [10]

                                             *

A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º, a saber:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

Por outro lado, dispõe o art. 690º-A :

 “1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

Vejamos, então, em que termos se deve processar a reapreciação da prova produzida.

Na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção.

Desde logo, e fazendo apelo ao preâmbulo do Dec. Lei 39/95 de 15 de Fevereiro, [ [11] ] o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador.

Depois, não pode o tribunal da Relação pôr em causa regras basilares do nosso sistema jurídico, o princípio da livre apreciação da prova – arts. 396º do C.C. e 655º, nº1 – e o princípio da imediação, sendo inequívoco que o tribunal de 1ª instância encontra-se em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”. [ [12] ]

O que não obsta, necessariamente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade.

                                             *                    

Procedeu-se à audição dos depoimentos constantes do registo - áudio e com referência aos depoimentos mencionados pelos autores e objecto de transcrição, e a primeira observação que se impõe é que os autores omitem parte dos depoimentos – não só quando a instância está a ser feita pela mandatária dos autores, como ainda toda a instância feita pelo mandatário dos réus –, o que não é admissível: o tribunal tem que ponderar a globalidade da prova produzida, não fazendo sentido que se proceda à transcrição parcial dos depoimentos, nomeadamente quando a omissão se refere directamente às matérias objecto de impugnação em sede de recurso, como por vezes sucedeu.

Aliás, no apenso de transcrição, iniciando o texto, a ilustre mandatária refere que “sempre que aparecer este sinal “(…)”antes, entrelinhado ou depois de uma frase, tal significa que não foi transcrita parte do depoimento, pelo facto de a transcritora o ter considerado irrelevante para os fins pretendidos pelos Autores” . [ [13] ]

Analisados os depoimentos das testemunhas a que os autores aludem, tendo por referência as questões que suscitaram, temos de concordar com a Sra. Juiz quando refere que “nenhuma das testemunhas ouvidas tinha uma noção credível acerca da área dos prédios confinantes ou dos seus comprimento e largura”. Assim, não só as testemunhas não procederam a qualquer medição da área dos prédios – e surpreendente seria que o fizessem – como resultou directamente dos depoimentos que nada sabiam a esse respeito, não tendo sequer uma noção aproximada da área dos terrenos. Assim aconteceu com a testemunha Lícia [ [14] ], M... – cfr. fls. 35 da transcrição – e Isabel N..., sobrinha de um irmão do autor, já falecido – vide fls. 44. Também a testemunha M... – mais uma vez, na transcrição alterou-se a ordem do depoimento desta testemunha que foi a 2ª pessoa a ser inquirida –, revelou desconhecimento não só relativamente a esta matéria como a outras a que foi inquirida. Aliás, a testemunha, que falava num tom de voz muito baixo, evidenciou pouco à vontade, limitando-se muitas vezes a responder afirmativamente sem qualquer outra explicitação – os autores são “compadres e cunhados” da testemunha, segundo afirmou.

E nem se diga, como pretendem os autores, relativamente ao quesito 2º, que se pode aferir da área do prédio inscrito na matriz com o art. 1743º, alegadamente de 418 m2, pelo depoimento das testemunhas J... e I..., quando estas aludem que tal prédio e o dos réus (com o artigo matricial nº 1744), deviam ter a mesma área porque os respectivos ante possuidores eram irmãos tendo pois recebido “sortes iguais”, porque tais afirmações traduzem mera conjectura das testemunhas – cfr. fls. 4 e 16 da transcrição – não tendo sido junto qualquer documento alusivo a partilhas.

E quanto à prova documental?

No documento junto a fls. 40 a 44 – escritura pública outorgada em 10/09/1957 – não consta qualquer elemento alusivo à área dos prédios objecto desse contrato de compra e venda.

Saliente-se que nessa escritura está referenciada a venda ao autor de dois prédios, identificados como estando inscritos na matriz com os nºs 1743 e 1745, nada permitindo concluir que a referência ao artigo 1745 se deveu a “lapso do notário” – e que se trate afinal do prédio inscrito na matriz com o art. 1743, como pretendem os autores. Aliás, os autores continuam a insistir nesse “lapso” em sede de recurso, sem no entanto indicarem um único elemento de prova produzida quanto a essa matéria. Refira-se que, no processo, não está em causa qualquer prédio identificado com o nº 1745, sendo certo que a ter ocorrido o lapso invocado, sempre ficaria por explicar como, na mesma escritura, vendedores (o G... e esposa) e comprador (o pai do autor) declaram, então, comprar e vender, respectivamente, dois prédios distintos, cujas confrontações identificam, estando um deles descrito no registo predial e outro omisso, mas com o mesmo número de identificação matricial, o referido 1743.

Ficamos apenas com os documentos emitidos pelos Serviço de Finanças de Soure e juntos pelos autores a fls. 25, 26 e 166, este último relativo ao prédio dos réus, que aludem às áreas dos prédios em causa. Esses documentos, por si só e desacompanhados de qualquer outro elemento coadjuvante, são insuficientes para, com a mínima margem de segurança, concluir como os autores pretendem em ordem à alteração da resposta aos quesitos. Atente-se, aliás, que são os próprios autores a afirmar a desconformidade entre as “áreas reais” e as “áreas matriciais”, nos termos que constam do art. 51º da petição inicial, de tal maneira que invocam que o prédio dos réus tem a área aproximada de 531 m2 – factualidade vertida no quesito 9º –, pese embora juntem o documento de fls. 25, que consubstancia certidão alusiva ao prédio dos réus, aí se mencionado que tal prédio tem a área de 418 m2 …

Em conclusão, com os elementos existentes nos autos, não é possível concluir pelas áreas referenciadas nos quesitos 1º e 2º, em ordem a alterar a resposta a esses quesitos, como pretendem os autores.

O mesmo se diga relativamente ao quesito 8º, sendo que, pese embora pretendam a alteração da resposta ao quesito, os autores não questionam minimamente a fundamentação exposta pelo tribunal, em sede de resposta aos quesitos.

A esse propósito, referiu a Sra. Juiz:

“Acresce que a prova produzida acerca do número e localização dos marcos que separavam os dois prédios (o dos AA e o dos RR) foi contraditória e confusa: houve quem mencionasse a existência de três marcos (testemunhas M..., J..., I...e P... ), quem referisse conhecer dois (testemunhas Q.... e J....) e quem apontasse a existência de mais (testemunha R... ); e houve quem se reportasse aos marcos existentes no tempo do pai do A. e os que falassem dos colocados recentemente pelo A. (pintados de vermelho)!”.

Os autores não põem em causa esse juízo valorativo, sendo que a resposta ao quesito pressupunha, exactamente, uma definição a nível de existência e localização do marco a que o quesito se reporta e o ponto é que isso não é possível, em virtude da disparidade dos depoimentos que incidiram sobre essa matéria.

Alerte-se que a testemunha J... indicou esses cinco metros – “ou passará dos cinco metros, não sei” –, com referência a um marco – inquirida sobre o local onde estava o marco a testemunha respondeu “Retirado da porta da cozinha do meu pai, ou do meu irmão, esses tais cinco metros que eu estou a dizer” – o mesmo acontecendo com a testemunha M... – cfr. fls. 39 e 40 da transcrição.      

                                             *

Em conclusão, não pode este Tribunal da Relação deixar de analisar criticamente, e numa perspectiva de razoabilidade, toda a prova produzida, nada havendo que apontar à ponderação feita na 1ª instância, relativamente aos termos em que apreciou os vários elementos probatórios.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso.

5. Mantendo-se a resposta aos quesitos e, portanto, inalterada a factualidade apurada na sequência da audiência de julgamento, mais não resta senão confirmar a decisão recorrida.           

Os autores beneficiam da presunção de que são proprietários do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00908, atenta a factualidade assente (alíneas A) e B) e  resposta ao quesito 16º) e o disposto no art. 7º do Cód. do Registo Predial.

No entanto, e como vem sendo entendido quase com uniformidade, cremos, pela jurisprudência, essa presunção não abrange os factores descritivos do prédio (as áreas, limites ou confrontações), cujo ónus de alegação e prova impende sobre o proprietário que pretende exercer o direito à demarcação.

Como se referiu no As. STJ de 14-10-2003, “o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, estando sujeitos a registo "os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade (...)" - art. 2.º-1-a). O registo apresenta-se, assim, com natureza e função essencialmente declarativa, que não constitutiva, donde que o conteúdo da preceituado no art. 7.º se esgote na dupla presunção já acima enunciada (o direito registado existe e pertence ao titular inscrito, nos termos definidos pelo registo).

Com efeito, como decorre dos preceitos citados, do contido nos arts. 76.º e 91.º-1 e, em geral, dos princípios que enformam o nosso sistema de registo, sendo a finalidade essencial deste a publicitação da «situação jurídica dos prédios» definida pela verificação de certos "factos jurídicos» referidos no art. 2.º, tem de entender-se a presunção em causa como delimitada pelos contornos descritos, ou seja, deixando de fora, por razões decorrentes do próprio sistema de identificação predial acolhido pela lei, a possibilidade, certamente desejável, de "abranger a totalidade dos elementos de identificação dos prédios, que continuam sujeitos a uma eventual rectificação ou actualização (…).

Ora, se o registo não pode, nem se destina a garantir os elementos de identificação dos prédios, bem se compreende que tais elementos não possam aceitar-se como factos presumidos.

Daí que se venha reafirmando a posição de que o "registo predial respeita aos factos jurídicos causais dos direitos reais, e não à materialidade dos prédios sobre que incidem os direitos, aos respectivos elementos descritivos", para concluir que não abrange os limites ou confrontações, a área dos prédios, as inscrições matriciais (com finalidade essencialmente fiscal), numa palavra, a identificação física, económica e fiscal dos imóveis, tanto mais que a mesma é susceptível assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controle do conservador apesar da sua intervenção, mesmo oficiosa”. [ [15] ]

Salienta-se, ainda, como se referiu na decisão recorrida, que também as inscrições matriciais não são garantia suficiente das áreas e delimitações inscritas (para efeitos fiscais), desde logo porque resultam de declarações feitas pelos próprios interessados.

Concluindo, ponderando os critérios enunciados no art. 1354º do Cód.Civil e a factualidade assente, impunha-se proceder à fixação da linha divisória entre o prédio dos autores e o dos réus nos moldes indicados na sentença, ou seja, distribuindo o terreno em litígio em partes iguais, com a ressalva feita na decisão e a que atrás aludimos, relativa aos 30 cm ocupados pelo “bico do forno”, que tem plena justificação uma vez, nessa parte, se provou que o pai do autor adquiriu o prédio ocupado por essa construção, como referido na decisão – o critério da divisão em partes iguais é a ultima ratio, só funcionando relativamente à faixa de terreno em que não é possível proceder à demarcação em conformidade com os demais critérios.

Improcedem, pois, as conclusões dos autores recorrentes, não se justificando qualquer outra análise alusiva ao recurso dos réus, para além do que já se deixou exposto, uma vez que se trata de recurso subordinado.

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Conclusões:

I. A acção de demarcação tem como pressuposto o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio cuja demarcação se pretende; No entanto, a finalidade específica da acção não é o reconhecimento desse direito, mas fazer funcionar o direito que o proprietário tem de obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre os prédios (1353º, do Cód. Civil).

II. Atenta a natureza e função do registo – essencialmente declarativa e não constitutiva – a presunção do art.º 7 do Cód. do Registo Predial não abrange os elementos descritivos alusivos ao prédio (área e confrontações).

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Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos autores apelantes.

Notifique.

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[1] Sobre os conceitos de “pretensão material” e “pretensão processual” v.d. Miguel Teixeira de Sousa, in Sobre a Teoria do Processo Declarativo, Coimbra Editora, 1980, pág.147-156.

[2] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1981, vol. I, pág.102. Vd ainda Fernando Luso Soares, Processo Civil de Declaração, Almedina, 1985, pág.205. 

[3] Oliveira Ascensão in A Acção de Reivindicação, estudo publicado na ROA, 57º, Abril de 1977, p.519 

[4] Pires de Lima e Antunes Varela, C.C.Anotado, 2ª edição, Coimbra Editora, vol. III, p. 197. 

[5] Não é por acaso que os autores só manifestam interesse na delimitação da área e especificação dos demais pontos a que aludem, relativamente ao art. 1743 e não já ao art. 1742, sobre o qual nada “pedem”.

[6] José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2000, pág. 171.

[7] Como refere Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 314 “ a selecção da matéria de facto, mesmo quando contra ela não for deduzida qualquer reclamação (cfr. art.º 511º, n.º 2), não transita em julgado e, por isso, não se torna vinculativa no processo. Ela nunca torna indiscutível que não existam factos relevantes que não foram sequer seleccionados, nem que os factos incluídos na base instrutória sejam efectivamente controvertidos, nem ainda que os considerados assentes não sejam afinal controvertidos”.

Vd. ainda, a título exemplificativo, o Ac.R.P. de 30/05/2005, proferido no processo no 0511078, acessível www.dgsi.pt , aí se referindo: “Tal entendimento, desde logo, por via da doutrina expressa no assento de 26 de Maio de 1994, que mantém plena validade (Boletim, nº 437, pág. 35).

Na verdade, como aí se ponderou, tenha ou não havido reclamações da especificação, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, a especificação pode ser sempre alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio. E isso é assim porque a selecção da matéria de facto na fase de saneamento do processo, como prevê o artigo 511º do CPC, tem apenas em vista arrumar os factos até aí apurados e indicar aqueles sobre os quais deve recair a produção de prova a efectuar na subsequente fase de instrução, ao passo que os poderes conferidos ao juiz pelo artigo 659º, em fase de julgamento, têm já uma diferente função que é, não já a de fixar as fronteiras instrutórias, mas definir em definitivo, ao nível da primeira instância, o quadro fáctico de que deverá partir-se para o julgamento de mérito e que não está de nenhum modo limitado, em termos progressos.. pelo que tiver sido especificado”.

[8] Atente-se nos seguintes artigos da petição inicial e do que, a esse propósito, referem os réus:

30º: O prédio dos Réus, do lado em que confina com o prédio dos Autores, confina precisamente com a parcela do prédio dos Autores constituída pelo artigo matricial rústico 1743, um dos dois que o pai do Autor adquiriu em 1957, e que possuía área igual ao prédio dos Réus: 418m2 – os réus aceitam essa alegação, à excepção da área indicada, como decorre do art. 3º da contestação.

31º: Desde a referida aquisição do artigo matricial 1743, o prédio dos Autores passou a confrontar do respectivo sul com Manuel dos Santos Miguel, actualmente com os Réus – os réus aceitam essa alegação, à excepção “da confrontação, que é a nascente, pois sul é com caminho”, como decorre do art. 3º da contestação.

[9] Os quesitos têm a seguinte redacção:

1º: O prédio dos AA, referido em A), é composto de terreno e casa de habitação e tem a área de 1.310 m2?

2º: A parte desse prédio que anteriormente correspondia ao art. matricial 1743º tem a área de 418 m2?”   

[10] O quesito 8º tem a seguinte redacção:

Do bico do forno dos Autores até ao prédio dos Réus, que se inicia num marco em pedra aí existente, o terreno dos Autores, que correspondia ao art. 1743º, possui cerca de 6 metros de largura por cerca de 73 metros de comprimento, no sentido Sul (caminho) Norte?

[11] Refere-se no preâmbulo: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”

[12] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, acessível in www.dgsi.pt, podendo ler-se, neste:«De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)».

[13] Refira-se, a título exemplificativo, o depoimento da testemunha Lícia, logo no início do depoimento – que é inquirida antes da testemunha Encarnação, não se percebendo a razão pela qual, na transcrição, se alterou a ordem dos depoimentos, iniciando-se o texto com o depoimento da testemunha Encarnação –, e a testemunha Encarnação, cuja transcrição começou a ser feita apenas relativamente ao depoimento gravado no lado B da cassete, quando o depoimento se inicia no lado A, omitindo a transcrição, completamente, essa parte do depoimento.  

[14] É elucidativo o depoimento da testemunha Lícia, exactamente na parte cuja transcrição os autores omitiram, sendo que a instância estava a ser feita pela mandatária dos autores:

Advogada: Pronto. Sabe a área do prédio todo, do total?

Testemunha: A área, toda toda toda, não, que eu também …

Adv.: Não sabe a área ao certo!

Test.: Não sei ao certo porque também não verifico.

Adv,: Será 1310 metros quadrados?

Test.: Exacto.

Juiz: Mas exacto como?

Test.: Sei que o terreno, que é o terreno, prontos, que se cavava, dantes…

Juiz: Não é isso que lhe foi perguntado; foi-lhe perguntado a área, a senhora começa por dizer que não sabe e depois é-lhe perguntado 1310 m2 e a senhora diz “exacto”! Como é que a senhora diz “exacto”? A senhora jurou dizer a verdade! Como é que a senhora diz que são 1310 metros? 

Test.: Eu digo a verdade que eu sei.

Juiz: Por isso é que eu lhe pergunto! Como é que diz que são 1310 metros, que foi a medida que lhe veio dali daquele lado? 

Test.: A medida do, do … 

Juiz: A área do prédio.

Test.:  A medida do terreno, do talho, são 418 metros.

Juiz: Qual talho?

Test.: Do talho que vim para aqui ser chamada, para um talho que lá está. 

Juiz: Quem é que lhe falou que eram 418 metros quadrados?

Test.: Não são quadrados!

Juiz: Ai não são quadrados! Então são em linha recta?

Test.: É só em comprimento.

Juiz: Ai é só em comprimento tem 418 metros.

Test.: Sim.

Juiz: Pronto. Sra. Dr. faça favor, já está respondido o quesito 2º. 

Adv.: Oh Sra. Dra. assim não porque a testemunha já está nervosa e quer dizer… 

Juiz: Oh Sra. Dra. desculpe…

Test.: E mais me enervo porque (incompreensível) …

Juiz: Oh Sra. Lícia, esteja calada! A senhora cale-se, a senhora agora esteja calada. Sra. Dra., há coisas que saltam à vista! Perguntar a uma testemunha “sabe qual é a área?”, “não”, “serão 1310?”, “exacto”. A sra. Dra. quer-me convencer que esta testemunha não foi instruída quanto a este ponto?  

Adv.: Oh Sra. Dra. mas há outras maneiras de se chamar a testemunha à realidade!

Juiz.: Oh Sra. Dra. vai-me desculpar…

Adv.: Assim não…

Juiz: Assim não, não! Eu é que ainda dirijo esta audiência, Sra. Dra., vai-me desculpar!

Adv.: Sim, Sra. Dra.

Juiz: E portanto não vou permitir que as testemunhas venham para aqui, depois de me jurarem a verdade, com respostas deste tipo. Sra. Dra., faça favor de prosseguir, então. (…)

[15] Proferido no processo 03A2776 (Relator: Cons. Alves Velho), acessível in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, cfr. os Acs STJ de 13/05/2008, proferido no processo nº 08A868 (Relator: Cons. Mário Cruz), 15/05/2008, proferido no processo nº 08B856 (Relator: Cons. Pereira da Silva), 12/01/2006, proferido no processo nº 05B4095 (Relator: Cons. Duarte Soares), de 08/01/1991, proferido no processo nº 079397 (Relator: Cons. Miguel Montenegro), acessíveis no memso loc. e Ac. desta Relação de 9 de Março de 1999, C.J., Ano XXIV, 1999, T. II, p. 17.