Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4145/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
TUTELA
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 05/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: N.º 2 DO ART. 71º DO CÓDIGO CIVIL; ARTS. 1474º E 1475º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: 1. O legislador ao usar no n.º 2 do art. 71º do Código Civil a expressão “providências previstas no n.º 2 do artigo anterior” pretende significar todas as acções de tutela previstas nesse n.º 2 do art. 70º, incluindo a acção indemnizatória, e não apenas as acções exercitáveis mediante o processo especial previsto nos arts. 1474º e 1475º do Código de Processo Civil.
2. Tais meios de tutela da personalidade de pessoa já falecida são exercitáveis, em solidariedade activa, por qualquer das pessoas indicadas no n.º 2 do art. 71º do Código Civil.

3. Porém, as pessoas indicadas no n.º2 do art. 71º não gozam de legitimidade para peticionar indemnização por danos próprios com fundamento em sofrimento resultante da ofensa à personalidade de pessoa já falecida.

4. Só em casos excepcionais a lei confere a terceiros, além da pessoa directamente ofendida, o direito a exigir indemnização.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO

A... e esposa B... intentaram acção declarativa de responsabilidade civil extracontratual, sob a forma de processo ordinário, contra INSTITUTO NACIONAL DE MEDICINA LEGAL e ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a condenação dos Réus ao pagamento da quantia de € 30.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

Como fundamento do pedido, os AA. alegaram, em síntese, a seguinte factualidade:
-São pais de C..., vítima mortal de acidente de viação ocorrido no dia 19.11.94, tripulando aquele um motociclo que colidiu contra um veículo automóvel;
-A autópsia do seu falecido filho foi realizada no dia seguinte;
-No dia 23.11.94, por ofício dos Serviços do Ministério Público do Tribunal de Águeda, foram remetidos dois frascos ao Instituto de Medicina Legal de Coimbra, consignando-se que um continha amostras de sangue de Olívia Coelho Seabra, vítima de acidente no dia 22.11.94, e o outro continha amostras de sangue do seu filho;
-De acordo com o exame químico-toxicológico realizado pelo referido Instituto ao sangue do seu filho, este apresentava uma taxa de álcool de 1,11 g/l (um grama e onze centigramas por litro);
-Todavia, tal resultado contraria o facto de o seu filho, enquanto vivo, não ter o hábito de ingerir bebidas alcoólicas;
-E tal taxa de alcoolémia é explicada pela actuação do Ministério Público que apenas remeteu o sangue ao INML 3 dias após a realização da autópsia, em conjugação com a actuação do Instituto de medicina Legal de Coimbra que, no relatório, identifica erroneamente o processo de inquérito, uma vez que indica o processo de inquérito relativo a Olívia Seabra e no relatório químico-toxicológico do sangue desta identifica o processo de inquérito relativo ao filho dos AA.;
-Correu inquérito nos Serviços do M.P. para apuramento de responsabilidade criminal do outro interveniente no acidente de viação, tendo o mesmo sido arquivado com fundamento no depoimento das testemunhas e grau de alcoolémia da vítima, filho dos AA.;
-Sem êxito requereram os AA. a reabertura do inquérito a fim de ser determinado no IML, que ainda conservava as amostras de sangue, se ocorreu troca dos dois frascos, com recurso às técnicas de ADN, mas tal pedido foi indeferido;
-Os AA., conjuntamente com a viúva do seu falecido filho, intentaram acção de responsabilidade civil emergente do acidente, tendo obtido parcial procedência do pedido, graduando-se as culpas, respectivamente, em 60% para o seu filho e 40%, para o outro interveniente, condutor do veículo automóvel,tendo sido interposto recurso para o STJ;
-Houve, pois, negligência do M.P. em sede de recolha, etiquetagem, armazenamento e envio das amostras de sangue para o IML, como este não observou as normas de ordem técnica e de prudência ao identificar erroneamente o relatório químico-toxicológico relativo ao seu filho;
-A conduta dos Réus causou danos aos AA. que passaram a sofrer pelo injusto estigma de alcoolismo irresponsável que manchou para sempre a memória do seu filho junto dos vivos;
-Tal, porém, não corresponde à verdade, computando os danos próprios no montante de € 12.500;
-A conduta dos Réus ofendeu, também, a personalidade do seu filho já falecido, pelo justo estigma da condução sob o efeito do álcool e responsabilidade parcial no acidente de viação, calculando esses danos no montante de € 17.500.

Citados, contestaram ambos os RR. O INML deduziu as excepções de litispendência, prescrição do direito e ilegitimidade activa, impugnando, ainda, a factualidade alegada pelos AA.
O Estado, representado pelo M.P., excepcionou a incompetência em razão do território, prescrição e ilegitimidade activa, esta nos mesmos termos em que foi deduzida pelo INML, e impugnou, também, a factualidade alegada.

Os AA. replicaram, concluindo pela improcedência das arguidas excepções.
Foi julgada procedente a excepção de incompetência em razão do território, sendo os autos remetidos ao Tribunal de Águeda, uma vez que a acção fora intentada nas Varas Mistas de Coimbra.

De seguida, foi proferido despacho saneador que, na procedência da invocada excepção de ilegitimidade activa, absolveu os RR. da instância.

Irresignados, os AA. agravaram desse despacho, insistindo na sua tese e consequente revogação da decisão, e rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª- Pela sentença emitida foram os RR. absolvidos da instância com fundamento na procedência da excepção de ilegitimidade activa dos AA. invocada pelos mesmos RR.;
2ª-Entendeu o Juiz a quo não serem os AA os titulares do direito indemnizatório que invocam, razão pela qual não têm legitimidade para prosseguirem com a presente acção judicial;
3ª-Salvo o devido respeito, a sentença objecto do presente recurso não fez uma correcta interpretação da lei, invocando fundamentos para justificar a procedência da excepção de ilegitimidade activa que nenhuma relação têm com os autos;
4ª-Na presente acção, procuram os AA. responsabilizar os RR. pela omissão do respeito pelos ditames legais e cumprimento das regras de ordem técnica e de prudência comum que deveriam ter sido adoptadas no processo de investigações e averiguações que se seguiu à morte do seu filho, declarando-se judicialmente provado o carácter ilícito e culposo das suas condutas;
5ª-No que respeita aos danos não patrimoniais sofridos pelos AA., os mesmos consistem no sofrimento que os mesmos têm suportado pelo injusto estigma do alcoolismo irresponsável que manchou para sempre a memória do seu filho junto dos vivos, sabendo como sabem que tal não corresponde, nunca correspondeu, à realidade;
6ª- Foi assim invocada como norma jurídica para a petição de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. o preceito do n.º1 do art. 496º do CC. de acordo com o qual deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade merecem a tutela do direito;
7ª- Todavia, pela sentença recorrida, parece ter havido uma errónea interpretação das normas jurídicas invocadas pelos AA., uma vez que utiliza como fundamento para a procedência da excepção da ilegitimidade activa dos AA. os preceitos dos n.ºs 2 e 3 do art. 496º do CC;
8ª-Ora, estes preceitos dizem respeito à indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima determinando-se igualmente que para além dos danos sofridos pela própria vítima no caso de morte desta são atendidos os danos não patrimoniais de determinados entes familiares;
9ª-Apesar de estas normas terem sido invocadas na sentença recorrida, a verdade é que as mesmas não têm aplicação no caso sub judicio, uma vez que não está em causa a petição de danos não patrimoniais resultantes do dano morte;
10ª-Por conseguinte, não está a sentença recorrida devidamente fundamentada ao invocar como normas justificativas para a procedência da excepção de ilegitimidade activa dos AA., os preceitos dos n.ºs 2 e 3 do art. 496º do CC os quais não têm aqui qualquer aplicação;
11ª-Os fundamentos invocados estão errados, não podendo nunca legitimar uma decisão como a adoptada na sentença recorrida, porquanto as normas invocadas não têm qualquer relação com os factos existentes;
12ª-Por conseguinte, deve a sentença ser declarada nula, com fundamento na alínea c) do n.º1 do art. 668º do CPC;
13ª-Se assim se não entender, sempre a sentença deve ser revogada, por assentar em fundamentos fácticos e jurídicos que se não verificam no caso sub judicio;
14ª-Relacionado com este ponto, está uma segunda questão levantada na sentença, relativa aos danos sofridos pela directa violação da personalidade da vítima C..., cuja compensação é também peticionada pelos AA.;
15ª-Independentemnete da posição que se possa adoptar quanto à legitimidade dos AA. para peticionarem estes danos causados à personalidade do seu filho, a verdade é que no imbróglio causado pela violação dos preceitos do n.º2 e n.º3 do art. 496º do CC os quais não são aqui chamados à colação;
16ª- Assim, e mesmo que se entenda que os AA. não têm legitimidade para reclamarem uma indemnização pela violação do direito de personalidade do seu filho verificada após a morte deste, sempre têm os mesmos legitimidade para intentar, como legalmente fizeram, acção de responsabilidade contra os RR. peticionando uma indemnização pelos danos não patrimoniais por si sofridos em resultado das suas condutas;
17ª-Assim, quando muito, a excepção de ilegitimidade activa dos AA. apenas poderia ter sido declarada procedente no que respeita à violação dos direitos de personalidade do filho dos AA. e danos não patrimoniais daí resultantes, porquanto no que respeita aos danos não patrimoniais por si sofridos, repita-se, em resultado das condutas dos RR., a presente acção pode e deve prosseguir para apuramento dos factos e responsabilidades;
18ª-Deve, assim, a sentença ser revogada, determinando-se a prossecução da acção com fundamento no pedido de danos não patrimoniais dos AA. quanto aos danos por si sofridos em resultado das condutas dos RR.;
19ª-No que respeita aos danos patrimoniais causados à personalidade do falecido filho dos AA., cumpre dizer desde logo que a protecção post mortem da personalidade é portanto indiscutível;
20ª-A sentença recorrida entendeu no que respeita à legitimidade quanto à protecção dos direitos de personalidade de pessoa falecida, os AA. terão apenas legitimidade para requerer medidas cautelares de forma a evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida, mas já não para accionar os mecanismos da responsabilidade civil;
21ª-Esta posição está errada porquanto os AA. têm legitimidade para a defesa e protecção dos direito de personalidade do seu filho falecido a qual não se resume ao requerimento de medidas para evitar ou atenuar uma ofensa à personalidade moral deste, abrangendo também a possibilidade de lançar mão dos mecanismos de responsabilidade civil;
22ª-Contrariamente ao que foi defendido nas contestações e parece de algum modo estar implícito na sentença recorrida, a legitimidade para lançar mão dos mecanismos de responsabilidade civil não é, por um lado, exclusiva do cônjuge, nem tão pouco se exige a presença de todos os herdeiros do falecido na acção competente;
23ª-A própria lei atribui não só ao cônjuge sobrevivo, mas também e ainda a qualquer descendente ou ascendente (entre outros) legitimidade para requererem as providências legalmente previstas;
24ª-A lei não se refere a herdeiros, mas sim a várias pessoas com diferentes graus de ligação à vítima da ofensa;
25ª-Pretende-se assim, por um lado, evitar a necessidade de um litisconsórcio necessário entre todos os herdeiros, inútil desde logo quando os mesmos não estiverem de acordo quanto ao melhor caminho a seguir;
26ª-Por outro lado, procura-se evitar a monopólio do cônjuge, permitindo de igual modo a familiares próximos fazerem uso dos mecanismos legais de protecção dos direitos de personalidade e responsabilização pela sua eventual violação;
27ª-Por fim, sendo verdade que nesta acção de responsabilidade se peticiona uma compensação pelos danos morais causados à personalidade do filho falecido, é igualmente certo que o seu objectivo principal é trazer à luz e ao conhecimento de todos a responsabilidade dos intervenientes no processo que se seguiu à sua morte;
28ª-Esta acção é portanto mais um meio ao alcance dos AA. para livrar, ou melhor, atenuar a memória e a personalidade do seu filho das ofensas que lhe foram feitas, do mesmo modo que ele certamente o faria se não tivesse perdido a vida tão precocemente naquele fatídico acidente;
29ª-Uma interpretação da lei atendendo aos outros elementos de que a tarefa interpretativa se deve socorrer, permite uma conclusão nos mesmos termos;
30ª-Podemos por isso concluir que a lei confere às pessoas previstas no n.º2 do art. 71º a possibilidade de requererem quaisquer providências para protecção da personalidade do defunto, incluindo a responsabilidade civil dos autores da ofensa;
31ª-Por outro lado, ao determinar quais as pessoas que podem accionar os mecanismos de protecção da personalidade do defunto, não fazendo apelo às normas sucessórias, procurou-se obter a melhor defesa possível para os mesmos, não se restringindo essa legitimidade aos herdeiros;
32ª-Tal significa que os AA. têm, ao abrigo do n.º 2 do art. 71º do CC. toda a legitimidade para intentarem acção de responsabilidade civil contra os RR. por violação da personalidade do falecido filho;
33ª-Essa legitimidade cabe-lhes a eles como caberia a qualquer um dos familiares previstos no referido preceito, não prescrevendo a lei qualquer hierarquia a seguir, nem tão pouco, qualquer litisconsórcio activo;
34ª-Não têm por isso os AA. de se associar ao outro herdeiro do seu falecido filho para intentarem uma acção de responsabilidade contra os RR., nem, do mesmo modo, tem o cônjuge do seu filho legitimidade exclusiva para o efeito, como erroneamente entendeu a sentença recorrida;
35ª- Mal andou a sentença recorrida ao julgar procedente a excepção de ilegitimidade activa, devendo a mesma ser revogada, determinando-se em sua substituição terem os AA. legitimidade para prosseguirem com a presente acção de responsabilidade contra os RR. por violação dos direitos de personalidade do falecido filho.

O INML e Estado Português contra-alegaram no sentido da manutenção do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II)- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL

Tendo em apreço as conclusões da alegação a delimitar, em princípio, o objecto do recurso (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), colocam os Agravantes a julgamento deste Tribunal as seguintes questões:
1ª- Saber se a sentença está ferida de nulidade;
2ª-Averiguar se os AA., ora Agravantes, gozam de legitimidade “ad causam”.

III)- Vejamos a 1ª questão.
As nulidades da sentença estão taxativamente indicadas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 668º do CPC.
Alegam os Agravantes que os fundamentos de direito estão em oposição com a decisão. Ora, tal nulidade da sentença só ocorre quando os fundamentos invocados pelo Juiz deveriam logicamente conduzir a resultado oposto ao que vier expresso na sentença, reconduzindo-se esta, como é sabido, ao chamado silogismo judiciário, em que a premissa maior é a lei (a norma jurídica aplicada), a menor os factos apurados, e a conclusão o preceito da sentença ou a decisão final. A premissa maior e menor são antecedentes lógicos da decisão (cfr. “Noções Elementares de Processo Civil”, p. 294, de Manuel Andrade).
Mas verifica-se contradição lógica entre a previsão legal (premissa maior) indicada na sentença e a decisão?
Foram citados o art. 26º do CPC, o n.º2 do art. 71º e o art. 496º, ambos do CC. Interpretando o n.º2 do art. 71º, o Tribunal a quo recusou legitimidade aos AA. para requerer indemnização pelos danos alegadamente causados à personalidade do seu filho já falecido, restringindo essa legitimidade ao requerimento de providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

E no tocante à indemnização que pedem pelos danos alegadamente sofridos por eles próprios resultantes da ofensa à memória ou personalidade do seu filho defunto, fez-se apelo ao art. 496º do CC, designadamente aos seus n.º2 e 3, para apenas reconhecer à viúva do falecido legitimidade para reclamar indemnização pelos danos não patrimoniais que ela própria haja sofrido. Ou seja, a indemnização por danos não patrimoniais, cabe, em primeiro lugar e em conjunto ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes.
Ora, tal como foram interpretadas e aplicadas tais normas, não se vê que conflituem logicamente com a decisão de negar legitimidade processual aos AA. Obviamente, a apontada nulidade da contradição entre os fundamentos jurídicos e a decisão é realidade distinta do erro de julgamento, hipótese em que a sentença é injusta por não estar em conformidade com o direito substantivo aplicável ou porque são inexactos os fundamentos por não ser essa a lei aplicável. Se a sentença está de acordo ou não com o pertinente direito é já questão de mérito que não se confunde com a nulidade da mesma enquanto vício formal. Apontando para nulidade da sentença, inquinada de vício de formação ou construção, os Agravantes pretendem, afinal e em bom rigor, referir-se a erro de julgamento, querendo significar que o Juiz interpretou e aplicou mal a lei, como, aliás, expressamente reconhecem na conclusão 7ª. A nulidade da sentença é de ordem formal, não se confundindo com erro de julgamento que é de ordem substancial.
Sendo assim, improcede a arguida nulidade da sentença por pretensa contradição entre a motivação de direito e a decisão.


III-2)- Analisemos, agora, a 2ª questão.


Os AA. gozam de legitimidade para propor a presente acção visando efectivar a responsabilidade civil extra-contratual?
Como vimos, os AA. pediram a condenação dos RR. ao pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais próprios, computando a indemnização no montante de € 12.500, e, ainda, uma indemnização, que calculam mo montante de € 17.500, por ofensa aos direitos de personalidade do seu filho já falecido.

Na sentença impugnada recusou-se, ao abrigo do n.º2 do art. 71º do CC, legitimidade aos AA. para peticionar indemnização por ofensa à personalidade do seu filho falecido, dispondo aquela norma que “têm legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º2 do artigo anterior, o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido”.
Segundo o mencionado n.º2 do art. 70º do CC, “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.
Determinando o n.º1 do artigo 71º do CC que “os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular”. Ou seja, cessando a personalidade jurídica com a morte (n.º1 do art. 68º), ou cessando com esta a aptidão da pessoa para ser sujeito de relações jurídicas, subsiste não obstante a tutela da personalidade do defunto, aí se compreendendo o direito à honra, bom nome e reputação, tutela essa a ser exercitada pelas pessoas indicadas no citado art. 71º. Como após o falecimento do autor de uma carta-missiva confidencial, podem as pessoas indicadas no n.º2 do art. 71º exercer a tutela ao direito de segredo que se prolonga assim para além da morte (n.º2 do art. 75º).

Mas face ao teor do n.º2 do art. 71º as pessoas aí indicadas não podem exigir responsabilidade civil ou indemnização por ofensa aos direitos de personalidade de pessoa já falecida?

Como vimos, dispõe o n.º2 do art. 70º do CC, artigo este relativo à tutela geral da personalidade do indivíduo, que “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.
A lei adjectiva até prevê o processo especial visando a tutela da personalidade, da imagem, do bom nome e da correspondência oficial (arts. 1474º e 1475º, ambos do CPC), onde serão requeridas as apontadas “providências” contra o autor da ameaça ou da ofensa.
É certo que mencionado n.º2 se refere às “providências” previstas no n.º2 do art. 70º, mas entendemos nós que aí também se inclui a responsabilidade civil aludida no n.º2 do art. 70º, ou seja, a indemnização por perdas e danos. Seria, aliás, incompreensível que a tutela dos direitos de personalidade de pessoa falecida, nas vertentes em que é possível, obviamente excluindo o direito à vida, integridade física e liberdade, fosse menor que a tutela de pessoa viva, não abrangendo aquela a responsabilidade ao abrigo do art. 483º do CC.
O n.º2 do art. 71º propende apenas a indicar as pessoas com legitimidade para judicialmente exigir a defesa da personalidade ou integridade moral de pessoa falecida e já não a indicar quais os meios cíveis de defesa da personalidade, porque esses estão enumerados no n.º2 do art. 70º. Se bem se notar no art. 73º do CC, já se prescreve que “as acções relativas à defesa do nome podem ser exercidas não só pelo respectivo titular, como, depois da morte dele, pelas pessoas referidas no n.º2 do art. 71º”.
Portanto, o legislador ao usar no n.º2 do art. 71º a expressão “providências previstas no n.º2 do artigo anterior”, pretendia significar todas as acções de tutela aí previstas, empregando aquela em sentido amplo. E não apenas as exercitáveis mediante o processo especial previsto nos arts. 1474º e 1475º, ambos do CPC. (cfr., neste sentido “O Direito Geral de Personalidade”, p. 195, de Capelo de Sousa e “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. 1º, p. 111, de Castro Mendes).

Diga-se que a defesa da memória da pessoa falecida ou a defesa do respeito devido aos mortos encontra, também, guarida no âmbito criminal, como se vê dos arts.185º, 253º e 254º, todos do Código Penal.

Acrescente-se, ainda, que no “Esboço de um Anteprojecto de Código das Pessoas e da Família”, de Manuel de Andrade, no BMJ n.º 102, p. 156, constava do art. 6º, & 4º, o seguinte:
Se a ofensa se referir directamente a uma pessoa já falecida, serão as partes legítimas para as acções previstas nos parágrafos anteriores os herdeiros imediatos….”. Ou seja, nesse trabalho preparatório do Código Civil, abrangia-se também a acção indemnizatória, não se vislumbrando razão plausível para ficar aquela excluída dos meios de tutela da personalidade de pessoa falecida.

E tais meios de tutela da personalidade da pessoa já defunta são exercitáveis por qualquer das pessoas indicadas no n.º2 do art. 71º, em solidariedade activa, e não sucessivamente ou segundo a ordem aí estabelecida. Assim se compreende que no n.º2 do art. 76º o legislador já prescreva que a autorização para a publicação de cartas-confidenciais da autoria de pessoa falecida, seja da competência das pessoas designadas no n.º2 do art. 71º, segundo a ordem nele indicada. A mesma ordem é estabelecida para a autorização para exposição, reprodução ou lançamento no comércio de retrato de pessoa falecida (n.º1 do art. 79º).

Nesta conformidade, conclui-se que os AA. gozam de legitimidade para intentar a acção de indemnização por danos directamente causados à personalidade do filho já falecido, porque tal legitimação processual decorre directamente do n.º2 do art. 71º e, por isso, têm interesse directo em demandar (n.º1 do art. 26º do CPC).
E não vem a propósito chamar à colação o disposto nos n.º2 e 3 do art. 496º do CC, como decorre do despacho impugnado, porque disciplinando tais normas sobre a titularidade do direito a indemnização por danos não patrimoniais causados pela morte da vítima, e tal indemnização certamente já foi pedida na acção cível, acima aludida, intentada, no Tribunal de Águeda, contra a seguradora A Social com vista à efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação.

E que dizer relativamente ao pedido de indemnização, no montante de € 12.500, formulado pelos AA. com fundamento em danos próprios de natureza não patrimonial ou ofensa da sua personalidade?
Tal como alegam na petição inicial, podem os AA. ser considerados sujeitos passivos directos de alguma ofensa ilícita por banda dos RR.?
Como é sabido, e segundo as regras gerais da responsabilidade civil, a indemnização respeita unicamente ao sujeito passivo directo da ofensa ou do não cumprimento da obrigação, e não a qualquer terceiro só reflexa ou indirectamente lesado. Assim, em princípio, é titular do direito a indemnização aquiliana a vítima ou pessoa directamente afectada pelo acto ilícito no seu património ou personalidade ou é titular do direito de indemnização a pessoa a quem pertence o direito subjectivo ou interesse juridicamente protegido que a conduta ilícita violou. E sem dúvida os direitos de personalidade são direitos absolutos e juridicamente protegidos erga omnes.

Como determina o art. 483º do CC, no tocante à responsabilidade civil por factos ilícitos, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. E só em casos excepcionais a lei admite que outras pessoas, além do ofendido, tenham direito a exigir indemnização, ou que esta se alargue a terceiros só mediata ou reflexamente prejudicados (cfr. “Direito das Obrigações”, p. 399, de Almeida Costa, “Das Obrigações em Geral”, vol. 1º, p.646, de Antunes Varela e “Direito das Obrigações”, vol. 1º, p. 355, de Menezes Leitão).

E prevendo o n.º1 do art. 496º a indemnização por danos não patrimoniais causados por acto ilícito directamente ofensivo dos direitos de personalidade, só excepcionalmente, porém, o legislador confere a terceiros o direito a indemnização por danos não patrimoniais, reflexa ou mediatamente sofridos, como flui dos n.ºs 2 e 3 desse artigo. E tal justificação decorre da ofensa a um bem particularmente importante ou o bem mais importante do ser humano, como seja a vida de um parente próximo. E também só excepcionalmente, no âmbito patrimonial, a lei confere indemnização a terceiros (art. 495º do CC).

No caso sub judice, os AA. apenas invocaram a ofensa directa da personalidade do seu filho já falecido que, devido a actos que dizem ilícitos por banda dos RR., ficou injustamente associado ao estigma da ingestão de bebidas alcoólicas.
Como expressamente alegaram no art. 113º da petição, “muito passaram os AA. a sofrer, desde então, pelo injusto estigma de alcoolismo irresponsável que manchou para sempre a memória do filho junto dos vivos, sabendo como sabem que tal não corresponde, nunca correspondeu, à realidade”. E tal afirmação é corroborada na conclusão 5ª da alegação de recurso, mais uma vez caracterizando, sem margem para dúvidas, os danos não patrimoniais que dizem ter sofrido. Asseveraram, pois, apenas ser atingidos reflexa ou indirectamente pela conduta que imputam aos RR., pelo que só lhes assiste, em defesa dos direitos da personalidade daquele, a legitimidade de recorrer a tribunal ao abrigo do n.º2 do art. 71º do CC. Não sendo, pois, titulares “ex vi legis” de qualquer direito a indemnização por alegados danos não patrimoniais (sofrimentos) que só mediatamente lhes foram causados com a alegada ofensa directa à personalidade de pessoa defunta.
Nesta conformidade, tal como é estruturada a relação material invocada na petição inicial, os AA. não são titulares de qualquer direito ou interesse imediatamente lesado pelos factos ilícitos imputados aos RR., daí que sejam parte ilegítima para reclamar a indemnização por danos não patrimoniais próprios que dizem ter sofrido e que pretendem ver ressarcidos e compensados com a quantia de € 12.500.

Em suma, pelas razões que se deixam alinhadas, gozam os AA. exclusivamente de legitimidade processual para pedir a condenação dos RR. ao pagamento da indemnização no montante de € 17.500, por alegada ofensa directa à personalidade, honra e reputação do seu falecido filho. Consequentemente, a tese dos Agravantes no sentido da legitimidade activa, só em parte merece ser sufragada.



III)- DECISÃO

Pelos motivos expostos, acorda-se em:
1-Conceder em parte provimento ao recurso.
2-Revogar em parte o despacho impugnado e julgar parcialmente procedente a invocada excepção de ilegitimidade activa, considerando os AA. parte legítima apenas para pedir a indemnização por alegada ofensa directa à personalidade do seu falecido filho, e ficando, em consequência, os RR. absolvidos da instância relativamente ao outro pedido de indemnização por danos não patrimoniais que os AA. dizem ter sofrido.
3-Determinar o prosseguimento da acção, desde logo apreciando as demais excepções suscitadas pelos RR.
4- Condenar nas custas a parte vencida a final.
COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj. Des. Távora Vítor).