Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
433/07.1GTLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MOREIRA MIRA
Descritores: ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 391º-C; 283.º, N.º 5 E 277.º, N.º 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: I. - Com as alterações produzidas pela 15ª Alteração do Código de Processo Penal no processo abreviado, o legislador, embora tendo suprimido o debate instrutório, não eliminou a obrigatoriedade da notificação da acusação ao assistente, ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, bem como ao respectivo defensor ou advogado.
II. – A materialização efectiva de um processo justo e equitativo exige que, para além da formalização de uma acusação, os sujeitos processuais interessados tomem conhecimento dos seus termos de forma a poderem exercitar, com plenitude, os direitos constitucionalmente consagrados, nomeadamente o do contraditório (cfr. artigo 32.º da CRP).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I. Relatório:
Nos presentes autos de processo abreviado, registados sob o n.º 433/07.1GTLRA, após distribuição para julgamento, o M.mo Juiz do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, por despacho de 08-10-2007, ordenou a devolução do processo aos Serviços do Ministério Público para que aí fosse cumprido o disposto nos artigos 283.º, n.º 5, e 277.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal. 

2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desse despacho, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – No dia 15 de Setembro de 2007 entrou em vigor a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que introduziu alterações ao Código de Processo Penal, designadamente no que concerne à tramitação e regime dos processos abreviados.

2.ª – Nada se diz, nesta nova redacção conferida ao Código de Processo Penal, quanto à necessidade de notificar o arguido da acusação contra si deduzida, enquanto acto de inquérito, não havendo remissão expressa para o disposto nos aludidos artigos 283.º, n.ºs 5 e 6, e 277.º, n.º 3, daquele diploma legal.

3.ª – A decisão sobre a necessidade de notificação ao arguido da acusação deduzida em processo abreviado terá de ser aferida à luz dos princípios jurídico-constitucionais vigentes e pela ponderação da ratio de tal notificação.

4.ª – A referida Lei n.º 48/2007, que entrou em vigor no passado dia 15 de Setembro, veio alterar por completo a redacção do referido artigo 391.º-C, não sendo agora admissível ao arguido requerer a realização da instrução.

5.ª – O não cumprimento da notificação da acusação ao arguido pelos Serviços do Ministério Público, reservando-se tal acto para o momento em que aquela é recebida, não contende com os direitos de defesa daquele, sendo o procedimento adoptado nas restantes formas de processo especial – sumário e sumaríssimo.

6.ª – Ao arguido assiste-lhe sempre o direito de invocar a existência de nulidades ou irregularidades na acusação contra si deduzida, e no momento determinado pelo artigo 120.º do Código de Processo Penal.

7.ª – No caso em apreço, e perante a natureza do crime imputado ao arguido na acusação contra si deduzida, não existe quem possa ter a faculdade de se constituir Assistente ou mesmo de deduzir pedido de indemnização civil.

8.ª – Por tal, não concordamos com o teor do despacho proferido pela Meritíssima Juiz que ordena a devolução do processo aos Serviços do Ministério Público para que aí se cumpra o disposto nos artigos 283.º, n.ºs 5 e 6, e 277.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal.

9.ª – Consideramos, ao invés, que, no caso concreto, e perante a dedução de acusação sob a forma de processo abreviado, a notificação da acusação ao arguido deverá ser feita pela competente Secção Judicial, após o recebimento pelo Juiz.

O arguido não apresentou resposta ao recurso.

3. Subidos os autos a esta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
4. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II. Fundamentação:

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

No caso sub judice, a questão solvenda consiste em apreciar se, no âmbito dos autos de processo abreviado em curso, e em face das alterações introduzidas à estrutura normativa desse tipo especial de processo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, deve ser cumprido pelo Ministério Público o disposto no artigos 283.º, n.ºs 5 e 6, e 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

2. Do mérito do recurso:

3.1. Elementos relevantes a considerar:

- O Magistrado do Ministério Público, por despacho de 28-09-2007, em processo abreviado, deduziu acusação contra Carlos Manuel dos Santos Ferreira, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

- Em 13-10-2007, sem acto prévio de notificação da acusação ao arguido, foram os autos remetidos à distribuição.

- Proferiu, então, o M.mo Juiz titular do Juízo a que os autos foram distribuídos o despacho recorrido, do seguinte teor:

«Constata-se do exame dos presentes autos que estes foram remetidos à distribuição sem que o arguido haja sido notificado da acusação.

Está-se em crer que tal modo de agir, ao contrário de traduzir um qualquer lapso dos serviços, representa uma interpretação mais ou menos reflectida das alterações introduzidas ao CPPenal pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto. Na verdade, a citada Lei reformulou as regras do processo abreviado, designadamente eliminando o anterior art. 391.º-C onde se encontrava prevista, mediante requerimento do arguido, a realização do debate instrutório – de resto, tal eliminação é internamente coerente com a orientação do novo CPPenal que afasta a existência da instrução nas formas de processo especiais (cfr. n.º 3 do artigo 286.º do CPPenal).

Ora, a revogação do anterior e referido art. 391.º-C do CPPenal, na redacção existente antes da vigência da sobredita Lei 48/2007, significou, identicamente, a extinção da norma onde estava implícita a necessidade de ocorrer a notificação da acusação.

Todavia, a enunciada alteração legal não significa que tenha deixado de se impor a notificação do arguido do despacho acusatório.

Por um lado, a normatividade anteriormente vigente a propósito desta norma também só pressupunha a notificação da acusação, nomeadamente a propósito da possibilidade de requerer a realização de debate instrutório – ou seja, o hiato de actos entre o anterior 391.º B (que legislava sobre a acusação neste tipo de processos) e o 391.º C (que disciplinava as condições de realização do debate instrutório, bem como a tramitação a este subsequente, na face da peculiar instrução típica deste processo especial) teria de ser preenchido com a convocação das normas do processo comum, designadamente as do n.º 5 e 6 do art. 283.º, sendo certo que a do n.º 5 remete expressamente para o n.º 3 do art. 277.º, todas do CPPenal.

Ora, não obstante a já referida revogação da disciplina atinente ao debate instrutório nos processos abreviados, tal não significa que a notificação da acusação não tenha de ocorrer.

Efectiva e primordialmente porque apesar de o processo abreviado visar uma forma mais expedita de resolver uma espécie de criminalidade ainda bagatelar, este não é alheio às garantias de defesa do arguido; ora um desses direitos é, exactamente, o de conhecer quais os factos e a subsunção jurídica preconizada pelo acusador. Naturalmente, tal direito impõe a necessidade do cumprimento dos ainda vigentes arts. 283.º, 5 e 6 e 277.º, 3 do CPPenal.

Por outro lado, não obstante estar vedado ao arguido requerer qualquer espécie de diligência instrutória, a notificação da acusação ainda continua a ter inequívoca relevância para ele (pelas razões já apontadas) e para outros intervenientes processuais.

Com efeito, é a partir desse acto que o assistente tem a faculdade de aderir à acusação do MP (cfr. art. 284.º do CPPenal) e que a parte civil tem a faculdade de, querendo, deduzir o pedido de indemnização civil. Ora, é indiscutível que mesmo a nova versão do processo abreviado admite a intervenção de assistentes e de partes civis, o que significa que estas terão de ver assegurada a possibilidade de intervirem no processo nos termos dos arts. 71.º e segs. do CPPenal.

Face ao exposto, é patente a necessidade de ser notificada ao arguido e aos restantes intervenientes processuais, ainda como acto de inquérito, a acusação deduzida.

Assim, impõe-se a devolução do presente processo aos Serviços do MP para que se cumpra o disposto no artigo 283.º, 5 e 6 e 277.º, 3 do CPPenal».

3.2. O direito:

Na redacção que originariamente lhe foi conferida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, dispunha do seguinte modo o artigo 391.º-C, n.º 1, do Código de Processo Penal:

«No prazo de 10 dias a contar da notificação da acusação, o arguido pode requerer ao juiz de instrução a realização de debate instrutório, com as finalidades a que se refere o artigo 298.º».

Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque[1], «o processo abreviado foi criado pela Lei n.º 59/98, como uma forma gémea do processo comum, com uma verdadeira particularidade: um “debate instrutório sem instrução”.(…) Tratava-se de uma “mini-instrução”, que visava implicar o juiz de instrução com a acusação».

Daí a referência normativa do artigo 286.º, n.º 3, do CPP, à inexistência de instrução nas formas de processo especial, sem prejuízo do disposto no citado artigo 391.º-C.

A Lei n.º 48/2007, de 29.08, que procedeu à última (15.ª) alteração ao Código de Processo Penal, conferiu nova redacção ao artigo 391.º-C, sendo de destacar a supressão do “debate instrutório” e a dação ao processo abreviado, no restante contexto, de uma estrutura normativa em tudo semelhante ao do processo comum, com acusação (pública e/ou particular), pedido de indemnização civil, despacho de saneamento dos autos e julgamento de acordo com as regras contidas nos artigos 321.º e segs. da lei adjectiva penal, salvo as pequenas excepções, justificadas por motivos de especial celeridade processual, contidas nos artigos 391-D e 391-E.

Uma primeira ideia fundamental importa desde já reter: a alusão da anterior redacção do artigo 391.º-C à “notificação da acusação” surgia contextualizada por referência à consagração legislativa de “um debate instrutório” e ao prazo em que tal diligência poderia ser requerida. Ou seja, não era desígnio específico daquela norma estabelecer a obrigatoriedade da notificação na forma de processo abreviado, mas tão só consagrar a existência do debate instrutório e regular as condições processuais da sua realização.

Como bem se acentua no despacho recorrido, «o hiato de actos entre o anterior 391.º-B (que legislava sobre a acusação neste tipo de processos) e o 391-C (que disciplinava as condições de realização do debate instrutório, bem como a tramitação a este subsequente, na fase da peculiar instrução típica deste processo especial) teria de ser preenchido com a convocação das normas do processo comum» relativas à notificação da acusação.

A nova lei, tendo suprimido o debate instrutório, não eliminou, contudo, a obrigatoriedade da notificação da acusação ao assistente, ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 75.º do CPP, bem como ao respectivo defensor ou advogado.

Da conjugação dos artigos 283.º, n.ºs 5 e 6, e 277.º, n.º 3, do CPP, decorre que, também no domínio do processo abreviado, a acusação do Ministério Público é comunicada aos supra indicados intervenientes/sujeitos processuais, pelos meios referidos no art. 283/6, mas “prosseguindo o processo quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (art. 283.º/3).

Outro entendimento seria manifestamente ofensivo das garantias de defesa do arguido.

Para haver processo justo, equitativo, não basta haver acusação. Tem de haver conhecimento do seu teor, para que o arguido possa exercer os seus direitos constitucionais, nomeadamente o contraditório (cfr. artigo 32.º da CRP).

Como se acentua no n.º 3 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - que vigora na ordem interna portuguesa com valor infra constitucional, face ao teor do artigo 8.º, n.º 2 da CRP -, o acusado não deve ser colocado numa posição de desvantagem face aos seus oponentes, o que, no mínimo, importa o direito de ser informado, no mais curto prazo, da natureza e da causa da acusação contra si formulada, e de dispor do tempo e dos meios necessários para se poder defender. 

Em diferente plano de análise, o próprio Estado, representado pelo Ministério Público, tem interesse na concretização da notificação, pois constitui uma causa de suspensão e interrupção da prescrição do procedimento criminal [artigos 120.º, n.º 1, al. b) e 121.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal].

Em processo abreviado, tal como sucede em processo comum, a violação do n.º 5 do artigo 283.º do CPP, por não estar prevista no elenco das nulidades previstas nos arts. 121.º e 122.º do Código Penal, constitui irregularidade do art. 123.º do mesmo diploma[2], que, por afectar, como ficou dito, direitos fundamentais do arguido, conduz à realização do acto omitido (notificação da acusação ao arguido, na sua própria pessoa e na do defensor a nomear – artigo 113.º, n.º 7, e 64.º, n.º 3, do CPP).

Pelo exposto, o recurso não merece provimento.

III. Decisão:

Posto o que precede, os Juízes da Secção Criminal da Relação de Coimbra negam provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.


[1] In Comentário do Código de Processo Penal, pág. 977.
[2] Neste sentido, v.g., Acórdãos da Relação de Lisboa de 08-11-2000, CJ, Tomo V, pág. 138 e ss., e da Relação do Porto de 31-01-2007 e 20-02-2008, ambos publicados, em texto integral, em http://www.dgsi.pt.