Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 03/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 1380.º E 1381.º DO C.C.
Sumário:

1. Provados que estão os pressupostos exigidos pelo art. 1380º do CC para o exercício do direito de preferência, incumbe aos RR, para lograrem afastar o mesmo, a alegação e prova de que a sua aquisição preenche alguma das hipóteses contempladas no art. 1381º seguinte, nomeadamente a da sua al. a).
2. O fim que releva para efeitos da aplicação desta aludida excepção não é aquele a que o terreno esteja afectado à data da sua alienação, mas sim o que o adquirente pretende dar-lhe.
3. Sendo certo que o destino do terreno a outro fim que não a cultura há-de constar de um propósito imediato, de se revelar por elementos objectivos e de ser legalmente possível, sendo irrelevante, contudo, o que a tal propósito conste da respectiva escritura pública de aquisição.
4. A demonstração do fim a que o prédio é destinado pode ser feita por qualquer meio de prova.
Decisão Texto Integral:


Apelação nº 50/04

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


AA veio intentar acção, com processo sumário, contra BB e marido CC e DD e mulher EE, pedindo que se declare o seu direito de preferência relativamente ao negócio melhor explicitado no art. 1º da p. i. e que se condenem os RR adquirentes a verem-se substituídos, na posição de adquirentes, pela A., para quem será transferida a propriedade do imóvel transaccionado.
Alega, para tanto, e em suma:
É dona e possuidora de um prédio rústico que melhor identifica, com o qual confina a norte e nascente um outro prédio rústico, também melhor identificado na p. i., que os primeiros RR, por escritura pública celebrada em 26/11/98, declararam vender ao segundo R. marido, que igualmente o declarou comprar, pelo preço de 1.000.000$00.
Ambos os prédios se destinam a cultura, não sendo o R. adquirente proprietário de qualquer prédio rústico ou afecto a cultura agrícola confinante com o que declarou comprar.
À A. não lhe foi dado conhecimento do negócio, pretenden-
do, porém, exercer o seu direito de preferência.
Citados os RR, vieram os segundos contestar, alegando, também em síntese:
O prédio transaccionado não se destina a qualquer cultura, contrariamente ao que sucede com o prédio da A., tendo os RR adquirido o mesmo com o objectivo de o destinarem a logradouro de um lote para construção que com ele confina em toda a extensão da sua confrontação norte.
Deduzem, ainda, pedido reconvencional, pedindo a condenação da A., no caso da procedência da acção, a pagar-lhes a quantia de 90.000$00, que despenderam já na elaboração de um projecto para construção de uma piscina e churrasqueira a implantar no prédio que adquiriram e que ora está em causa e na limpeza do mesmo.
Respondeu a A., pugnando pela procedência do seu pedido e pela improcedência da reconvenção.
Foi proferido despacho saneador, sem recurso, tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória. Sem reclamação.
Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto da base instrutória. Também sem reclamação das partes.
Proferiu, depois, a senhora Juíza a sua sentença, na qual, julgando a acção improcedente, absolveu os réus dos pedidos.
Inconformada, veio a A. interpor o presente recurso de apelação, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - A A. instaurou a presente acção pedindo que se declarasse o seu direito de preferência na venda do imóvel referido no art. 1º da p. i., com base no disposto no art. 1380º do CC, pois que, e na verdade, ambos os prédios - o alienado e o da A. - se destinam à cultura de oliveiras e vinha (resposta ao quesito 1º);
2ª - Os RR adquiriram o prédio e de imediato procederam á realização de benfeitorias indispensáveis à conservação do terreno e oliveiras nele existentes (respostas aos quesitos 19º e 21º), donde resulta que esse - cultura de olival - foi também o destino que quiseram dar ao prédio;
3ª - O Tribunal julgou a acção improcedente por considerar que os RR adquiriram o referido prédio com a intenção de o destinarem ao logradouro do lote nº 5, não o destinando a cultura nem o pretendendo destinar a esse fim;
4ª - Porém, só depois de serem citados na presente acção engendraram uma solução que lhes permitisse afastar o invocado direito de preferência, mandando elaborar um projecto de construção e requerendo o licenciamento de uma piscina e churrasqueira, que a todo o custo insistiram em levar a cabo, mesmo antes de iniciarem a construção da moradia que visam apoiar, tudo isto unicamente como forma de enganar o Tribunal;
5ª - O que constitui um uso abusivo dos meios processuais ao seu alcance;
6ª - De qualquer modo não poderá esta actuação singrar, pois que o projecto, real ou irreal, de utilização futura é irrelevante, pois o que importa é o fim objectivo do prédio e não a afectação subjectiva dos adquirentes ou o fim que estes lhe pretendem dar;
7ª - Se estes pretendem afastar o destino objectivo do prédio é necessário apoiar tal pretensão em elementos objectivos, sendo necessário objectivar, no momento do negócio, a intenção dos adquirentes, mediante declaração exarada na própria escritura, estando, doutra forma, descoberto o expediente para acabar com a preferência prevista no art. 1380º do CC;
8ª- A decisão recorrida violou, alem do mais, o disposto nos arts 1380º e 1381º do CC;
9ª- A assim não se entender, estando os acórdãos do Tribunal da Relação que cita em contradição com os invocados na sentença recorrida, também proferidos pelo Tribunal da Relação, versando sobre a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação, requer que se proceda à uniformização de jurisprudência
Contra-alegaram os segundos RR apelados, pugnando pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

Vem dado como PROVADO da 1ª instância:

Em 26/11/98, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Nelas, BB e marido CC declararam vender a DD, pelo preço de 1.000.000$00, que, por sua vez, declarou comprar-lhes, o prédio rústico sito na Vale de Senhorim, na freguesia e concelho de Nelas, composto de terra de cultura de regadio com oliveiras, fruteiras e vinha, com a área de 800 m2, inscrito na matriz rústica da freguesia de Nelas, sob o art. 4903, com o valor patrimonial de 8.345$00, descrito na CRP de Nelas sob o nº 1111, conforme doc. de fls 8 aqui dado como reproduzido - al. A) dos factos assentes;
Encontra-se registada a favor da A. a aquisição do prédio rústico sito no Vale de Senhorim, composto por terra de semeadura e vinha, confrontando a norte com Afonso Rodrigues e outros, nascente com António Augusto Borges e Augusto Alves Monteiro, sul com Dr. Neves Ferreira e José dos Santos e poente com Miguel Lopes, conforme doc. de fls 12 e segs aqui dado como reproduzido - al. B);
Este prédio está inscrito na matriz rústica sob o nº 4401 - al. C);
O prédio identificado em A) confronta actualmente a norte e nascente com o prédio referido em B) - al. D);
O R. BB não despendeu qualquer quantia a título de imposto de sisa pela aquisição aludida em A) - al. E);
Os prédios referidos em A) e B) têm área inferior a 20.000 m2 - al. F);
Com os referidos emolumentos notariais, os RR BB e EE despenderam a quantia de 19.090$00, tendo despendido 10.250$00 com o registo de aquisição - als G) e H);
À A. não foi dado conhecimento do negócio a que se refere a al. A) - al. I);
Encontra-se registado a favor dos RR o facto relativo á aquisição do lote 5, sito ao Vale de Senhorim, a confrontar do norte com caminho público, sul com lote 6, nascente com lote 7 e poente com Manuel Lobão, conforme doc. de fls 46 e segs aqui dado como reproduzido - al. J);
Os prédios identificados em A) e B) destinam-se a cultura de oliveira e vinha - resposta ao quesito 1º;
O prédio identificado em A) confronta actualmente a sul com a via pública e com os lotes para construção desanexados do prédio rústico que foi propriedade de José Marques Loureiro, nomeadamente com o lote 5, identificado em J) - resposta ao quesito 2º;
No prédio identificado em A), na data da escritura e pelo menos nos cinco anos anteriores, as oliveiras e as videiras não eram cuidadas - resposta ao quesito 3º;
O prédio referido em A) tinha silvas, ervas altas, oliveiras e videiras - resposta ao quesito 4º;
O prédio da A. aludido em B) destina-se a cultura de vinha e oliveiras - resposta ao quesito 5º;
A A. para fazer a ligação do seu prédio, identificado em B), à via pública situada a sul, necessita do prédio dos RR - resposta ao quesito 7º;
Entre a via pública e o prédio referido em B) situa-se apenas o prédio identificado em A), existindo, após este, um loteamento no qual se encontram construídas diversas moradias e apartamentos - respostas aos quesitos 8º e 9º;
O prédio identificado em J) confina, em toda a sua extensão, com o prédio identificado em A) - resposta ao quesito 10º;
Os RR compraram o prédio referido em A) para o destinarem a logradouro do lote para construção referido em J), nele plan-
tando relva, jardins e construções complementares á habitação que pretendem construir no prédio identificado em A) - respos-
tas aos quesitos 11º e 12º;
Não destinaram o prédio a culturas nem (a estas) o preten-
dendo destinar - resposta ao quesito 13º;
Em 28/5/99 os RR BB e Maria Luísa apresentaram na CM de Nelas o projecto de arquitectura para a construção da habitação - resposta ao quesito 14º;
E em 1/6/99 apresentaram na mesma instituição o projecto para construção da garagem, churrasqueira e piscina, sendo estas duas últimas no terreno identificado em A) - respostas aos quesitos 15º e 16º;
Pela elaboração do projecto de construção da piscina e churrasqueira os RR BB e mulher pagaram a quantia de 70.000$00 - resposta ao quesito 17º;
A aprovação de tal projecto valorizará o terreno identificado em A), que assim fica apto a que nele se iniciem construções - resposta ao quesito 18º;
Aqueles RR procederam à limpeza do terreno identificado em A), cortando ervas e silvas, a qual era indispensável para a conservação do mesmo terreno e das oliveiras no mesmo existentes - respostas aos quesitos 19º e 21º.

Podendo, ainda, face ao que dos autos consta, dar-se como assente:

A acção de preferência foi instaurada em 22/3/99, tendo os RR sido citados para contestarem por carta registada de 15/4/99 - fls 2 e 30, respectivamente.

Os RR BB e mulher apresentaram a sua contestação em Juízo no dia 30/6/99 - fls 38.

Em 28/5/99 os RR BB e mulher apresentaram na CM de Nelas um pedido de aprovação de um projecto de arquitectura e de licenciamento de uma obra de "construção nova moradia" que será realizada no lote 5, sita em Vale de Senhorim, Nelas, descrito na CRP de Nelas sob o nº 2943 - fls 156.

A fls 8 e 9 desse projecto de arquitectura constam a planta e alçados de uma garagem e a planta da construção de uma piscina - fls 78 e 78-A.

A tal processo se refere o processo de obras nº 185/99, deferido por despacho do senhor Presidente da CM de 29/9/99 - fls 184.

Em 1/6/99 os mesmos RR apresentaram na CM de Nelas um projecto de arquitectura e de licenciamento da construção de uma nova piscina no prédio rústico sito em Vale de Senhorim, Nelas, inscrito na CRP de Nelas sob o nº 1111.
O qual se refere ao processo de obras nº 192/99, deferido conforme informação, em 7/10/99.
Constando o seguinte no espaço reservado a informações e despachos dos serviços:
"Dado que no local pretendido pelo requerente está projectado um arruamento, o requerente terá de apresentar nova implantação de forma a que a piscina seja implantada a 5 m. do arruamento projectado do qual se junta cópia.
(segue-se rubrica)
30/6/99"
"Cumpridos os requisitos.
Nada o opor à construção dado que cumpre o disposto no D.L. 5/97, de 31/3.
(segue-se rubrica)
27/9/99 - fls 186 a 189.

Em 1/6/99 os ainda mesmos RR apresentaram na CM de Nelas um projecto de arquitectura e de licenciamento da construção de uma nova churrasqueira no prédio rústico sito em Vale de Senhorim, Nelas, inscrito na CRP de Nelas sob o nº 1111.
O qual se refere ao processo de obras nº 194/99, deferido conforme informação, em 25/8/99.
Constando o seguinte no espaço reservado a informações e despachos dos serviços:
"Dado que no local pretendido pelo requerente está projectado um arruamento, o requerente terá de apresentar nova implantação de forma a que a churrasqueira seja implantada a 22 m. do limite do arruamento projectado do qual se junta cópia.
(segue-se rubrica)
30/6/99"
"Cumpridos os requisitos.
Nada o opor à aprovação do projecto de arquitectura dado que:
1 - As paredes exteriores terão que ser pintadas com cor suave e clara.
2 - A telha a aplicar terá que ser cerâmica do tipo regional.
13/8/99" - fls 218 a 233. D.L. 5/97, de 31/3.
(segue-se rubrica)

Na CRP de Nelas, sob o nº 1111 encontra-se descrito o seguinte prédio:
"Rústico - Vale de Senhorim - Nelas - norte e nascente Joaquim Rodrigues Pereira Ruivo; sul José Marques Loureiro; poente, caminho - cultura de regadio com oliveiras, fruteiras e vinha - área: 800 m2 - rend. col. 393$00 - artigo: 4.903." - fls 14.

Na mesma CRP, sob o nº 2943 encontra-se descrito o seguinte prédio:
"Urbano - Vale de Senhorim de baixo - lote 5 - terreno ara construção - 665 m2 - norte, caminho público; sul, lote 6; nascente, lote 7; poente, Manuel Lobão - v.v. 1.500.000$00 - artigo omisso. Desanexado do descrito sob o nº 01315." - fls 47.

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É sabido que a delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso - arts 664º, 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC , bem como, entre muitos outros, Acs do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80 e da RP de 25/11/93, CJ S Ano II, T. 3, p. 77, Act. Jur. Ano III, nº 17, p. 3, Bol. 359, p. 522 e CJ Ano XVIII, T. 5, p. 232, respectivamente.

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Sendo, assim, estas as questões suscitadas pela apelante de que havemos de tratar nesta apelação:
a) A violação, por banda da decisão recorrida, do disposto nos arts 1380º e 1381º do CC, já que os apelados só depois de terem sido citados engendraram uma solução para obviarem ao exercício do direito de preferência invocado pela A., requerendo o licenciamento de uma piscina e churrasqueira para o terreno em questão, sendo ainda certo que tal projecto de implantação, de utilização futura, é irrelevante, importando que a intenção da destinação do terreno a fim diferente da cultura conste no momento do negócio, de declaração exarada na própria escritura de compra e venda;
b) A uniformização de jurisprudência a que devem dar lugar, no caso de improcedência da pretensão da apelante, os acórdãos do Tribunal da Relação proferidos contraditoriamente sobre a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação.

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Comecemos, naturalmente, pela primeira questão, a qual contende com o mérito da acção:

Entendeu a senhora Juíza a quo - e bem - que provados ficaram, em princípio, os pressupostos que levariam à procedência do exercício do direito de preferência pela A. invocado no tocante à compra e venda do prédio rústico aludido em A), que os primeiros RR venderam ao R. marido - cfr., ainda, art. 1380º do CC.
Concluindo, porém, de seguida que, in casu, a A. não goza do direito que se arroga, já que o mesmo está excluído por força do disposto no art. 1381º, al. a) do mesmo diploma legal, pois os RR compradores, ao adquirirem o questionado prédio rústico, o fizeram com a intenção de o destinarem a logradouro do lote 5, que já lhes pertencia, e não a culturas.
E que, não tendo a A. cumprido o ónus da prova que sob si impendia, teria que ver naufragar a acção.

Ora bem:
Esta última parte da fundamentação da senhora Juíza a quo já não pode merecer o nosso aplauso, já que se constata que a A. cumpriu o ónus probatório que a lei lhe acarreta, pois fez prova dos pressupostos exigidos pelo art. 1380º, nº 1 antes aludido.
Incumbindo, por seu turno, aos RR, para lograrem afastar o direito de preferência da A., provar que a sua aquisição preenche alguma das hipóteses mencionadas no também referido art. 1381º, nomeadamente, a prevista na sua al. a).
Pois, tratando-se de um facto impeditivo do exercício do direito da A., a sua alegação e prova compete aos RR compradores - art. 342º, nº 2 do CC.

Vejamos, pois, se os mesmos RR almejaram a prova de tal
impedimento ao exercício do direito de preferência por banda da A.
Havendo, antes de mais, de precisarmos os conceitos que a tal respeito entendemos deverem ser observados.
Conforme determina o mencionado art. 1381º, al. a), não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando, nomeadamente, a alienação em causa corresponda a um terreno que se destine a um fim que não seja a cultura, harmonizando-se perfeitamente tal normativo com o também preceituado no art. 1377º, al. a), ultima parte do mesmo diploma legal - P. Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. III, p. 275 e Rodrigues Bastos, Notas ao CC, vol. V, p. 139.
Sendo certo que, o fim que releva para efeitos de aplicação de tal excepção não é aquele a que o terreno esteja afectado á data da alienação, mas antes o que o adquirente pretenda dar-lhe - P. Lima e A. Varela, ob. cit., p. 276.
De outro modo, a efectiva aquisição de um terreno de cultura manifestamente para outro fim, sempre ficaria dependente da boa vontade dos proprietários confinantes - H.Mesquita, Parecer in CJ Ano XI, T. 5, p. 52.
Mas, o destino do terreno a outro fim que não a cultura há-de constar de um propósito imediato e de revelar-se por elementos objectivos, sendo irrelevante o que a tal propósito conste na escritura de aquisição - Rodrigues Bastos, ob. e pag. cit.
Ou seja, não é indispensável, como pretende a apelante, que tal propósito seja exarado na respectiva escritura pública, nem tal é bastante, pois, se assim sucedesse fácil seria iludir a norma de ordem pública do citado art. 1380º - H. Mesquita, ob. cit. e Ac. do STJ de 19/3/98, CJ S. Ano VI, T. 1, p. 145.
Podendo, assim, a demonstração do fim a que o prédio se destina ser feita por qualquer meio de prova.
E embora o propósito do adquirente de utilizar o terreno que adquire para fim que não seja a cultura deva ser imediato, não será, porém, também a nosso ver, de exigir que a respectiva afectação do mesmo a tal finalidade - que não a cultura - exista já ao tempo do negócio - Ac. do STJ de 14/3/2002, CJ S. Ano X, T. 1, p. 133.
Tendo, porém, o adquirente de alegar e provar, não só a sua intenção de uso do prédio, mas também a possibilidade deste ser afectado a tal fim diferente, devendo, assim, provar, alem da dita intenção, que a efectivação desta é legalmente possível.
Pois que a possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente deve depender, não dos critérios eventualmente egoístas dos proprietários confinantes, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da comunidade, de acordo com os existentes planos do ordenamento do território.
Não se devendo, contudo, exigir que o terreno, à data da sua aquisição, já esteja efectivamente afectado a tal fim diferente da cultura, pois é normal que o licenciamento administrativo só se obtenha depois da aquisição - H. Mesquita, ob. cit. citado Ac. do STJ de 19/3/98.
De facto, não obstante o direito de preferência se ter como adquirido logo que se efectiva a alienação, ficando o comprador de coisa sujeita a tal direito em situação idêntica ao que contrata sob condição resolutiva (Ac. da RP de 21/1/93, http//www.dgsi.pt/jtrp), só a partir do negócio é que este terá legitimidade para requerer o necessário licenciamento e encetar diligências tendentes à pretendida alteração do fim do terreno em causa.

Ora, a propósito ficou provado o seguinte:
Os prédios A) e B) - o prédio adquirido pelo R. António Cabral e o prédio da A. - destinam-se a cultura de oliveira e vinha, não sendo as oliveiras e videiras daquele cuidadas há pelo menos cinco anos, tendo em conta a data da escritura, existindo no mesmo silvas e ervas altas.
Os RR compraram o prédio para o destinarem a logradouro do lote 5 que já antes haviam adquirido e que confina em toda a sua extensão norte com aquele, para nele plantarem relva, fazerem jardins e construções complementares à habitação que pretendem construir no dito lote.
Não o destinando a cultura.
Em 1/6/99 apresentaram os RR António Cabral e mulher na CM de Nelas dois projectos e respectivos pedidos de licenciamento, para construção de uma piscina e churrasqueira, respectivamen-
te, a implantar no terreno que adquiriram. Os quais foram aprovados.
O que quer dizer, que os RR adquirentes conseguiram provar que a sua intenção foi dar ao terreno outra afectação ou destino que não a cultura e que nada se opõe a que tal intenção se concretize, sendo a alteração da finalidade do prédio legalmente possível.
Assim tendo provado o facto impeditivo do exercício do direito da A.
E, nem se diga que tal conclusão é prejudicada pelo facto de também se ter provado que os RR compradores limparam o terreno, cortando ervas e silvas, o que era indispensável, quer para a conservação do mesmo, quer para a conservação das oliveiras.
Pois que nada impede que, destinando-se o terreno em causa a logradouro da sua casa de habitação, que pretendem construir no lote 5, os RR queiram nele conservar as oliveiras, não para cultura, em si, mas também, e talvez sobretudo, para embelezamento do local.
Não fazendo sentido, não sendo esse o procedimento do homem comum, iludir o exercício do direito de preferência pela lei contemplado, com apresentação de projectos de arquitectura e licenciamento em terreno que, segundo tudo a leva a crer, pelo seu posicionamento actual - já à data da aquisição - parece mais apto a lazer do que a mera cultura.

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Agora, a segunda questão:

Não entendemos bem se a apelante suscita aqui esta questão, como parece resultar das conclusões da sua alegação, ou se apenas dá notícia que pretenderá posteriormente, caso a solução não a favoreça, exercitar a faculdade que o art. 678º, nº 4 do CPC lhe pode conceder.
De qualquer modo, sempre se dirá:
A uniformização da jurisprudência não está legalmente prevista para a 2ª instância.
Antes o estando, nas condições aí previstas, para os casos do julgamento ampliado de revista a que alude o art. 732º-A do CPC.
Sendo este um mecanismo destinado a conseguir a uniformização da jurisprudência no STJ - Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. III, p. 141 e ss com interessante desenvolvimento histórico de tal processo.
Sendo a uniformização da jurisprudência função específica do STJ - Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil. p. 205.
Mas estamos em julgamento em sede de Tribunal de Relação, no qual não existe disposição paralela com a ora citada.
Não pode, assim, pelo menos para já, proceder a pretensão da apelante.

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Resumindo, para concluir:

Provados pela A. os pressupostos pelo art. 1380º do CC exigidos para o exercício do seu direito de preferência, incumbe aos RR, para lograrem afastar o mesmo, a alegação e prova de que a sua aquisição preenche alguma das hipóteses contempladas no art. 1381º seguinte, nomeadamente a da al. a).

O fim que releva para efeitos de aplicação da excepção consagrada na aludida al. a) não é aquele a que o terreno esteja afectado à data da alienação, mas sim o que o adquirente pretenda dar-lhe.

Mas o destino do terreno a outro fim que não a cultura há-de constar de um propósito imediato e de se revelar por elementos objectivos, sendo irrelevante o que a tal propósito conste da respectiva escritura pública de aquisição.

A demonstração do fim a que o prédio é destinado pode, assim, ser feita por qualquer meio de prova.

Não sendo, porém, de exigir que a afectação a outro fim que não a cultura exista já no momento do negócio, tendo, contudo, o adquirente que demonstrar que a mesma é legalmente admissível.

A uniformização da jurisprudência é função específica do Supremo Tribunal de Justiça.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em se julgar a apelação improcedente, mantendo-se, por razões não perfeitamente idênticas, a decisão de 1ª instância.
Custas pela apelante.