Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2065/21.2T8SRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA PRESCRITA
CONTRATO DE CRÉDITO PESSOAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
VENCIMENTO DE TODAS AS OBRIGAÇÕES FRACCIONADAS
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 70.º DA LULL
ARTIGOS 304.º, 1; 309.º; 310.º, E); 342.º, 2 E 458.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 3.º, 3; 5.º, 3; 703.º, C); 726.º, 2, A); 810.º, 3; 811.º, A) E 855.º, 2, B), DO CPC
Sumário: I-Extinto, por prescrição, o direito de acção cambiário corporizado em livrança, pode este ainda assim ser usado como quirógrafo da relação causal subjacente à sua emissão, integrado no elenco dos documentos particulares previstos no artº 703, al. c), do C.P.C. se do título resultar a causa da obrigação ou, não resultando, tenha esta sido alegada no requerimento executivo pelo credor/exequente (cfr. artº 5, nº1, do C.P.C. e 342, nº1, do C.C.).

II-É aplicável ao contrato de crédito pessoal incumprido pelos executados, o prazo de prescrição constante do artº 310, al. e), do C.C., se dele constar o pagamento de quotas de amortização do capital pagáveis com juros, conforme constitui actualmente entendimento jurisprudencial uniforme, por via do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2022.

III A este entendimento, não obsta o vencimento de todas as prestações fraccionadas decorrentes do incumprimento do contrato, pois que, neste caso, verifica-se que a partir dessa data passou o exequente a poder exercer o seu direito, demandando os seus devedores (artº 306, nº1, do C.C.)

Decisão Texto Integral:

Proc. Nº  2065/21.2T8SRE-A-C1-Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de-Juízo de Execução ...-J....

Recorrente: AA

Recorrido: A..., S.A.

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Teresa Albuquerque

                                        Falcão de Magalhães

                                       


*

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra



*


RELATÓRIO

 Por apenso aos autos de processo executivo para pagamento de quantia certa que A..., S.A, intentou contra AA e BB, veio a executada AA deduzir embargos, invocando a prescrição da livrança e o caso julgado formado por anterior execução com o nº 29687/98...., o qual correu termos na 2ª Vara Cível de ...-2ª Secção, tendo a instância sido extinta a 29.03.2006, por deserção.

*

Admitida a oposição e notificada a exequente, veio esta apresentar contestação, alegando não ter ocorrido ainda a prescrição por a livrança valer como título executivo particular e o prazo ter sido interrompido pela execução que correu termos contra os executados com o nº 29687/98.....

*

Findos os articulados, proferiu-se sentença, no âmbito do qual se julgou improcedente a excepção de prescrição e os embargos deduzidos, ordenando-se o prosseguimento da execução.

*


Não conformado com esta decisão, impetrou a executado/embargante, recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“Conclusões:

a) Discorda da matéria de facto dada como provada;

b) Deve a mesma ser alterada, dando-se também como provado que:

-Vive desde Março de 1997 na R. do ..., ..., ...; - Nunca recebeu qualquer comunicação, pessoal ou por escrito, quer do inicial mutuante – “Banco 1...-Sucursal em Portugal”, quer da “A... SA”, que versasse sobre o empréstimo, preenchimento da livrança, como da sua cedência, nunca recebendo qualquer notificação pessoal ou escrita para qualquer acto;

- Única notificação/citação foi para a presente execução;

- Desconhecia a existência de qualquer execução anterior ou de qualquer diligência tendente à cobrança da dívida, pois nunca recebeu qualquer comunicação sobre a mesma;

c) Pois tal resulta dos documentos que se encontram nos autos e os informam, como da aceitação tácita de tal factualidade por parte do Recorrido;

d) a Senhora Juiz não fundamentou a fixação da matéria de facto, daí se retirando a nulidade da sentença proferida;

e) a livrança que foi dada em execução, foi aceite antes da entrada em vigor do actual Código do Processo Civil, sendo o regime deste que se lhe deve aplicar;

f) neste não estava prevista a possibilidade de execução, pois esta só veio a ser possível com a introdução da al. c) ao nº 1 do artº 703º;

g) tem de se aplicar o regime mais favorável à Recorrente , que o do anterior Código;

h) pelo que não existe fundamento para aceitação da presente execução;

i) nos embargos foi alegada a prescrição ordinária do direito de exigência do alegadamente devido;

j) que, no caso dos autos, é de cinco anos, no cumprimento da al. e) do artº 310º do Código Civil, tal como vem sendo decidido jurisprudencialmente por quase unanimidade

l) na aplicação obrigatória deste preceito, resulta que deve proceder a alegada procedência da prescrição do direito de exigência que está a ser feito nesta execução;

m) na Execução nº 29687/98...., que correu na 2ª Secção da 2ª Vara Cível de ... os sujeitos processuais, a base para a execução, os valores eram os mesmos que na presente execução;

n) tal execução extinguiu-se por decisão do senhor Juiz, o qual decidiu pela deserção, o que com inteira culpa do Recorrido, que a isso deu causa;

o) nada justifica a existência da presente execução, pois existiu caso julgado material anterior; p) não colhendo a tese de que só porque nada foi recebido nessa execução, pode o Recorrido voltar a por as execuções que quiser desde que não consiga receber;

q) não existiu fundamentação legal ou jurisprudencial para fundamentação dessa tese, como não poderá existir;

r) verifica-se de facto a existência de caso julgado;

s) quer a livrança, quer a razão para a existência da mesma estão prescritas nos termos do normativo acima citado, como também pelo decurso do prazo ordinário geral;

t) foram violados:

- o princípio da livre apreciação da prova, na escassez do que foi dado como provado, quando deveria acrescentar outros factos derivados da prova constante dos autos;

- o princípio da fundamentação da prova dada como provada, pois não foi apresentado;

- o princípio da não retroactividade das leis;

- os termos dos artigos 70º da LULL, 309º, 310º, nº 1 al. c), 458º do Código Civil, 576ºº, nº 2, 577º, 580º, 581º 619º, 672º, 677ºe 703º do Código do Processo Civil. Nestes termos, e nos mais de Direito, sempre com o Doutíssimo Suprimento de Vª Exª, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, reconhecendo que deveria ser dado como provado a matéria que ora indicou, que houve violação do princípio da fundamentação da prova dada como provada, que existe prescrição do direito de exigência plasmado nesta execução, que existe caso julgado, pelo que deve ser revogada a Douta decisão proferida, dando procedência aos embargos deduzidos, acolhendo-se o alegado pela recorrente, pois assim se fará a costumada JUSTIÇA.”


*


Foram interpostas contra-alegações, das quais constam as seguintes conclusões:

“I. Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou improcedentes os embargos deduzidos pela Recorrente.

II. Defende a Recorrente que o Tribunal “a quo” devia ter dado por provado os factos que elenca no artigo 2º, alíneas a) a d), das alegações de recurso.

III. Invoca ainda a Recorrente a nulidade da sentença recorrida, por entender que o Tribunal “a quo” não fundamentou a matéria de facto dada como provada.

IV. A Recorrente alega ainda que existiu omissão de pronúncia quanto à exceção da prescrição e que o Tribunal “a quo” errou ao ter julgado improcedente a exceção de caso julgado.

V. Sucede, porém, que, nenhuma razão assiste à Recorrente.

VI. Ao contrário do que a Recorrente alega, os factos que invoca no artigo 2º, alínea a) a d), das alegações de recurso, não deviam ter sido considerados provados pelo Tribunal “a quo”, nem resulta da prova documental junta aos autos a sua demonstração.

VII. De igual forma, não podem tais factos ser considerados provados por “aceitação tácita” da Recorrida, conforme invoca a Recorrente, pois os mesmos mostram-se totalmente em oposição com a defesa apresentada pela ora Recorrida.

VIII. No que se refere ao facto constante da alínea a), do artigo 2º das alegações de recurso, importa desde logo referir que, a Recorrente não juntou aos autos qualquer documento comprovativo quanto ao facto de alegadamente residir desde Março de 1997, na Rua ..., ..., ....

IX. No que se refere ao facto constante da alínea b), do artigo 2º das alegações de recurso, importa referir a Recorrente, em sede de embargos, não levantou tal questão, relacionada com o facto de alegadamente nunca ter recebido por parte do Banco 1...-Sucrsal em Portugal, qualquer comunicação referente ao empréstimo e ao preenchimento da livrança.

X. Conforme resulta dos artigos 2º a 3º dos Embargos deduzidos, a aqui Recorrente apenas veio invocar não ter recebido qualquer comunicação da Exequente (ora Recorrida), bem como qualquer citação judicial, designadamente, no âmbito da ação executiva anterior.

XI. Em momento algum a aqui Recorrente veio invocar não ter recebido qualquer comunicação do Banco cedente - Banco 1...-Sucursal em Portugal, referente ao empréstimo e ao preenchimento da livrança.

XII. A Recorrente vem, assim, colocar perante o Tribunal Superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver e não foi tratada na sentença recorrida, pelo que se trata de uma questão nova.

XIII. Não tendo a Recorrente em sede de embargos invocado o facto de alegadamente não ter recebido qualquer comunicação por parte do Banco cedente quanto ao empréstimo e preenchimento da livrança, não pode tal questão, em sede de recurso, ser apreciada.

XIV. Não pode, assim, o Tribunal “ad quem” apreciar tal questão, vertida no artigo 2º, alínea b), das alegações de recurso.

XV. No que se refere ao facto de a Recorrente alegadamente desconhecer a execução anterior, resulta do ponto 9 dos factos dados por provados na Mui Douta Sentença recorrida que “Os executados foram citados editalmente nessa execução (v. Doc. 1, junto pela Exequente em 02/05/2022).”

XVI. Pelo que, tendo o Tribunal “a quo” dado por provado, através da prova documental junta aos autos, que a aqui Recorrente foi citada editalmente no âmbito da ação executiva anterior, a apreciação sobre o facto de a mesma ter tido conhecimento ou não dessa ação executiva tornou-se irrelevante para a apreciação do mérito da causa.

XVII. Importa ainda ressalvar que, terá de ser tido em consideração o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal.

XVIII. Termos em que se conclui que, bem andou o Tribunal “a quo” ao não ter dado por provado os factos constantes do artigo 2º, alíneas a) a d) das alegações de recurso, não merecendo a Mui Douta Sentença recorrida qualquer reparo.

XIX. Por outro lado, alega a Recorrente que o Tribunal “a quo” não fundamentou a matéria de facto dada como provada.

XX. Salvo o devido respeito, confunde a Recorrente falta de fundamentação da sentença, com as razões que a levam a discordar da mesma.

XXI. Apenas a total ausência ou absoluta falta de fundamentação de facto e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação, afeta o valor legal da sentença, provocando a respetiva nulidade por falta de fundamentação da matéria de facto – neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 04A4116, datado de 27/04/2004.

XXII. Da análise da Mui Douta Sentença recorrida facilmente se conclui que a mesma se mostra devidamente fundamentada, pois a matéria de facto mostra-se indicada com clareza e precisão, sendo indicada a prova documental que sustenta a decisão da causa.

XXIII. O Tribunal “a quo” discriminou os factos que considerou provados e indicou, interpretou e aplicou as normas jurídicas correspondentes.

XXIV. É ainda possível alcançar, sem grande esforço, que o Tribunal “a quo” definiu concretamente a matéria de facto relevante para a decisão da causa, apreciando ainda os meios probatórios produzidos, designadamente, do ponto de vista documental.

XXV. Ao contrário do que a Recorrente invoca, resulta da sentença recorrida a indicação da génese da dívida – pontos 3, 4 e 7 dos factos dados por provados.

XXVI. De igual forma, resulta da sentença recorrida a pronúncia sobre a alegada exceção da prescrição – pontos 1 e 2 da decisão recorrida.

XXVII. Termos em que conclui que, não assiste razão à Recorrente quando invoca a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de facto, pois que os pressupostos de facto e de direito que conduziram ao sentido decisório da sentença se mostram evidenciados de forma objetiva, lógica e racional.

XXVIII. No que se refere à questão relacionada com a aplicação do Novo Código de Processo Civil, à data da instauração dos autos, ou seja, à data de 28/10/2021, o regime aplicável, designadamente, quanto ao elenco dos títulos executivos, é o constante do Novo Código de Processo Civil, conforme resulta do artigo 6º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho. XXIX. Donde se conclui que, salvo o devido respeito, carece de qualquer sentido o alegado pela Recorrente nos artigos 11º a 20º das alegações de recurso, devendo tal argumento igualmente improceder.

XXX. Alega ainda a Recorrente que existiu omissão de pronúncia porquanto o Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre a exceção da prescrição da obrigação.

XXXI. Mais uma vez, não assiste qualquer razão à Recorrente.

XXXII. A Recorrente, no âmbito dos embargos deduzidos, invocou, quanto à prescrição da obrigação, a aplicação do prazo ordinário de prescrição de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil, e não a aplicação do prazo de 5 anos, previsto no artigo 310º, alínea e), do Código Civil.

XXXIII. A aplicação do mencionado prazo de prescrição de 5 anos e a invocação do artigo 310º, alínea e), do Código Civil, só agora, em sede de recurso, foram invocados pela Recorrente, constituindo, assim, uma questão nova.

XXXIV. A prescrição constitui uma exceção que não é do conhecimento oficioso, só podendo o tribunal dela conhecer se tiver sido devidamente alegada.

XXXV. Ao alegar a prescrição da obrigação em sede de embargos, a Recorrente invocou a aplicação do prazo ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.

XXXVI. Tendo o Tribunal “a quo” pronunciado sobre a referida prescrição da obrigação, conforme resulta do ponto 2 da sentença recorrida, tendo concluído que à data da instauração da presente ação executiva ainda não havia decorrido o prazo de prescrição de 20 anos. XXXVII. O Tribunal “a quo” pronunciou-se concretamente sobre a questão que a Recorrente colocou à sua apreciação – prescrição da obrigação por decurso do prazo ordinário de 20 anos.

XXXVIII. Ao vir invocar o prazo de prescrição de 5 anos previsto no artigo 310º, alínea e), do CC, a Recorrente vem colocar perante o Tribunal Superior uma questão que não foi abordada nos articulados e que não é de conhecimento oficioso.

XXXIX. Trata-se de uma questão nova, pois conforme referido a Recorrente em sede de embargos invocou a prescrição da obrigação pelo decurso do prazo ordinário de 20 anos, tendo a ora Recorrida, em sede de Contestação, exercido a sua defesa tendo por aplicação o mencionado prazo de prescrição e não outro.

XL. Sendo certo que, não pode a Recorrente alegar existir omissão de pronúncia por parte do Tribunal “a quo” sobre uma questão que a mesma não invocou em sede de embargos.

XLI. Donde se conclui que, não assiste qualquer razão à Recorrente quando invoca que existiu omissão de pronúncia por parte do Tribunal “a quo” quanto à prescrição da obrigação. XLII. Por outro lado, ao contrário do que a Recorrente alega, bem andou o Tribunal “a quo” ao ter julgado improcedente a exceção de caso julgado.

XLIII. A execução anterior, instaurada pelo Banco cedente, foi extinta por deserção, não tendo sido recuperado qualquer valor.

XLIV. Pelo que, nada impedia a ora Recorrida de voltar a agir judicialmente contra a aqui Recorrente, com vista a recuperar o valor em dívida.

XLV. Conforme decidiu o Tribunal “a quo”, no caso em apreço, não há violação do caso julgado, uma vez que na primeira execução não se recuperou qualquer quantia para a exequente, pelo que a segunda execução visa obter o pagamento da dívida, não ofendendo o que ficou exarado na primeira execução.

XLVI. Acresce que, na primeira execução não há questão de fundo, material ou substantiva que importe salvaguardar e que a segunda execução tenha de respeitar.

XLVII. Não se verifica, assim, qualquer possibilidade de os autos principais de execução poderem contradizer uma decisão anterior.

XLVIII. Nesta conformidade, bem andou o Tribunal “a quo” ao ter julgado improcedente a exceção de caso julgado.

XLIX. Termos em que, por absoluta falta de fundamento legal, deverá como se espera ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se nos precisos termos a Mui Douta Sentença do Tribunal “a quo”.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, confirmando-se nos precisos termos a Mui Douta Sentença do Tribunal “a quo”.


*

QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar se:

a) a sentença recorrida enferma de nulidade;

b) o recorrente cumpre os ónus que lhe são impostos para a impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.

c) a livrança em causa não constitui título executivo, por não lhe se aplicável a actual alínea c) do artº 703 do C.P.C.;

d) existe caso julgado formado pela pendência de anterior execução;
e) a obrigação subjacente à emissão da livrança se encontra prescrita.


*


Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes-desembargadores adjuntos, cumpre decidir.


*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

1. Em 20-10-2021, a exequente “A..., S.A.” instaurou execução ordinária contra os executados AA e BB para pagamento da quantia de € 18.963,38 euros, com base em livrança.

2. No seu requerimento executivo, a exequente alegou que:

1. A 28/02/1996, foi celebrado entre o Banco 1... – Sucursal em Portugal e os Executados o contrato de crédito pessoal com o nº ...45, conforme documento nº 1 que se junta e dá por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos.

2. Por Contrato de Cessão de Créditos outorgado em 04 de Janeiro de 2017, foi o crédito – decorrentes do contrato de crédito pessoal nº ...45 – cedido pelo Banco 1... à A..., S.A., conforme documentos nº 2 e nº 3 que se juntam e cujo teor se dá por integramente reproduzido para todos os legais efeitos.

3. Tal cessão foi notificada aos Executados, conforme documento nº 4 que se junta e dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

4. Como garantia de pagamento das obrigações emergentes do referido contrato, os Executados aceitaram e entregaram à Entidade Bancária Cedente uma livrança em branco, autorizando o seu preenchimento em caso de incumprimento, conforme documento nº 1, já junto, e nº 5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

5. A livrança destinava-se a ser preenchida pela Entidade Bancária Cedente, no caso do incumprimento do citado contrato por parte dos Executados, ao abrigo do acordo de preenchimento de título cambiário, incumprimento esse que se veio a verificar.

6. Quanto ao contrato de crédito pessoal nº ...45, os Executados contrataram inicialmente um valor de € 12.968,75 (doze mil novecentos e sessenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos), cujo pagamento devia ocorrer em 48 (quarenta e oito) prestações mensais no valor de € 387,77 (trezentos e oitenta e sete euros e setenta e sete cêntimos).

7. Contudo, os ora Executados deixaram de efectuar os pagamentos a que estava obrigada a 31/01/1998, ficando nessa data em dívida no valor de € 8.224,99 (oito mil duzentos e vinte e quatro euros e noventa e nove cêntimos), conforme extracto que se junta sob o documento nº 6, e dá por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos.

8. Face ao exposto, a Entidade Bancária Cedente preencheu a livrança dada como garantia pelo valor de € 9.781,10, com vencimento até 02/09/1998.

9. Sucede ainda que a livrança, não obstante as diligências da Entidade Bancária Cedente, não foi paga pelos Executados, nem na sua data de vencimento.

10. A Entidade Bancária cedente executou a referida livrança no processo judicial nº 29687/98...., o qual correu termos na 2ª Vara Cível de ... – 2ª Secção, tendo a instância sido extinta, a 29.03.2006, por deserção.

11. No âmbito da referida execução, nada foi recebido pela Entidade Bancária Cedente por conta da referida dívida.

12. Devem, pois, os Executados liquidar o montante da livrança, acrescido de juros até ao seu integral pagamento.

13. Assim, ao valor de € 9.781,10 (nove mil setecentos e oitenta e um euros e dez cêntimos), acrescem as seguintes importâncias:

a) Juros de mora, calculados à taxa legal 4,00%, desde a data de vencimento da referida livrança (02/09/1998), até à data de entrada do requerimento executivo (20.10.2021) no valor de € 9.182,28 (nove mil cento e oitenta e dois euros e vinte e oito cêntimos);

b) Juros de mora que se vençam desde a data do requerimento executivo até integral e efectivo pagamento, custas, custas de parte, procuradoria, despesas e honorários de A.E., e em tudo o que mais for de Direito.”.

3. A livrança apresentada na execução foi subscrita pelos dois executados, tendo sido emitida em 96/02/28 e com vencimento em 98/09/02 e montante de 1.960.935$00 escudos.

4. A 28/02/1996, foi celebrado entre o Banco 1... – Sucursal em Portugal e os executados o contrato de crédito pessoal com o nº ...45 (v. Doc. n.º 1, junto com o requerimento executivo).

5. Por Contrato de Cessão de Créditos outorgado em 04 de Janeiro de 2017, foi o crédito decorrente do contrato de crédito pessoal nº ...45 cedido pelo Banco 1... à A..., S.A. (v. Docs. n.ºs 2 e 3, juntos com o requerimento executivo).

6. A cessão foi notificada aos executados (v. Doc. 4, junto com o requerimento executivo).

7. Como garantia de pagamento das obrigações emergentes do referido contrato, os executados aceitaram e entregaram à Entidade Bancária Cedente uma livrança em branco, autorizando o seu preenchimento em caso de incumprimento.

8. A Entidade Bancária cedente executou a referida livrança no processo judicial n.º 29687/98...., instaurado em 07/09/1998, o qual correu termos na 2ª Vara Cível de ... – 2ª Secção, tendo a instância sido extinta, a 29.03.2006, por deserção (v. Doc. 1, junto pela exequente em 02/05/2022).

9. Os executados foram citados editalmente nessa execução (v. Doc. 1, junto pela exequente em 02/05/2022).

10. Com efeito, em 2 de outubro de 2001, foi citado o D. Magistrado do Ministério Público para, em representação dos executados ausentes em parte incerta, no prazo de 20 dias, querendo, deduzir oposição à execução (v. Doc. 1, junto pela exequente em 02/05/2022).

11. A instância executiva foi declarada interrompida nos termos do disposto no art.º 285.º do antigo Código de Processo Civil, por despacho de 29 de março de 2006 (v. Doc. 1, junto pela exequente em 02/05/2022), considerando-se deserta três anos depois, ou seja, em 29 de março de 2009.


*


DA ARGUIÇÃO DE NULIDADES DA SENTENÇA
Vem o recorrente invocar a nulidade da sentença que julgou os embargos improcedentes alegando que nesta não se especificam os fundamentos da decisão de facto que justificam a decisão.
É jurisprudência assente que as causas de nulidade da sentença são apenas as constantes do artº 615 do C.P.C.
Ora, resulta do disposto no artº 615, nº1, b) que a sentença é nula quando nela se não especifiquem os fundamentos de facto e de direito.
É igualmente jurisprudência (e doutrina) assente que esta nulidade apenas se verifica quando exista absoluta falta de fundamentação, seja de facto ou de direito e não apenas fundamentação medíocre, deficiente, quiçá errada, porque neste caso existirá erro de julgamento.
Está este primeiro fundamento de nulidade relacionado com a obrigação imposta ao magistrado, por via do artº 607 nº3 e 4 do C.P.C. de, na decisão especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão que profere, por forma a que esta decisão seja perceptível para os seus destinatários.
Por outro lado, dispõe o artº 154 do C.P.C., no seu nº1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.”, esclarecendo o seu nº 2 que esta não pode consistir numa simples “adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na decisão”.

Este dever geral de fundamentação dos despachos e decisões (sentenças) proferidos no processo, está de acordo com a exigência constitucional, contida no artº 205 nº1 da C.R.P., que exige que as decisões do tribunal, que não sejam de mero expediente sejam fundamentadas na forma prevista na lei, de molde a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo, conforme decorre do disposto no artº 20 nº4 da C.R.P.

Em cumprimento deste dever de fundamentação, exige-se actualmente não só a indicação dos factos provados, como dos não provados e ainda, a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme o exige o artº 607º, nº 4 do CPC. A total omissão deste dever de fundamentação constitui igualmente fundamento de nulidade da decisão.[3]/[4]
Exige-se ainda que, especificados os factos provados e não provados, o magistrado exponha os fundamentos de direito, em coerência lógica com os factos que deu por adquiridos.

Não cumpre as exigências contidas nos artºs 607 e 615 nº1, alínea b) quando exista ausência total de fundamentos de facto e de direito. [5]

No entanto, como nos ensina TEIXEIRA DE SOUSA[6], “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”.

Ora, a sentença recorrida contém os factos que considerou relevantes para a decisão a proferir, bem como a indicação sumária dos fundamentos para a convicção do julgador que resultam essencialmente da prova documental que referência em relação a cada ponto que deu como provado, ou seja: a livrança, o requerimento executivo apresentado nos autos e e os docs. relativos à execução anteriormente instaurada pelo exequente contra os executados.

Não se vislumbra assim que, feita a indicação por referência ao próprio título e documento apresentado como requerimento executivo e a factos constantes de anterior execução judicial movida contra os executados, que algo mais devesse ser acrescentado pelo Juiz a quo, tendo em conta que os autos não prosseguiram para produção de prova, pelo que a única a considerar era essencialmente a documental e a resultante de confissão.

Improcede, assim, a nulidade invocada nos autos.


***

DA VERIFICAÇÂO DOS REQUISITOS PARA A REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Nas suas alegações e conclusões, o recorrente veio invocar que deveria ter sido incluído nos factos provados que:

-vive desde Março de 1997 na R. do ..., ..., ...;

- nunca recebeu qualquer comunicação, pessoal ou por escrito, quer do inicial mutuante – “Banco 1...-Sucrsal em Portugal”, quer da “A... SA”, que versasse sobre o empréstimo, preenchimento da livrança, como da sua cedência, nunca recebendo qualquer notificação pessoal ou escrita para qualquer acto;

- a única notificação/citação foi para a presente execução;

- desconhecia a existência de qualquer execução anterior ou de qualquer diligência tendente à cobrança da dívida, pois nunca recebeu qualquer comunicação sobre a mesma.

Não foi indicado, nas alegações, qualquer meio de prova que sustente a pretensão da recorrente. Não sendo indicado qualquer meio de prova que sustente a versão da recorrente, não estão cumpridos os ónus constantes do artº 640 do C.P.C.

Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Decorre deste preceito legal que dele resultam dois ónus a cargo do impugnante:

-um ónus principal decorrente das diversas alíneas do nº1, cujo incumprimento determina a imediata rejeição do recurso na parte afectada;

-um ónus secundário, contido no nº2, alínea a) que visa essencialmente auxiliar o tribunal no cumprimento do seu dever de reapreciação da prova produzida.  

Nestes termos, se tem de considerar que “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida.[7]

Ora, o recorrente nem nas alegações, nem nas conclusões, cumpre o ónus principal imposto pelo artº 640 do C.P.C., uma vez que não indica os meios probatórios em que fundamenta a sua pretensão, nem a relevância dos concretos factos que ora pretende ver aditados para a solução da causa.

O ónus imposto ao recorrente na al. b), do nº1, do artigo 640º do Código de Processo Civil não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, ou que deveriam ter sido considerados factos constantes dos articulados, não incluídos na matéria de facto, antes exige que se indique a necessidade e relevância dos factos que se pretende ver aditados, bem como os meios de prova que sustentam esses factos.

Não cumprindo as alegações e conclusões do recorrente este ónus, não é esta omissão passível de despacho de aperfeiçoamento.

Conforme refere Abrantes Geraldes[8] “A comparação que necessariamente tem que ser feita com o disposto no artº 639º e, além disso, a observação dos antecedentes legislativos levam-me a concluir que não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do art. 652º, nº1, al. A), na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do nº3 do artº 639.”  

Assim e em conclusão, a lei sanciona o incumprimento do indicado ónus com a imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, pelo que rejeita-se a pretensão da recorrente, com vista à reapreciação da matéria de facto.

   

***

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Insurge-se a recorrente contra a decisão que considerou os embargos como improcedentes, invocando em primeiro lugar a inexistência de título executivo, por à livrança em apreço, atenta a sua data de emissão e pagamento, não ser aplicável o disposto no artº 703 c) do C.P.C., mas antes o anterior regime processual civil, que não admitia como título executivo o título cambiário prescrito. Conclui, assim que, prescrita a obrigação cartular, deve ser considerada extinta a execução.

Não é, no entanto, assim. Nem a prescrição da obrigação cambiária produz quaisquer efeitos quanto à obrigação subjacente, o que constitui um corolário do princípio da autonomia da obrigação cartular face à obrigação que lhe subjaz, nem o título em que se incorpora a obrigação cartular deixa de ser título executivo pela prescrição desta obrigação cambiária.

A primeira questão mostra-se resolvida desde o Assento nº 5/1936, de 08/05/1936 que declarou, embora na vigência do artº 339 do Código Comercial que “A prescrição a que se refere o artigo 339 do Codigo Comercial não abrange a da obrigação constante da letra”, ou seja, a prescrição da obrigação cartular não atinge a obrigação derivada da relação subjacente, princípio que permanece face ao disposto no artº 70 da LULL  
Os títulos de crédito possuem determinados requisitos próprios que consubstanciam nos seguintes elementos:  

- Incorporação da obrigação no título (a obrigação e o título constituem uma unidade);

- Literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título);

- Abstracção da obrigação (o título é independente da “causa debendi”);

- Independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título (a nulidade de uma das obrigações que o título incorpora não se comunica às demais);

- Autonomia do direito do portador (o portador é considerado credor originário), sendo que, “o carácter literal e autónomo dum título de crédito só produz efeito, quando este entra em circulação e se encontra em poder de terceiros de boa fé.”[9]

Estas características das obrigações cartulares, de autonomia, abstracção e literalidade, determinam que os vícios da obrigação cartular não se estendem à obrigação subjacente e a prescrição do direito de acção cambiária não se comunica àquela, pelo que, ainda que o exequente não se possa valer da livrança enquanto título executivo, poderia sempre invocar o direito de crédito que serviu de base à emissão da livrança.

Se não existe qualquer dúvida que possa invocar esta obrigação subjacente em acção declarativa movida contra o seu devedor, no regime do anterior código de processo civil, colocou-se a dúvida se, prescrito o direito de acção cambiária, poderia o título de crédito continuar a valer como título executivo, mas agora como documento particular, quirógrafo da obrigação causal, integrado no elenco de títulos executivos constantes do artº 46.

No âmbito do actual Código de Processo Civil, esta questão mostra-se respondida com base no disposto no artº 703, alínea c). Neste preceito, fez o legislador consignar, seguindo a posição maioritária da doutrina e da generalidade da jurisprudência que se debruçaram sobre esta questão no domínio do regime anterior, que constituem títulos executivos “os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.

Assim, prescrita a acção cambiária, o título de crédito vale como título executivo por constituir quirógrafo da obrigação, desde que a obrigação subjacente resulte do documento apresentado como título executivo ou conste alegada no requerimento executivo.

Se não resultar do próprio título a relação causal, como nos ensina LEBRE DE FREITAS[10]há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não de um negócio jurídico formal”, porque no primeiro caso, sendo a forma essencial à validade da obrigação, o título cambiário prescrito não constituirá título executivo. No segundo caso, o título prescrito constituirá título executivo desde que alegado no requerimento executivo os factos constitutivos da obrigação subjacente à sua emissão, “tendo em conta a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida”, previsto este no artº 458 nº1 CC.

Se a questão se nos afigura pacífica face à actual redacção do artº 703 c) do C.P.C., não o era no âmbito do anterior C.P.C. de 1961, que definia como títulos executivos aqueles a que, por disposição especial, era conferida esta natureza, nomeadamente os títulos de crédito e os documentos particulares, desde que reunidos os requisitos de exequibilidade previstos na alínea c) do artº 46.

Ao abrigo deste preceito legal e apenas no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da obrigação fundamental (subjacente), prescrito o direito de acção cambiária e não valendo este título como título de crédito, suscitava-se a questão de poderem, ainda assim, ser apresentados à execução como meros quirógrafos, ao abrigo da alínea c) deste preceito legal que considerava títulos executivos “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.”

Quanto à exequibilidade das letras, livranças ou cheques que não reunissem as condições legais para serem considerados títulos de crédito, o entendimento jurisprudencial não foi unânime, dividindo-se essencialmente em três posições distintas.

Para a primeira posição jurisprudencial (seguida por doutrina minoritária) estes documentos não poderiam valer como títulos executivos, uma vez que não tinha sido opção do legislador incluir estes títulos noutras categorias e porque, pelas suas próprias características de autonomia, literalidade e abstracção, deles não poderia resultar nunca a constituição ou reconhecimento da obrigação causal.[11]

Para outros[12], os títulos que não pudessem valer como títulos de crédito incluídos no âmbito do disposto na alínea d) do artº 46, ainda assim seriam títulos executivos, integrados no elenco da alínea c), uma vez que do próprio título resultava já o reconhecimento unilateral de uma dívida (cfr. o disposto no artº 458 do CC.), não necessitando a causa da obrigação de constar do título ou do requerimento executivo, pois que se presume existir, cabendo ao devedor, em sede de embargos, invocar que não existe.

Neste caso, beneficiando o credor da presunção de existência de causa, o ónus de prova inverte-se. Não é já o credor que tem de provar a causa da obrigação, porque esta presume-se existir, mas é ao devedor que cabe o ónus de prova da falta de causa da obrigação inscrita no título ou alegada no requerimento inicial.

Fundava-se esta posição, na consideração de que os títulos de crédito constituem promessa de pagamento de um determinado montante no seu vencimento, pelo que deles se extrai “uma declaração de dívida que, independentemente da sua causa, vincula o respectivo subscritor ao pagamento de uma determinada quantia, sem prejuízo da invocação, no âmbito da defesa, de factos impeditivos dos efeitos pretendidos.”[13]    

A terceira posição, seguida pela maioria da jurisprudência[14] e a generalidade da doutrina[15] entendia que os títulos de crédito prescritos ou que não preenchessem os requisitos legais para poderem ser considerados títulos de crédito poderiam, ainda assim, ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à sua emissão, desde que deles resultasse a causa da obrigação ou, não resultando, fosse alegada no requerimento executivo.

Ou seja, “extinta, por prescrição, a obrigação cambiária (…), este pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da respectiva obrigação subjacente ou fundamental, desde que, nesse caso, o exequente haja alegado, no requerimento executivo, essa obrigação, (a relação causal) e que esta não constitua um negócio jurídico formal”.[16]

Nestes termos, a livrança prescrita, não titulando já uma obrigação cambiária, constituía, ainda assim, documento quirógrafo da obrigação, título executivo incluído no âmbito desta alínea c), desde que:

-os factos constitutivos da obrigação (subjacente) constem da própria livrança;

-não constando, estejam alegados no requerimento executivo e não esteja em causa a forma solene para a constituição da obrigação em causa.

Era esta a posição que encontrava acolhimento no texto da alínea c) do artº 46, pois que não reunindo os títulos de créditos os requisitos de exequibilidade previstos na LULL, ou nos casos em que o direito de acção cambiária se mostrasse prescrito, não poderiam ser considerados como títulos executivos ao abrigo da alínea c) deste preceito, sem que do próprio documento resultasse a constituição ou reconhecimento de uma obrigação (a obrigação subjacente), ou constassem do r.e. os factos constitutivos desta obrigação, uma vez que a execução não se fundaria já na obrigação abstracta, mas na obrigação subjacente.

Com efeito, só as obrigações abstractas, conforme refere TEIXEIRA DE SOUSA[17] dispensam “a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, dado que a exigência desta não está dependente da demonstração de qualquer causa debendi. Assim, sempre que o título executivo respeite a uma pretensão abstracta, este é suficiente para fundamentar a execução”, pelo que “o exequente só tem o ónus de apresentar esse título de crédito, porque ele incorpora a relação cambiária que constitui a causa de pedir do título executivo.”

Pelo contrário as obrigações causais, não dispensam a invocação da respectiva causa, ónus de alegação imposto pelo artº 46, c), do C.P.C./61. Do disposto no artº 810, nº 3, alínea b), do C.P.C. (na redacção do D.L. 38/2003), resultava ainda, que o requerimento executivo deve conter uma “Exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.”, mais se dispondo no artº 811, nº 1, a) que a secretaria deve recusar o requerimento quando “…omita algum dos requisitos impostos pelo nº3 do artigo 810º;

Destes preceitos resulta que o legislador, mesmo no âmbito do anterior processo executivo, não prescindia da indicação dos factos que fundamentassem o pedido executivo, quando estes não constassem do título e não se tratasse de obrigação abstracta.

Foi esta também a opção seguida pelo legislador no N.C.P.C. e constitui a solução mais conforme com a natureza de mero quirógrafo do título.

Quer isto dizer que mesmo se considerasse não ser o actual C.P.C. (Lei 41/2013) aplicável aos autos de execução, ainda assim não teria a recorrente razão, pois que já antes se admitia que invocados no r.e. os factos respeitantes à relação subjacente, o título cambiário prescrito constituísse título executivo, mas agora como documento particular integrado na alínea c) do artº 46, desde que observados os respectivos pressupostos.

Ocorre que, ao contrário do que alega a recorrente, a lei aplicável a estes autos e aos aludidos títulos é a constante da Lei 41/2013 de 26 de Junho, tendo em conta o disposto no seu artº 6, nº3. Denote-se que o Ac. do Tribunal Constitucional nº 408/2015 de 4 de Outubro, veio declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral “da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho”, não por lhe conferir força executiva, mas por retirar força executiva a documentos que antes a possuíam. (negrito nosso).

 Conforme resulta deste Acórdão, o novo elenco de títulos executivos, a sua maior ou menor extensão ou a integração ou não de determinado documento”, constitui “opção legislativa.” que, no entanto, não pode contender com “o princípio da proteção da confiança dos cidadãos, ínsito no princípio do Estado de Direito, que se encontra consagrado no artigo 2.º da Constituição. (…) a mudança legislativa operada pela norma em análise não afeta os efeitos jurídicos produzidos sob o domínio do direito anterior, na medida em que não é retirado caráter executivo a títulos que já tenham produzido a sua eficácia executiva. Indubitável é, todavia, que afeta situações passadas, recusando o reconhecimento da força executiva a documentos particulares que antes a tinham, desta forma desvalorizando a posição do credor de modo com que este não podia contar. É, portanto, à luz do princípio da proteção da confiança que terá que ser apreciada a sua conformidade constitucional.”

O mesmo princípio poderia ser considerado no caso de ser conferida força executiva a títulos que antes a não possuíam.

No entanto, como refere o aludido Acórdão os requisitos para se considerar violado o princípio da confiança dos cidadãos decorrem da “consistência e a legitimidade das expetativas dos cidadãos afetados por uma alteração normativa, havendo de concluir-se que aquela existe quando (1) o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nestes cidadãos expetativas de continuidade, (2) estas expetativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, (3) e as pessoas tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual.”

Para tanto há que verificar “se o comportamento do legislador nesta matéria foi de molde a criar nos cidadãos expetativas legítimas, justificadas e fundadas de continuidade, em que estes se basearam ao formular planos de vida.”

Não é o caso, uma vez que mesmo no âmbito do anterior diploma legal, o aludido título valeria como documento particular, ainda que prescrita a obrigação cambiária, desde que a relação subjacente não impusesse especais exigências de forma.

Ao caso em apreço é, no entanto, plenamente aplicável a norma constante do artº 703, c), do C.P.C., por aplicação do disposto no artº 6 nº3 do seu regime transitório.

Quer isto dizer que, no caso de títulos de crédito apresentados como títulos executivos, deve o credor, quando prescrita a obrigação cambiária e se encontre nas relações imediatas com o devedor[18], invocar desde logo no requerimento a causa da obrigação, uma vez que invocada a prescrição, só poderá o título apresentado valer como mero quirógrafo da obrigação, desde que do documento ou do r.e. contém invocados os factos bastantes para se considerar invocada e devidamente delimitada a obrigação causal,[19] [20] e desde que esta não exija forma solene para a sua constituição. 

Trata-se de requisito que não resulta da letra desta alínea c) mas que se entende ser a posição mais consentânea com o direito material. A não satisfação destes pressupostos, relações imediatas e negócio de valuta não solene determina, como defende Rui Pinto[21], em posição que subscrevemos na íntegra “o indeferimento liminar, nos termos dos artigos 726 nº2 al. a) e 855 nº2 al.b.”.

No caso de a obrigação subjacente exigir e estiver titulada por documento munido de força executiva (abrangendo este artigo a generalidade dos documentos particulares que importem a constituição de dívida, tendo em conta o Ac. do Tribunal Constitucional acima citado), será este o título executivo e não o título que incorporava a obrigação cambiária agora convertido em mero quirógrafo, sem prejuízo de admitirmos que possam ser juntos ambos os títulos, prevendo a invocação desta prescrição (e neste caso, devendo o exequente efectuar, ou ser convidado a escolher o título pelo qual pretende que prossiga a execução em causa).[22]

 Trata-se, no entanto, de questão que não é objecto do nosso recurso, que incide sobre a aplicabilidade do artº 703 c) do actual C.P.C. à livrança prescrita e à sua consideração como documento quirógrafo da obrigação, sendo, no entanto certo que se encontra junto aos autos o documento que titula a obrigação subjacente (como o impunha à data o artº 6 do D.L. 359/91 de 21 de Setembro).

Improcede assim, este fundamento de recurso.

Invoca ainda a recorrente a violação de caso julgado, invocação verdadeiramente incompreensível face ao que constitui o conceito e limites do caso julgado e sabido que a acção executiva não forma caso julgado material. O caso julgado material apenas se formará com a decisão das questões de natureza declarativa a ela opostas.

Considerou a decisão sob recurso o seguinte: “O caso julgado pode ser formal ou material, assentando o critério da distinção no âmbito da sua eficácia: assim, o caso julgado formal só tem um valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida (art. 672.º do Código de Processo Civil), enquanto o caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material controvertida (art. 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). O caso julgado constitui, tal como a litispendência, uma exceção dilatória que implica a abstenção de pronúncia de qualquer decisão sobre o mérito (arts. 576.º, n.º 2, e 577º, al. i), do Código de Processo Civil) – o que se compreende, tendo em consideração que a função do caso julgado é tanto proibir que o tribunal da segunda ação profira uma decisão contraditória com a anterior, como a de obviar que esse órgão seja obrigado, numa situação de identidade de causas, a repetir a decisão transitada.

A extensão do caso julgado conhece limites objetivos e subjetivos, que definem o seu perfil estrutural (cfr. arts. 580º e 581º do Código de Processo Civil).

Começando por afirmar que a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa (art. 479º, nº1), a lei processual acrescenta, com efeito, no art. 581º, nº1, do Código de Processo Civil, que a causa se repete quando se propõe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo pois, através desta tríplice identidade que se define a extensão do caso julgado. (…) Donde, os presentes autos não são colocados na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, como os embargantes tentam fazer crer nestes embargos.”

Não existe qualquer caso julgado, conforme refere a decisão sob recurso.

Prossegue esta decisão “E muito menos podemos afirmar que “a livrança só pode ser usada uma vez”, já que não houve, nessa 1.ª execução, qualquer pagamento, facto que integraria matéria de exceção de caráter material e imporia que na 2.ª execução apenas se prosseguisse quanto ao valor remanescente em dívida, o que não é de todo a situação dos autos.”

Assim é de facto. Paga alguma quantia por conta desta livrança, caberia aos executados deduzir a excepção peremptória de pagamento (artº 342, nº2, do C.C.), mediante a dedução de embargos.

Nada obsta por outro lado, que extinta qualquer execução, nomeadamente por não terem sido encontrados bens ao executado, venha a ser interposta nova execução, com base no mesmo título, por se ter verificado que afinal o executado tinha bens, ou por qualquer razão.

Não existe, assim, a apontada excepção dilatória, improcedendo também este fundamento de recurso.

No que se reporta à prescrição da obrigação subjacente de que este título constituiria mero quirógrafo, considerou a decisão recorrida que ao caso era aplicável o prazo previsto no artº 309 do C.C., pelo que, tendo em conta os prazos de interrupção considerados na decisão em causa, não ocorreu a prescrição prevista neste preceito.

Invoca a recorrente que ao caso é aplicável o prazo previsto no artº 310 e) do C.C.

Opõe o recorrido que se trata de questão nova que não foi conhecida pelo tribunal recorrido e que, portanto, não pode ser invocada em sede de recurso.

Sem razão, no entanto. Invocada a prescrição da obrigação cartular e da obrigação subjacente, a consideração do prazo aplicável, se o da prescrição ordinária, prevista no artº 309 do C.C., se os prazos de prescrição especiais constantes do artº 310 do C.C., constitui questão de direito que não necessita de expressa invocação, conforme decorre do disposto no artº 5, nº3 do C.P.C.

Invocada a aplicabilidade destes últimos prazos nas alegações de recurso, a que o recorrido teve oportunidade de responder, está igualmente cumprido o princípio do contraditório, exigido pelo artº 3, nº3, do C.P.C. 

Resultando do contrato de crédito junto aos autos que se tratava de um contrato de crédito pessoal, no qual se estipulava o reembolso deste crédito em prestações de capital e juros, impunha-se que a primeira instância, na decisão a proferir, considerasse a jurisprudência firmada pelo AUJ nº 6 /2022.

A determinação do prazo prescricional aplicável aos contratos de mútuo que importem o pagamento faseado de quotas de capital e juros foi questão que durante muitos anos, dividiu a doutrina e a jurisprudência. Assim no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/04/16[23], defendeu-se que “desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros. Desfeita a ligação anteriormente contida em cada uma das prestações entre uma parcela de capital e outra a título de juros, nenhuma razão subsiste para sujeitar a dívida de capital e a dívida de juros ao mesmo prazo prescricional: os juros que se forem vencendo prescreverão no prazo de cinco anos, e o capital, no valor de 10.329,75 €, encontrar-se-á sujeito ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos.” Idêntico entendimento decorre do Acórdão do TRG de 16/03/17[24], referindo este que, “em caso de incumprimento, o mutuante considerar vencidas todas as prestações, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, os valores em divida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos”, pois que, efectivamente, não teria qualquer justificação que, em situações como a presente, uma vez desfeito o plano de amortização da dívida, por incumprimento do devedor, os valores em dívida não voltassem a assumir a sua natureza original de capital e de juros – pois até se convencionou que Hipoteca poderia ser executada “ se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, objecto de arresto, execução ou de qualquer outro procedimento cautelar ou acção judicial e se consideram igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura -, e, por decorrência, que a dívida de capital e a dívida de juros ficassem sujeitas ao mesmo prazo prescricional.

Ainda neste sentido em Ac. proferido no TRC de 12/06/18[25], defendeu-se igualmente que “a resolução dá origem a uma “relação de liquidação”, por força do princípio da retroactividade, que intervém em termos relativos (art.434, nº2 CC). (…) Portanto, o crédito reclamado já não se configura como “quotas de amortização”, mas antes como a dívida (global) proveniente da “relação de liquidação”, correspondente ao valor do capital em dívida, à data do incumprimento”, pelo que, neste caso, seria aplicável o prazo de prescrição ordinária.

Tratava-se, no entanto de posição já minoritária à data, não acolhida pela generalidade da doutrina e jurisprudência, em especial a do nosso Supremo Tribunal de Justiça.

Ainda neste Tribunal da Relação de Coimbra, em Ac. de 19/12/17[26], se veio defender que a “razão essencial das prescrições de curto prazo sem natureza presuntiva, como é o caso das prestações periódicas renováveis (art.º 310º do CC), prende-se com a protecção do devedor contra a acumulação da sua dívida que, de dívida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, se transformaria em dívida de capital susceptível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser-lhe exigido de um golpe ao cabo de um número demasiado de anos;”, sendo assim aplicável a esta dívida de capital e juros o prazo curto de prescrição expressamente previsto no artº 310 e) do C.C.

Foi esta a posição defendida pela ora Relatora no Ac. proferido no TRL de 23/05/2019 (proc. nº 316/18.0T8PDL.L1), considerando que a ratio da norma visava a protecção do devedor contra uma acumulação excessiva de capital, razão pela qual o “legislador incluiu no prazo quinquenal de prescrição, não só os juros destas prestações, mas igualmente as quotas de amortização do capital pagáveis com estes juros, visando evitar precisamente que, por via da inércia do credor, o devedor visse agravada a sua posição.”

Do requerimento executivo, consta alegada como relação subjacente e titulada por documento junto com a contestação do embargado, que esta decorre da celebração de um crédito pessoal com o nº ...45, pelo valor de € 12.968,75 (doze mil novecentos e sessenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos), cujo pagamento devia ocorrer em 48 (quarenta e oito) prestações mensais no valor de € 387,77 (capital amortizado mais juros).

Daqui decorre que a obrigação de pagamento deste capital e dos juros, diferido em prestações mensais por acordo das partes, se integra nesta alínea e) por a amortização fraccionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originar uma prestação unitária e global, decorrendo a prescrição da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício, que conduz a que, decorrido o prazo previsto, possa o devedor vir recusar o seu cumprimento (artº 304, nº1, do C.C.).

A tal conclusão não obsta sequer o vencimento de todas as prestações fraccionadas por incumprimento do contrato, pois que, neste caso, conforme refere Menezes Cordeiro[27]o facto de vencida uma quota e não paga, se vencerem todas as posteriores, nada releva para o problema em causa, porque nesse caso a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo em dívida” sendo que na aplicação do prazo de prescrição a que se alude na al. e) do art.º 310.º do C. Cível, não obsta a que o não pagamento de uma das prestações provoque o vencimento das restantes, não sendo de aplicar o prazo prescricional ordinário, de 20 anos, previsto no art.º 309º do C. Civil”.

Igual entendimento já defendia Ana Filipa Morais Antunes[28], considerando que “na situação prevista no artigo 310.º, alínea e), não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta, resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração. O referido plano (…) obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando a respectiva liquidação em prestações autónomas, de montante mais reduzido. (…) visa-se estimular a cobrança pontual dos montantes fraccionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato, tendo por objecto a totalidade do montante em dívida. (…) constituindo “indícios reveladores da existência de quotas de amortização do capital pagáveis com juros: em primeiro lugar, a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas fracções: uma de capital e outra de juros, a pagar conjuntamente; em segundo lugar, o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra.”

Existindo a controvérsia doutrinal e essencialmente jurisprudencial de que acima se deu nota, por Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 6/2022, publicado no DR-184/2022, Série I de 2022-09-22, foi decidida a apontada controvérsia, mediante a fixação de jurisprudência no sentido de que “I – No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II – Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo ‘a quo’ na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.»

É certo que os Acórdãos para Uniformização de Jurisprudência, ao contrário dos anteriores Assentos, não gozam de força vinculativa, excepto no âmbito dos processos em que são proferidos (art. 4º, nº 1, da LOSJ).

No entanto, como refere Abrantes Geraldes[29]o sistema tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos que é projectada pela conjugação de diversos factores: a solenidade do julgamento (Pleno das Secções Cíveis), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias vêm demonstrando pelas soluções uniformizadoras que acabam por impor-se às polémicas jurisprudenciais que as precedem ou que procuram prevenir (…) ante a publicitação de uma solução uniformizadora emanada do Supremo, sem embargo de situações-limite em que outra solução seja justificada pelas circunstâncias, só uma incompreensível teimosia poderá justificar, na generalidade dos casos, o não acolhimento pelas instâncias da jurisprudência fixada.”

Teimosia que, a existir, fundamentada ou não, permite a interposição de recurso com essa finalidade, independentemente do valor da causa e da sucumbência (artº 629, nº 2, c) do C.P.C.)

Não vêm alegadas quaisquer circunstâncias excepcionais que permitam afastar este entendimento uniformizador, que era além disso, o já seguido maioritariamente pela jurisprudência. Quer isto dizer, que se devem considerar integrados no âmbito da previsão contida no artº 310, e), do C.C., todas as quotas de capital, pagáveis com juros, ainda que tenha ocorrido o seu vencimento antecipado ao abrigo do disposto no artº 781 do C.C. (como aliás já vínhamos defendendo).

Nesta medida, enquadrando-se estas prestações na previsão do artº 310º, al. e), do C. Civil, se tem de considerar que, como alega a recorrente, o crédito resultante da relação subjacente, se encontra prescrito.

A interrupção desta prescrição e o reinício deste prazo em 02/10/2001, não foi objecto de impugnação, pelo que forçosamente se tem de concluir que a obrigação subjacente se encontra prescrita desde 02/10/2006, tendo decorrido na íntegra o prazo previsto no artº 310 al. e) do C.C.

Procede, assim, a apelação interposta, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se extinta a execução movida contra a recorrente.


*


DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da relação, em julgar procedente a apelação revogando a decisão recorrida e declarando extinta a execução movida contra a embargante, pelo decurso do prazo de prescrição constante do artº 310, alínea e), do C.C.
***
 
Custas pela apelada (artº 527 do C.P.C.).


                                                           Coimbra 12 de Abril de 2023

 



[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Neste sentido vide ABRANTES GERALDES et all, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I,  pág. 17[3].
[4] No mesmo sentido vide Ac. do S.T.J. de 02-10-2008, relator Lázaro Faria, Proc. nº 07B1829; Ac. do T.R.P. de 05-03-2015, relator Aristides Rodrigues de Almeida, Proc. nº 1644/11.0TMPRT-A.P1 e Ac. do T.R.G. de 29/06/17, Proc. nº 13/15.8T8VCT.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt .
[5] Neste sentido vide LEBRE DE FREITAS, José, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2001, pág. 669; vide ainda o Acórdão desta 6ª secção, de 19/10/06, Proc. nº 6814/2006-6; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, relator Raul Mateus, CJ 1995 – II, p. 58, de 2.6.2016, relatora Fernanda Isabel Pereira, Proc. nº 781/11. e Ac. do T.R.P. de 29/09/2014, Proc. nº 2494/14.8TBVNG.P1, disponíveis in www.dgsi.pt
[6] TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 221.
[7] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[8] Ob. cit., pág. 157.

[9] DELGADO, Abel, Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada, págs. 100 e segs.
[10] LEBRE DE FREITAS, José, A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª edição, Coimbra Editora 2014, pág. 74.
[11] Vide Acs. do STJ de 29/02/00, CJSTJ 2000, Tomo I, pág. 124 e de 16/10/01, CJSTJ 2001 Tomo III, pág. 89. Na doutrina, é esta a posição assumida por PINTO, Rui, A Ação Executiva, reimpressão, AAFDL Editora, 2020, pág 200. Defende este autor que o subscritor de um título de crédito apenas se vincula ao abrigo das Leis Uniformes, pelo que “Atribuir-se uma vontade negocial ao subscritor de reconhecer a dívida que deu causa ao ato, equivale de facto a ultrapassar os limites objectivos inerentes ao título de crédito e os seus limites temporais.”  
[12] Por todos o Ac. do STJ de 11/05/99, CJSTJ 1999, TOMO II, pág. 88.
[13] ABRANTES GERALDES, António Santos, “Títulos Executivos”, Revista Themis, Ano IV,  nº7 (2003), pág. 60, embora com a ressalva de que esta posição é anterior às reformas introduzidas no processo executivo em 2003 e 2008.
[14] A título de mero exemplo vide os Acórdãos do STJ de 11/05/99, Relator Lemos Triunfante, Revista 99A353, disponível in CJSTJ, 1999, Tomo II, pág. 88 e segs.; de 19/06/08, Relator Santos Bernardino, Revista nº08B1054 e de 28/04/2009, relator Serra Baptista, Revista nº 09B0304, disponível in www.dgsi.pt.
[15] Neste sentido vide RIBEIRO, Vírginio da Costa, REBELO, Sérgio, A Ação Executiva Anotada e Comentada, Almedina 2015, págs. 137 e LEBRE DE REITAS, A Acção Executiva - depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, 2009, págs. 62,63.
[16] Ac. do STJ de 27/11/2007, relator Santos Bernardino, Revista nº 07B3685, disponível in www.dgsi.pt.
[17] TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, Acção Exexutiva Singular, lex, 1998, pág. 68
[18] Se não se encontrar nas relações imediatas , nomeadamente quando invocada contra o avalista, não poderá valer como quirógrafo da obrigação subjacente, pois que, como refere RIBEIRO, Virgínio da Costa e REBELO, Sérgio, A Ação Executiva Anotada e Comentada, Almedina 2021, págs. 151, “sendo o aval um figura exclusiva do direito cambiário, não podendo a livrança ser considerada nessa qualidade, deverá concluir-se que o exequente não dispõe de título executivo que o habilite a demandar o avalista.”

[19] Só então se poderá colocar outra questão que consiste em saber se este ónus de alegação, por reporte ao artº 458 nº1 do C.C., dispensa o credor da prova destes factos e determina a inversão do ónus probandi, de molde a que em sede de embargos incumba ao devedor provar que a causa invocada não existe. A este respeito, refere-se no Ac. do TRC de 10/09/19 relator Barateiro Martins, proc. nº 2296/17.0T8PBL-A.C1 que “o título cambiário, enquanto documento particular assinado pelo devedor, não cumprindo necessária e forçosamente a função de reconhecimento duma dívida, não podia ver-lhe aplicado o art. 458.º do C. Civil; o que significava (em “oposição” à tese do reconhecimento de dívida) que não era o devedor que, como acontece com o reconhecimento de dívida, tem que fazer a prova do contrário, isto é, numa execução em que o título seja integrado por um cheque/letra/livrança “extinto”, não é o devedor/executado que, para se eximir à obrigação, tem que provar que a obrigação não tem causa (…) havendo oposição e negando o executado a existência da relação subjacente, eramos como que devolvidos à “estaca zero”, em termos de definição do direito, uma vez que, dizendo-se que o exequente não goza da presunção do art. 458.º do C. Civil, era ele que, de acordo com os princípios gerais (342.º/1 do C. Civil), teria que provar os factos constitutivos do direito alegado/executado”. Para DELGADO DE CARVALHO, José Henrique, Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa, Quid Juris, 2014, págs. 189, pelo contrário, “é o devedor que tem de fazer a prova do contrário de tais factos, alegando e provando que a obrigação se encontra cumprida ou nunca existiu”, posição a que aderimos tendo em conta a natureza do título executivo que dispensa a prova da existência da obrigação, cabendo em regra aos executados embargantes o ónus de prova dos factos que aleguem e que constituem excepção ao direito, em aparência existente. Não se vê assim razão para considerar de forma diversa os quirógrafos da obrigação exequenda.
[20] Apesar de PINTO, Rui, ob. cit. a págs. 204 defender que “o exequente que queira usar o “mero quirógrafo” deve fazê-lo logo no requerimento executivo, sobre ele construindo os fundamentos e o pedido executivo, nos termos do artº 724 nºs 1 e) e f) e 4 al. a). Efectivamente o credor não pode começar a execução como título de crédito e, supervenientemente, convolar para execução de um reconhecimento quirográfico de dívida. Isto porquanto a invocação da relação subjacente, em substituição da invocação da relação formal, configura a invocação de uma causa de pedir diferente da habitual.” Discordamos deste entendimento pois que invocados no r.e. os factos constitutivos da relação obrigacional subjacente, nada impede que o título possa valer como quirógrafo da obrigação, sem que constitua a diferente qualificação, diversa causa de pedir.  
[21] PINTO, Rui, A Ação Executiva, Almedina 2020, Reimpressão, págs. 203.
[22] Neste sentido vide Ac. do TRG de 28/09/2005, proferido no proc. nº 1444/05-2, de que foi relator António Magalhães.
[23] Proferido no proc. nº 525/14.0TBMGR-A.C1, de que foi relatora Maria João Areias.
[24] Proferido no proc. nº 589/15.0T8VNF-A.G1, de que foi relator Jorge Teixeira.
[25] Proferido no proc. nº 17012/17.8YIPRT.C1 em que foi relator Jorge Arcanjo.
[26] Proferido no Proc. nº 561/16.2T8VIS-A.C1, de que foi relator Fonte Ramos.
[27] Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo IV, 175.
[28] ANTUNES, Ana Filipa Morais, “Algumas questões sobre prescrição e caducidade”, Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, 2010, Coimbra Editora, pág. 47.
[29] Em texto que serviu de base à intervenção do autor no Colóquio realizado no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 25-6-15, disponível online em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/painel_3_recursos_abrantesgeraldes.pdf.