Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/19.2PBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 11/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ – TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
Decisão: DEFERIDO O INCIDENTE
Legislação Nacional: ART.º 135.º, N.ºS 1, 2 E 3 DO CPP
Sumário: I – Não existe lei em sentido técnico-formal que, a nível processual, confira à testemunha [técnico de emergência médica pré-hospitalar] legitimidade para se escusar a depor sobre o que a ofendida de um crime de violência doméstica lhe terá revelado, quando a socorreu.

II – Na decisão para quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, deve ter-se em conta, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

III – Conflituando, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça penal e por outro, o interesse da protecção da relação de confiança entre o socorrista e o socorrido, bem como da protecção da reserva da vida privada, existem razões justificadoras da prevalência do primeiro, sobre o segundo, devendo por isso ser deferido o incidente.

Decisão Texto Integral:





         Acordam em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

Corre termos no Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, o processo comum, com intervenção do tribunal singular, nº 73/19.2PBFIG, no qual está a ser sujeito a julgamento, o arguido JPCL, a quem é imputada a prática de um crime de violência doméstica, sendo ofendida, AS.

No decurso da audiência de julgamento de 27 de Outubro de 2020, ao ser inquirida a testemunha BF, técnico de emergência médica pré-hospitalar – serviço do INEM – urgências de Coimbra, afirmou a mesma estar sujeita ao sigilo profissional.

Nesta decorrência, o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu que, tendo-se a testemunha escusado a depor sobre o que lhe foi transmitido pela vítima Ana Raquel Santos, quando a socorreu por ocasião de factos criminalmente relevantes, fosse suscitado o incidente previsto no art. 135º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal, junto do tribunal superior, a fim de ser aferida a legitimidade da escusa.

A defesa nada requereu.

A Mma. Juíza requerente proferi então o seguinte despacho:

Tendo a testemunha BF invocado estar sujeito ao sigilo profissional por ser técnico de emergência médica pré-hospitalar, escusando-se a depor sobre factos ajuizados neste processo e, estando aqui em causa o Ponto n.º 3 do Código de Ética dos Profissionais do INEM, que regula a sua actividade, entendendo-se que se aplica a tais profissionais de saúde, por interpretação extensiva, o regime vertido no n.º 1 do art.º 135º do Cód. Proc. Penal, forçoso é concluir pela legitimidade do pedido de escusa pelo que se declara, sem mais considerações, nos termos do art.º 135.º n.º 1 do CPP.

Uma vez que, o Ministério Público não prescinde da respectiva inquirição, extraia certidão da presente acta e remeta-se ao Venerando Tribunal da Relação, conforme promovido, para os efeitos previstos no art.º 135.º n.º 3 do Cód. Proc. Penal, fazendo menção de que se trata de um processo de natureza urgente, em que está em causa, alegadamente, um crime de violência doméstica e com julgamento a decorrer.

Notifique.


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         Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. No âmbito do segredo profissional a regra geral é que o mesmo abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua actividade profissional e na base de uma relação de confiança (Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 961).

Trata-se, portanto, da reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício (Ac. da R. de Coimbra de 21 de Setembro de 2011, processo nº 968/09.1TACBR.C1, in www.dgsi.pt).

Estabelece o nº 1 do art. 135º do C. Processo Penal que, os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

O incidente de escusa fundada em segredo profissional é assim processado:

- Invocada a escusa por quem a lei permite ou impõe que guarde segredo e existindo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da invocação, o tribunal onde ela foi deduzida procede às averiguações necessárias e caso conclua pela ilegitimidade da escusa, ordena a prestação do depoimento ou da forma de cooperação pretendida (art. 135º, nº 2 do C. Processo Penal);

- Sendo legítima a escusa, compete ao tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente foi suscitado decidir sobre a quebra do segredo (art. 135º, nº 3 do C. Processo Penal), depois de ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável (nº 4 do mesmo artigo).

Suscitado o incidente e chegado este ao tribunal superior, a decisão ponderará a quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no nº 3 do art. 135º do C. Processo Penal, devendo ter-se em conta, para este efeito, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá sobrepor-se ao outro. E estas interesses são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo da actividade profissional em questão.

Neste confronto, como nota Costa Andrade, foi intenção da lei sujeitar o tribunal a padrões objectivos e controláveis, admitindo a justificação da violação do segredo desde que esteja em causa a dimensão repressiva da justiça penal relativamente aos crimes mais graves, aos que provocam maior alarme social, mas apenas quando o sujeito ao segredo é chamado ao processo penal na qualidade de testemunha (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 1157).

Dito isto.

2. Nos autos foi invocado o segredo profissional por um técnico de emergência médica pré-hospitalar, na qualidade de testemunha em processo penal, para se escusar a depor sobre o que a ofendida de um crime de violência doméstica lhe terá revelado, quando a socorreu.

A 1ª instância entendeu estar em causa o ponto nº 3 do Código de Ética dos profissionais do INEM, bem como, ser aplicável a estes profissionais, por interpretação extensiva, mas sem indicar as concretas razões, o regime do art. 135º, nº 1, do C. Processo Penal, e considerou legítima a escusa da testemunha, determinando a consequente subida do incidente à Relação.

Aqui chegados.

a. O nº 1, do art. 135º do C. Processo Penal começa por enunciar os titulares nominados do segredo profissional, a saber, os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas e os membros de instituições de crédito.

Seguem-se, depois, os titulares inominados, as demais pessoas a quem a lei permite ou impõe que guardem segredo. E aqui, a lei deve ser entendida em sentido técnico-formal, isto é, no sentido de instrumento normativo criado pela Assembleia da República ou pelo Governo (cfr. António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, 2019, Almedina, pág. 166).

O Código de Ética dos profissionais do INEM, nas Normas Específicas de Conduta, ponto 3, com o título, Confidencialidade e sigilo profissional, estabelece:

Todos os colaboradores do INEM estão sujeitos ao sigilo profissional, em particular nas matérias que pela sua importância ou legislação existente não devam ser do conhecimento geral, usando de reserva e discrição relativamente aos factos e informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções e respeitando as regras instituídas quanto à confidencialidade da informação.

Acontece que este código não foi aprovado por qualquer lei, no sentido referido, antes resulta da iniciativa do respectivo Conselho Directivo [com efeito, lê-se no site do SNS, no sector do INEM, onde é consultável o referido Código de Ética, que, «Assim, entende o Conselho Directivo ser o momento para explicitar e formalizar os valores e princípios que o INEM tem e deverá continuar a seguir.»].

Não existindo, pois, lei em sentido técnico-formal que, a nível processual, confira à testemunha o direito de se escusar a depor, não foi legítima a sua escusa.

b. Não obstante, porque a 1ª instância assim não entendeu, há que decidir o incidente.

Já dissemos que nos autos supra identificados é imputada ao aí arguido a prática de um crime de violência doméstica, p. e p.e pelo art. 152º do C. Penal.

Na sua modalidade mais benigna, o crime em causa é punível com pena de prisão de um a cinco anos, o que não só o afasta das comummente designadas bagatelas penais, como o coloca no que podemos designar por média criminalidade.

Por outro lado, é público e notório que a violência doméstica se tornou um verdadeiro flagelo social, sendo o crime cometido com uma frequência elevadíssima que, não obstante sucessivas campanhas de sensibilização, e o endurecimento das respectivas consequências, não mostra sinais de abrandamento.

Acresce serem conhecidas as dificuldades de prova que este tipo de ilícito, por regra, implica. E pode ser, eventualmente, esse o caso dos autos, pois que, aparentemente, o depoimento da testemunha incidiria apenas, por ser esse o seu conhecimento, sobre o que lhe foi dito pela vítima, quando a socorreu, poucas horas depois dos factos, e sobre o seu estado emocional.

Deste modo, conflituando, in casu, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça penal e por outro, o interesse da protecção da relação de confiança entre o socorrista e o socorrido, bem como da protecção da reserva da vida privada, entendemos existirem razões justificadoras da prevalência do primeiro, sobre o segundo, pelo que, deve ser deferido o incidente.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em deferir o presente incidente e, em consequência, determinam que a testemunha BF preste depoimento.

Incidente sem tributação.

Coimbra, 18 de Novembro de 2020



Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – Helena Bolieiro – 1ª adjunta – e Rosa Pinto – 2ª adjunta.