Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
34/08.7TBFCR-L.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO DERIVADA
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1251º, 1252º Nº2, ARTº 1260º, ARTº1287º E º 1296º DO CC E ARTº 7º DO CRPREDIAL
Sumário: I – As inscrições matriciais e descrições prediais não são constitutivas do direito de propriedade - cedendo a presunção do artº 7º do CRpredial perante a prova de meio de aquisição legal e idóneo – pelo que, aquelas inscrições podem ser efectivadas sem prova da titularidade do bem, sem que daí resulte a sua nulidade.

II – Verificados os requisitos da usucapião, esta, como modo originário de aquisição da propriedade, sobreleva sobre qualquer outro modo anterior de aquisição, maxime, se apenas derivado.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

Em processo de insolvência a tramitar no Tribunal Judicial de Figueira de Castelo Rodrigo e em que é requerida a sociedade  A....,  foi proferida decisão que:

Concluiu pela propriedade da requerida da verba nº1 do auto de apreensão de bens, a saber: prédio urbano sito na Horta da Balda em Castelo Rodrigo, com a área de 500m2, sendo a área coberta de 195m2 e a área descoberta de 305m2, inscrito na matriz urbana nº484 da Freguesia de Castelo Rodrigo e descrito na CRP de Castelo Rodrigo pelo nº1433/20051025 e, consequentemente, determinou a manutenção da apreensão, seguindo-se os ulteriores tramites processuais.

Esta decisão fundamentou-se nos seguintes factos:

O prédio em questão serviu, pelo menos desde 1990, para o normal desenvolvimento da actividade económica da insolvente, tendo os actos inerentes à posse e tradição sido praticados em nome da insolvente sem oposição de terceiros.

Que na declaração para inscrição na matriz, sob o artº 484, consta como único titular do imóvel a insolvente A......

Que do prédio em questão constam registadas: duas penhoras, uma hipoteca legal, uma hipoteca judicial e não consta dos autos que os requerentes B... e C... se tenham oposto, de qualquer forma, a tais apresentações.

Que o prédio se encontra devidamente relevado nos elementos contabilísticos da insolvente, vg. na listagem de bens e no balancete geral o que leva à conclusão que ele foi afectado à actividade da sociedade.

Que as despesas de construção foram contabilizadas como custo da empresa, conforme declaração de IVA, deduzido em sede de aquisição do imobilizado.

Que era em nome da sociedade que os seus representantes legais procediam ao pagamento do IMI, da electricidade, do telefone, de seguros, de gás e da agua.

2.

Inconformado com tal decisão dela recorreu um dos sócios de tal sociedade, B....

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A sociedade insolvida é uma sociedade familiar da qual fazem parte marido e mulher, sendo o marido o gerente.

O prédio em causa é um prédio rústico, composto de lote de terreno para construção urbana e foi adquirido por escritura pública em 30.12.1988, por B....., casado no regime de comunhão de adquiridos com C......

Sobre o mesmo foi construído um prédio urbano com a área coberta de 195m2, o qual foi inscrito nas finanças com o artº matricial nº484 no ano de 1990.

Aquela inscrição matricial foi efectuada em nome da Sociedade A..... pelo seu proprietário, sócio e gerente, por razões exclusivamente economicistas de momento, sem qualquer documento ou título de propriedade que permitisse aquela inscrição aceite pelo serviço de finanças.

O prédio foi feito registar na CRP de FCR sob o artº 1433/20051025, por força de execução da Fazenda Nacional representada pelo serviço de finanças de FCR.

Por força da escritura publica de compara e venda o legítimo proprietário, B..... procedeu ao registo na competente conservatória através da ap.2 de 20080609 do mesmo prédio, ficando descrito sob o nº 364/19881227, bem como procedeu à inscrição matricial à qual foi atribuído o artº 2309º.

Sobre o mesmo prédio incidem duas inscrições e descrições diferentes sendo ele de titularidade controversa.

Só a área coberta de 195m2 esteve adstrita ao negócio da sociedade e não a restante área de 305m2, sendo certo que todo o prédio foi por todos sempre reconhecido como pertencente aos sócios e não á sociedade, que eram as mesmas pessoas.

O funcionamento de serviços da sociedade naquele espaço foram sempre tolerados e com vantagens para esta pelos sócios e proprietários comuns.

10ª

O registo do prédio com a descrição 364/19881227 abrange a totalidade da área do prédio, coberta e descoberta.

11ª

Não possui a sociedade qualquer documento ou titulo que permitisse ao serviço de finanças proceder à inscrição matricial em nome da sociedade, sendo nulo aquele acto de inscrição.

12ª

Violou-se o disposto para a transmissão de bens imóveis, já que a decisão se fundamentou em simples inscrição matricial, sem qualquer documento de suporte da mesma transmissão e validou-se um acto nulo de inscrição: artºs 1316º e 1344º do CC e 13º do CIMI.

Contra-alegaram o digno magistrado do MºPº e o Sr. Administrador da Insolvência, pugnando pela manutenção do decidido.

Dizendo, para além do mais, que a propriedade do bem já foi adquirida pela sociedade por usucapião ou por acessão imobiliária industrial.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Propriedade do bem apreendido: da sociedade insolvente ou do seu sócio gerente.

4.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra.

5.

Apreciando.

5.1.

Nos termos do artº 1316º do CC: «O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei».

Este preceito consagra dois modos de aquisição da propriedade: o derivado, vg. fundado em contrato e o originário, vg. alicerçado na usucapião.

Como é consabido, a aquisição originária atinente à usucapião sobreleva sobre a aquisição derivada decorrente dos actos ou negócios, meramente jurídicos, firmados.

Razões de certeza, segurança e de uma certa paz social, quiçá em detrimento de conceito ideal de justiça, perpassam a ratio legis.

5.2.

Temos assim que os modos de aquisição de propriedade são apenas os legalmente consagrados.

O que clama a conclusão, e desde logo no que tange à inscrição matricial do bem em nome de um qualquer titular, que esta não prova o domínio.

 Relevando tal inscrição apenas para efeitos fiscais, certo é que à respectiva administração se assume como, pelo menos tendencialmente, irrelevante ou inócuo, exigir ou averiguar da legítima titularidade do bem. O que lhe interessa é perceber o respectivo imposto, independentemente do seu proprietário.

Já no que concerne à presunção emergente do registo predial há que ter presente que «o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.» - artº 1º do CRP

Logo, o registo não tem efeito constitutivo do direito e a presunção dele derivada cede, mesmo relativamente a terceiros, pela prova de idóneo meio de aquisição, vg. fundada em usucapião – cfr. entre outros, Ac. do STJ de 14.01.1998, BMJ, 473º, 503.

5.3.

In casu.

5.3.1.

Diga-se, ab inito, que não assiste razão ao recorrente quando clama pela nulidade da inscrição matricial com base na inexistência de título que permitisse ao serviço de finanças proceder a tal inscrição.

Em primeiro lugar porque, como se viu, e considerando a natureza e a ratio deste acto, é inexigível a tais serviços a perscrutação de tal título.

Em segundo lugar, porque, como bem expende o Sr. Administrador da Insolvência, este pedido consubstancia um verdadeiro abuso de direito, decorrente de um venire contra factum proprium.

É que foi o recorrente que impetrou tal inscrição em nome da sociedade sem apresentar o título aquisitivo, pelo que, teria sido ele o autor da verificação da nulidade.

Ou seja, ele actua, convenientemente, em cada momento, em função dos seus  próprios interesses, querendo, como diz o povo, na sua provecta sabedoria de experiencia feito «sol na eira e chuva no nabal».

Mas não pode ser. A justiça, a ética, a honestidade, a hombridade, a coerência e a verticalidade a tal obstam.

E só com alguma condescendência  e na perspectivação de que a actuação do recorrente é algo obnubilada e desfocada pelo facto de parecer confundir e interpenetrar os direitos, obrigações e interesses dele e da sociedade, por esta ser de cariz familiar e ele seu sócio gerente, não se despoleta nesta instancia o competente incidente de actuação em má fé.

Em todo o caso e mesmo que assim não fosse ou não se entenda, quedaria ainda irrelevante tal pedido, pois que, falecendo a tal inscrição qualquer virtualidade de atribuição ou constituição do direito de propriedade, sempre a decisão da causa passaria, como passará, pelo menos, a latere do mesmo.

5.3.2.

Quanto ao registo predial verifica-se que efectivamente existem duas descrições.

 As quais são, porém, formalmente diferenciadas, e assim, aparentemente reportadas a prédios distintos, pelo menos para efeitos registrais, como bem expendeu a Sra. Conservadora.

 Pois que, enquanto uma se refere a um «lote de terreno para construção urbana» atinente à matriz nº2309, a outra reporta-se a uma «casa de rés-do-chão, 1º andar e sótão com logradouro» concernente á matriz nº 484.

Mas, bem vistas as coisas, estamos, em termos substanciais, perante a mesma realidade ou quid material, o que ressumbra claramente, desde logo, da área e confrontações, ou seja, estamos perante um inicial lote de terreno no qual posteriormente foi erigida uma edificação.

Ora o que do 1º registo predial – respeitante ao lote de terreno - consta é que este lote foi adquirido por compra a favor  do recorrente.

Este beneficiaria, assim, da presunção derivada do registo, conforme preceituado no artº 7º do CRP.

5.3.3.

Todavia, apurou-se – e tal foi plasmado na decisão como alicerce factual da mesma o que não foi posto, pelo menos formal e regularmente, em causa pelo recorrente – para além do mais, o seguinte acervo fáctico:

- O prédio em questão serviu, pelo menos desde 1990, para o normal desenvolvimento da actividade económica da insolvente, tendo os actos inerentes à posse e tradição sido praticados em nome da insolvente sem oposição de terceiros.

- Que o prédio se encontra devidamente relevado nos elementos contabilísticos da insolvente, vg. na listagem de bens e no balancete geral o que leva à conclusão que ele foi afectado à actividade da sociedade.

- Que as despesas de construção foram contabilizadas como custo da empresa, conforme declaração de IVA, deduzido em sede de aquisição do imobilizado.

- Que era em nome da sociedade que os seus representantes legais procediam ao pagamento do IMI, da electricidade, do telefone, de seguros, de gás e da agua.

Perante estes factos há que concluir que a sociedade detém. pelo menos desde 1990, a posse do prédio em causa, sobre ele actuando por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade – artº 1251º do CC.

Sendo, que, na dúvida, provado o corpus da posse, se deve presumir, até prova em contrario a efectivar pela parte dissidente, a posse pessoal e com animuscfr. Artº 1252º nº2 ; Acs. do STJ de 27.05.1999 e de 20.06.2000, CJ, 2º, 187 e 2º, 123, respectivamente e Mota Pinto, Direitos Reais, 1970, 191.

Tal posse assume-se como de boa fé, até porque foi o próprio recorrente que, com a sua actuação, quis passar para a sociedade – e fazer crer perante terceiros - o exercício do direito de propriedade, estando, pois, elidida a presunção de posse de má fé, derivada da falta de título – artº 1260º do CC.

A posse do direito de propriedade mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor a aquisição de tal direito por usucapião- artº1287º.

Não havendo registo do título nem da mera posse a usucapião emerge após decorridos 15 anos, se a posse for de boa fé, como se verifica in casu – artº 1296º do CC.

Este lapso de tempo, há muito tinha sido atingido, à data da insurgência do recorrente contra a apreensão do bem para a massa e, até, tanto quanto se alcança, à data da instauração da acção de insolvência.

Consequentemente, a sociedade – pessoa jurídica autónoma e com direitos e obrigações diferenciados do recorrente e sua esposa, note-se – havia já adquirido a propriedade do prédio, por aquisição originária, modo mais relevante e que sobreleva sobre a mera aquisição derivada decorrente da compra inicial do lote pelo recorrente.

Improcede, destarte, a pretensão do recorrente.

6.

Sumariando:

I – As inscrições matriciais e descrições prediais não são constitutivas do direito de propriedade - cedendo a presunção do artº 7º do CRpredial perante a prova de meio de aquisição legal e idóneo – pelo que, aquelas inscrições podem ser efectivadas sem prova da titularidade do bem, sem que daí resulte a sua nulidade.

II – Verificados os requisitos da usucapião, esta, como modo originário de aquisição da propriedade, sobreleva sobre qualquer outro modo anterior de aquisição, maxime, se apenas derivado.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão.

Custas pelo recorrente.