Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/06.9TBOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA DA HERANÇA
LICITAÇÕES
PREENCHIMENTO DO QUINHÃO
VENDA JUDICIAL
Data do Acordão: 04/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1345.º, N.º 1;1373.º; 1374.º, AL. B); 1377.º; 1381.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. O princípio subjacente ao artigo 1374.º, al. b do Código de Processo Civil é o de fazer participar todos os interessados nos proveitos da herança – mesmo aqueles que sejam dotados de menor poder económico ou meios financeiros para a licitação no acervo hereditário – proporcionando-lhe o acesso à formação e preenchimento em espécie dos respectivos quinhões, sejam bens valiosos e de venda fácil ou bens de valor duvidoso.
2. O preenchimento do quinhão do interessado não licitante não poderá ter lugar sempre que dele resulte uma atribuição excedente do valor do referido quinhão.
3. Tendo sido licitados os imóveis rústicos e não tendo sido licitado o único imóvel urbano da herança, não só não deve ser este adjudicado aos não licitantes cujo quinhão seja inferior ao valor do imóvel, como ainda não lhes é lícito requerer a venda judicial, para preenchimento dos quinhões em dinheiro.
4. A solução passa pela atribuição do bem a todos os interessados em comum e na proporção das suas quotas, em analogia com o que se prescreve na parte final da al. d) do artigo 1374.º do Código de Processo Civil, fazendo assim quinhoar todos e cada um no bom e no mau.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de inventário a que se procede por óbito de A...., a correr termos pelo Tribunal da comarca de Oliveira de Frades, nos quais desempenha as funções de cabeça de casal B...., realizada a conferência de interessados e efectuadas licitações nos bens relacionados, foi proferido despacho determinativo da forma à partilha, elaborado o mapa definitivo respectivo e, com base nele, exarada sentença, na qual se adjudicaram os bens "conforme acordado na conferência de interessados".

Inconformado com a forma dada à partilha, veio o interessado C.... interpor recurso da sentença, recurso admitido como apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.

Nas respectivas alegações vêm formuladas as seguintes conclusões (delimitadoras do objecto do recurso, ex vi do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC):

I. O processo de inventário é um caminho em direcção a uma partilha justa e equilibrada de um património cujo titular desapareceu e que se radicou em vários sucessores.

II. Os mecanismos previstos nos artigos 1.373.° a 1.381.° visam preencher, na medida do possível, com os bens da herança, os quinhões a que os interessados têm direito.

III. Tais disposições não podem servir para transformar em devedores de tornas interessados que não foram contemplados com doações ou legados, nem licitaram em quaisquer bens da herança.

IV. Havendo na herança bens móveis e imóveis, e tendo sido licitados bens de uma e de outra natureza, não pode recusar-se a venda de um bem imóvel, único não licitado, como forma de preencher e compor o quinhão dos não licitantes.

V. O que é tanto mais relevante quando, requerida tal venda por um dos interessados, nenhum outro interessado se pronunciou em oposição ao requerido.

VI. As doutas decisões proferidas (no mapa determinativo da partilha e a correspondente homologação) violam as disposições dos artigos 1.374.º a 1.377.° bem como os princípios gerais de direito, na medida que foi violado o princípio da igualdade substancial das partes, dessa forma ofendendo-se igualmente o direito a uma decisão equitativa e ao direito.

Foram dispensados os vistos.

São os seguintes os pressupostos de facto da decisão:

A – Na conferência de interessados a que se procedeu, em 28 de Novembro de 2006, estando presentes ou representados todos os interessados, após as licitações, consignou-se na respectiva acta, além do mais, que "a verba º 27 não foi licitada" e que "a verba nº 35 ficava a pertencer em comum e na proporção dos quinhões a todos os interessados"

B – Os interessados D....e C.... não licitaram nenhuma das restantes verbas, licitadas entre os interessados B...., E....e F.....

C – Ordenado o cumprimento do art.º 1373, nº 1 do CPC, veio o interessado D........, através de requerimento formulado em 4 de Janeiro de 2007, de fls. 134, requerer que se procedesse à venda da única verba não licitada - a sobredita verba 27 – tendo em vista a composição do respectivo quinhão em dinheiro, face ao escasso valor da verba em dinheiro existente na herança ( € 170,00).

D – No despacho determinativo da forma da partilha decidiu a M.ma Juíza: "O preenchimento dos quinhões far-se-á conforme as licitações. No restante veio o interessado D........ requerer a venda do bem não licitado para pagamento das suas tornas. Notificados os demais interessados estes nada disseram. Cumpre decidir. (…) Na verdade, no que respeita ao preenchimento dos quinhões de interessados no processo de inventário e partilha, a regra é a de os bens não licitados são atribuídos aos não licitantes a fim de igualar todos os herdeiros, desde que da mesma natureza dos bens licitados. (…) Assim, adjudico a verba n.° 27 a C.... e D........, em comum e partes iguais, pelo valor constante de fls. 105."

E – A verba nº 27 tem o valor de € 9.040,00 e o quinhão calculado para cada um dos interessados D....e M....é de € 2.540,74.

                                                                       *

A apelação.

As questões que importa dirimir no recurso são duas:

 - Por um lado, a que se prende com a interpretação que o despacho formalizador da partilha fez do disposto na alínea b) do art.º 1374 do CPC, ao preencher o quinhão ou quota do interessado apelante com a verba não licitada cujo valor excedia o desse quinhão ou quota;

- Por outro lado, a que diz respeito à decisão, implícita no mesmo despacho, de desatender ou indeferir a venda do imóvel constante da mesma verba, requerida pelo interessado não licitante A. ......

Sobre a primeira questão, relativa ao preenchimento do quinhão do apelante.

Ao conformar o modo como se haveria de concretizar a partilha dos bens do inventariado, a M.ma Juíza, subsumindo a relação jurídica em apreço na partilha ao preceituado nas alíneas a) e b) do art.º 1374 do CPC, desenvolveu a seguinte argumentação:

Temos assim que a venda judicial para composição dos quinhões só é possível quando os bens não doados nem legados nem licitados forem de natureza e não de espécie diferente dos legados ou licitados. Na verdade, no que respeita ao preenchimento dos quinhões de interessados no processo de inventário e partilha, a regra é a de que os bens não licitados são atribuídos aos não licitantes a fim de igualar todos os herdeiros, desde que da mesma natureza dos bens licitados".

Conclui assim a M.ma Juíza que, por se estar diante de um prédio urbano não licitado, este seria da mesma natureza dos já licitados, pelo que se imporia a sua adjudicação em comum e partes iguais aos dois interessados não licitantes, entre os quais o ora apelante.

No raciocínio assim expendido há, no entanto, um equívoco que se impõe apontar e eliminar.

É que – dissentindo-se do que, pelo menos na aparência, foi entendimento da decisão sob censura - bens da mesma espécie e bens da mesma natureza não quer dizer o mesmo.        

As espécies de bens são aquelas que vêm enunciadas no art.º 1345, nº 1 do CPC: direitos de crédito, títulos de crédito, dinheiro, objectos de ouro, pratas e pedras preciosas e semelhantes, outras coisas móveis e bens imóveis.

Dentro da mesma espécie podem então coexistir bens de natureza diferente, isto é com uma função diferenciada, como será o caso evidente, na espécie dos imóveis, dos prédios urbanos e rústicos[1].

Neste contexto, tendo em conta que foram licitados bens imóveis apenas de natureza rústica, a verba não licitada, constituindo o único prédio urbano do acervo hereditário a partilhar, só podia ser tomada como bem da mesma espécie mas diferente natureza dos que foram licitados.

Isto posto, vejamos então se o tribunal recorrido actuou correctamente, ao preencher as quotas hereditárias dos não licitantes (nos quais se incluía o ora apelante) pelo modo acima referido, modo contra o qual se insurge agora o recorrente C.....

Nos termos da 2ª parte da alínea b) do art.º 1374 do CPC, sendo os não licitantes inteirados, nos seus quinhões, com bens de diferente natureza (ainda que da mesma espécie), embora tal preenchimento, assim efectuado, seja admissível e válido, aqueles não licitantes podem, porém, nesse caso, neutralizá-lo mediante a exigência da composição das respectivas quotas em dinheiro, a obter com a venda judicial dos aludidos bens. Claro está que, se os não licitantes não fizerem tal exigência, o preenchimento, quanto a eles, haver-se-á por operado com esses mesmos bens.                   

O princípio subjacente a este mecanismo legal é de fazer participar todos os interessados nos proveitos da herança – mesmo aqueles que sejam dotados de menor poder económico ou meios financeiros para a licitação no acervo hereditário – proporcionando-lhe o acesso à formação e preenchimento em espécie dos respectivos quinhões, "sejam bens valiosos e de venda fácil ou bens de valor duvidoso"[2].

Ora, perante um tal desiderato, afigura-se que o preenchimento do quinhão do interessado não licitante – indo de encontro às conclusões do recurso – não poderá ter lugar sempre que dele resulte uma atribuição excedente do valor do referido quinhão.

O objectivo "igualitário" da norma não pode violar a vontade hipotética do não licitante, pois que se este não concorreu às licitações foi porque, pelo menos - sem prejuízo de outros motivos - não quis contrair dívidas com tornas originadas pelo excesso da respectiva quota.

Ao provocar a mesma consequência que o não licitante quis evitar, a aplicação do preceito com tal amplitude conduziria à produção de um efeito perverso, na perspectiva do fim prosseguido pela lei, ao transformar aquele interessado em devedor, desprotegendo-o economicamente perante os restantes, apenas para o inteirar no seu direito com bens cujo valor no inventário poderá, as mais das vezes, ser incerto ou, pelo menos, duvidoso, ao ponto de não ter despertado a vontade de licitantes.

De resto, se assim não fosse, isto é, se o não licitante pudesse ver a sua quota preenchida com mais bens do que os necessários, mal se compreenderia que o mecanismo previsto para a correcção do excesso de bens licitados no art.º 1377 do Código, seja pelo pagamento das tornas reclamadas pelos respectivos credores, seja pelo reposicionamento das verbas a mais nos moldes explicitados nos nºs 2 a 4 daquele artigo, não tivesse contemplado, da mesma forma, o excesso de bens atribuídos aos não licitantes, nos termos da alínea b) do art.º 1374.[3] Seria ainda incongruente que a lei permitisse a esse não licitante exigir a venda quando fosse inteirado com bens de natureza diferente dos licitados, e não já, quando, apesar de o preenchimento do respectivo quinhão se ter efectuado com bens da mesma espécie e natureza dos licitados, estes mesmos bens superassem o valor desse seu quinhão.

Donde que se deva considerar que assiste razão ao recorrente quando, nas conclusões I a III, sustenta a inadmissibilidade do preenchimento do seu quinhão com a verba nº 27, por tal preenchimento extravasar em € 1.945.60 o valor da sua parte na herança.   

Sobre a questão da venda da verba não licitada.

Nas conclusões IV a VI propugna o interessado apelante que se devia proceder à venda (judicial) do imóvel urbano que integra a verba nº 27.

Sem aduzir outra efectiva motivação que não seja o requerimento dessa venda pelo outro interessado não licitante – D........ – e a "não oposição" dos demais.

Que dizer?

De acordo com estatuído na 2ª parte da alínea b) do art.º 1374 do CPC, a faculdade conferida ao interessado não licitante de requerer a venda do bem não licitado depende de duas situações cumulativas:

Não ter sido possível atribuir-lhe bens da mesma espécie e natureza dos licitados;

Haver sido ele inteirado – isto é, o seu quinhão ter sido preenchido – com um ou mais bens de natureza diferente dos licitados.

Já se viu que o despacho que aformalou os quinhões aos vários interessados não podia ter atribuído aos não licitantes a verba não licitada, por virtude do efeito adveniente para o excesso das quota a eles pertinentes – sem embargo da circunstância de esse bem, dado tratar-se de prédio urbano, sempre ter natureza diferente de qualquer dos bens licitados, conforme acima se observou.

Por conseguinte, não sendo sequer válido o inteiramento do apelante com aquele bem, não há que considerar, nos termos do preceito, a referida faculdade de requerer a composição em dinheiro através da venda judicial do mesmo.

Na ausência de previsão do inciso legal, sobre o meio alternativo de preencher a quota do interessado não licitante, há que buscar uma resposta equitativa no quadro das outras opções delineadas pela norma.

A solução só pode consistir no único caminho residual que corresponde ao escopo da partilha, que é o de, como enfatiza Lopes Cardoso,[4] "fazer quinhoar todos e cada um no bom e no mau", e se realiza com a atribuição do bem a todos os interessados em comum e na proporção das suas quotas, em analogia com o que se prescreve na parte final da al.ª d) do art.º 1374.

Donde a improcedência da proposição contida nas conclusões IV a VI.

Pelo exposto, julgando a apelação procedente, revogam a sentença homologatória da partilha, a fim de ser corrigida a respectiva forma, quanto ao preenchimento dos quinhões dos interessados não licitantes, e em conformidade com o que supra se explanou.

Sem custas.


[1] Relativamente aos móveis, o nº 4 do art.º 1345 do CPC, ao referir-se à possibilidade de se agruparem os móveis de pequeno valor com um fim unitário, "ainda que da natureza diferente", contém uma clara indicação de que é o critério finalístico ou funcional que permite alcançar o que o legislador visou significar com a expressão bens da mesma natureza.
[2] Como lembra Lopes Cardoso, nas suas Partilhas Judiciais (3ª ed., II Vol., p. 442).
[3] Precisamente com este alinhamento pode ver-se o Ac. do STJ de 18/11/97 in BMJ 471-401.
[4] Ob.e loc. citados, pág. 445.