Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
429854/09.8YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 12/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.428 CC, 497, 498, 673 CPC
Sumário: 1. - A excepção de não cumprimento do contrato é uma excepção dilatória, de direito material, que tem como efeito principal a dilação do tempo de cumprimento da obrigação de uma das partes até ao momento do cumprimento da outra;

2. - Consequentemente o seu exercício não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente, apenas o paralisa temporariamente, ficando a prestação devida pelo excipiente apenas suspensa;

3. - Praticado o facto devido pela contraparte ao excipiente, facto esse imposto em sentença anterior que reconheceu tal excepção de não cumprimento do contrato, e absolveu o excipiente de pedido pecuniário formulado pela referida contraparte, autor nessa acção, pode este autor renovar o mesmo pedido, propondo nova acção contra o excipiente seu devedor;

4. - Neste caso, praticado tal facto, face ao disposto no art. 673º, do CPC, a sentença proferida na 1ª acção - que envolveu as mesmas partes, pedido e causa de pedir - não produz caso julgado.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

A (…) - Construção Civil, Lda, com sede em Arganil, apresentou requerimento de injunção contra Casa de Repouso (…), Lda, com sede em (…) Miranda do Corvo, pedindo que a requerida lhe pague a quantia de 139.097,82 € e juros moratórios, bem como a taxa de justiça que suportou.

Fundamentou tal pretensão em contrato de empreitada celebrado em 3.1.2003, consistente na ampliação na Casa de Repouso (…), correspondendo o capital em divida ao remanescente da factura nº 959, bem como encargos bancários que pagou, referentes a letras de câmbio que serviram como forma de pagamento e de titular o débito da requerida.

A requerida apresentou oposição, alegando que a pretensão da requerente é exactamente igual à que foi objecto da injunção 43/2006, do mesmo Tribunal de Arganil, que deu, após, origem à acção ordinária 181/06.0TBAGN, tendo sido proferida sentença que julgou improcedente a acção, dada a procedência da excepção de não cumprimento do contrato, enquanto a A. não procedesse à eliminação dos defeitos da obra, que se discriminaram na sentença, decisão confirmada pela Relação de Coimbra, pelo que se verifica a excepção de caso julgado. Acrescentou, ainda que até à presente data a requerente não cumpriu tal decisão pois não logrou eliminar os defeitos da obra dados como existentes em tal decisão judicial, pelo que não tem de pagar o reclamado capital.

Distribuída a injunção como processo ordinário veio a A(…), replicar afirmando que reparou os defeitos a que estava obrigada, com excepção de duas situações, pelo que se encontra “removida” a excepção de não cumprimento do contrato, não se podendo verificar a excepção de caso julgado, nos termos do art. 673º, do CPC. Acrescentou que essas duas situações, apontadas na referida sentença, respeitam a pintura de dois tectos, permanentemente húmidos, situações impossíveis de resolver enquanto a ré não modificar o modo de usar divisões (sanitários) do andar superior dos referidos locais, e que independentemente deste facto não pode opor-se uma excepção de não cumprimento, como causa de não cumprimento da obrigação de pagamento de uma divida de capital de 139.097,82 € pelo motivo de existirem dois tectos nos quais não foi aplicada a pintura final.  

De seguida, foi proferido despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicial, a que a A. correspondeu apresentando novo articulado no qual reproduziu no essencial o requerimento de injunção, acrescentando ter efectuado já as reparações ordenadas na sentença proferida na referida acção 181/06.

Após, elaborado despacho saneador, conheceu-se da dita excepção de caso julgado, que foi julgada procedente e em consequência foi a ré absolvida da instância.

2. A A. interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões que se sintetizam:

a) Na sentença proferida no âmbito da acção 181/06 decidiu-se julgar a acção totalmente improcedente, dada a procedência da excepção de não cumprimento do contrato invocada pela ré, face ao que esta não teria que liquidar à A. o montante de capital que se reconheceu ser o unicamente em dívida pela ré, de 139.097,82 €, enquanto a A. não procedesse à eliminação dos defeitos da obra que de seguida se discriminaram, pelo que a ré se mantém devedora para com a A. de tal quantia;

b) A A. alegou, no articulado de aperfeiçoamento do requerimento de injunção, que no seguimento da sentença acima referenciada e no cumprimento da mesma procedeu às reparações dos defeitos/vícios, a que estava obrigada;

c) Assim face ao estabelecido no art. 673º, do CPC, e perante a prática do facto a que estava vinculada, nada impede a recorrente de renovar o seu pedido, não existindo pois a excepção de caso julgado;

d) A sentença recorrida omitiu a consideração da reparação alegada pela A., no articulado de aperfeiçoamento, pelo que a sentença é nula, nos termos do art. 668º, nº 1, d), do CPC;

e) Caso não se decrete a nulidade da sentença recorrida, deve a mesma ser revogada, ordenando-se a prossecução dos autos, com a selecção da matéria relevante para a decisão da causa.

3. A ré contra-alegou, concluindo que a sentença não enferma da apontada nulidade, devendo manter-se o decidido pois verifica-se a aludida excepção de caso julgado.  

II – Factos Provados

Os factos provados são os resultantes do relatório supra.

Acresce outro. Na dita sentença proferida no Processo 181/06, decidiu-se julgar a acção totalmente improcedente, dada a procedência da excepção de não cumprimento invocada pela ré, face ao que esta não terá que liquidar à A. o montante de capital que se reconhece ser o unicamente em dívida pela ré (de 139.097,82 €), enquanto a A. não proceder à eliminação dos defeitos da obra que de seguida melhor se discriminam (de seguida discriminaram-se os defeitos/patologias existentes na obra).

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 684º, nº 3 e 685º-A do CPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as únicas questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da sentença.

- Existência de caso julgado.

 

2. Reza a lei, que a sentença é nula quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que deva apreciar (art. 668º, nº 1, d), 1ª parte, do CPC). Esta estatuição, está intimamente ligada com o disposto no art. 660º, nº 2, 1ª parte, que determina que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Isto é, o Juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir invocadas e de todas as excepções arguidas.

A ré invocou a excepção de caso julgado. A sentença enunciou os requisitos legais do caso julgado. Após, pôs em confronto os sujeitos, pedido e causa de pedir da acção 181/06 com os sujeitos, pedido e causa de pedir da presente acção. Analisando, chegou à conclusão que havia identidade quanto a esses três aspectos, pelo que, logicamente julgou verificada a existência da dita excepção.

Ou seja, a decisão recorrida pronunciou-se expressamente sobre a questão que lhe foi posta, pelo que não se verifica a apontada nulidade.

Já não constituindo nulidade da mesma a omissão de considerar razões ou linhas de fundamentação jurídica, ou argumentos jurídicos, diferentes da expressa na sentença, que as partes hajam invocado (L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., nota 3. ao artigo 668º, pág. 704).

E muito menos, ainda, eventual erro de julgamento, por errada desconsideração de normas legais, desaplicando-as ou aplicando-as mal.

Improcede, pois, esta parte do recurso.   

3. Como é sabido, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa (art. 497º, nº 1, 1ª parte, do CPC). Tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (nº 2, do mesmo artigo).

E repete-se uma causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 498º, nº 1, do CPC). Havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2, do mesmo artigo). Identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende o mesmo efeito jurídico (nº 3, do mesmo dispositivo). E identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (nº 4, 1ª parte, da mesma norma).

Vê-se que tanto na acção 181/06, quanto nos presentes autos, as partes processuais são as mesmas, a A (…) Lda, em ambas é A., e a Casa de Repouso (…), Lda, em ambas é ré.

No que concerne ao pedido, na acção 181/06 a A. pediu a condenação da ré no pagamento do capital de 139.097,82 €, a que acrescem os juros de mora, tal como na presente acção, a mesma A. peticiona a condenação da ré no pagamento do mesmo capital de 139.097,82 €, com juros moratórios.

Consideramos, por isso, que os pedidos são idênticos em ambas as acções.

No que respeita à causa de pedir, quer nos presentes autos, quer no âmbito do processo 181/06 a aqui A. e ali também A. invoca como factos constitutivos a existência de um contrato de empreitada, correspondendo o valor peticionado ao remanescente da factura nº 959, bem como encargos bancários que suportou, referentes a letras de câmbio.

Como os factos jurídicos invocados em ambas as acções, como fundamento da pretensão deduzida pela A., também ali A., são iguais, é claro existir entre elas identidade de causa petendi.

Aparentemente, pois, verificar-se-ia a aludida excepção de caso julgado. Só que as coisas não ficam por aqui. Analisemos, então.

No processo 181/06 decidiu-se julgar a acção totalmente improcedente, dada a procedência da excepção de não cumprimento invocada pela ré, face ao que esta não terá que liquidar à A. o montante de capital que se reconhece ser o unicamente em dívida pela ré (de 139.097,82 €), enquanto a A. não proceder à eliminação dos defeitos da obra, que de seguida melhor se discriminaram.

Ou seja, a ré teria que liquidar à A. o montante de capital de 139.097,82 €, mas somente depois de a A. proceder à eliminação dos defeitos da obra, em virtude da reconhecida existência da excepção de não cumprimento do contrato, invocada pela ré.  

Tal excepção tem como efeito principal a dilação do tempo de cumprimento da obrigação de uma das partes até ao momento do cumprimento da outra.

É para esse efeito que directamente tende o seu exercício.

Ao invocá-lo, o contraente que o faz impõe essa dilação, ficando a execução da sua obrigação subordinada à simultaneidade da realização da respectiva contra-obrigação. Enquanto esta não for cumprida, a exigibilidade daquela fica suspensa.

A excepção de contrato não cumprido tem por função obstar temporariamente ao exercício da pretensão do contraente que reclama a execução da obrigação de que é credor sem, por sua vez, cumprir a obrigação correspectiva a seu cargo.

Traduz-se numa simples recusa provisória de cumprir a sua obrigação por parte de quem a alega, já que o excipiente apenas se opõe à exigência do cumprimento da sua obrigação feita pelo outro contraente, enquanto este não realizar a contraprestação a que, por seu turno, está adstrito.

De modo que o exercício da excepção não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente. Apenas o paralisa temporariamente.

Ao alegar a excepção de contrato prometido, o seu titular coloca-se numa posição meramente passiva, de simples defesa, em relação à pretensão formulada pela contraparte. A prestação por ele devida não é negada em termos definitivos, fica apenas suspensa. Tal suspensão protege-o da exigência do outro contraente, que fica assim impedido de realizar o seu direito de crédito enquanto, por outro lado, não cumprir as suas obrigações perante o excipiente.

Resumindo, trata-se, pois, de uma medida de efeitos temporários, que não destrói o vínculo contratual, apenas produz uma suspensão dos seus efeitos (vide J. João Abrantes, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, págs. 127/128).

Ou como ensina A. Varela, D. Obrigações, Vol. 1º, 2ª Ed., pág. 285, trata-se de um meio puramente defensivo e estritamente temporário, não definitivo.

Por isso, atendendo às classificações doutrinais de excepções se diz que é uma excepção de direito material (por se fundar em razões de direito substantivo, o princípio do cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas, previsto no art. 428º, do CC) e uma excepção dilatória (uma vez que corresponde a uma forma de defesa meramente temporária) somente subordinado à execução da contra-obrigação (vide J. J. Abrantes, ob. citada, pág. 154).

De maneira que, atendo-nos ao caso concreto dos autos, a A. jamais ficou impedida de propor nova acção contra a ré reclamando a quantia devida pela mesma, como aliás foi reconhecido na decisão proferida no Proc. 181/06, desde que a A. praticasse o facto imposto nessa sentença, a eliminação/reparação dos defeitos da obra que executou para a ré, e comprovadamente apurados e discriminados em tal sentença.

A confirmação do ora exposto resulta inclusivamente da lei, do art. 673º, do CPC que dispõe que embora a sentença constitua caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.

O que aplica de pleno ao caso da excepção de não cumprimento. Como nos ensina L. Freitas, ob. cit., nota 2. ao citado artigo, pág. 720, ao referir que tal comando legal se aplica quando a absolvição do pedido resulta de ter sido julgada procedente uma excepção dilatória de direito substantivo, como é o caso da excepção de não cumprimento do contrato, e posteriormente a situação se mostra alterada, como quando o autor realizou a prestação devida.

Ora, no caso dos autos, no articulado de aperfeiçoamento do requerimento de injunção, a A. foi muito clara alegando (como acima exposto) o facto constitutivo complementar, isto é, já ter praticado o facto imposto na decisão proferida no Proc. 181/06, a reparação/eliminação dos defeitos/vícios detectados na obra (aliás, tal alegação já a A. tinha efectuado no articulado de réplica que apresentou, como acima relatado).

Se assim é ou não já é uma questão de prova a produzir pelas partes, pois a ré contrapôs que os defeitos não foram eliminados.

Torna-se, deste modo, insustentável a posição jurídica da decisão recorrida, já que a ser acolhida implicaria, como sublinha a recorrente, que a A. ficaria impedida de, alguma vez, cobrar o crédito que detém sobre a recorrida, o que seria totalmente inconcebível.

Não se verifica, desta sorte, a excepção de caso julgado invocada pela recorrida e declarada pela decisão recorrida que assim tem de ser revogada, ordenando-se em consequência a prossecução dos autos com a respectiva selecção da matéria de facto.           

4. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):

i) A excepção de não cumprimento do contrato é uma excepção dilatória, de direito material, que tem como efeito principal a dilação do tempo de cumprimento da obrigação de uma das partes até ao momento do cumprimento da outra;

ii) Consequentemente o seu exercício não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente, apenas o paralisa temporariamente, ficando a prestação devida pelo excipiente apenas suspensa;

iii) Praticado o facto devido pela contraparte ao excipiente, facto esse imposto em sentença anterior que reconheceu tal excepção de não cumprimento do contrato, e absolveu o excipiente de pedido pecuniário formulado pela referida contraparte, autor nessa acção, pode este autor renovar o mesmo pedido, propondo nova acção contra o excipiente seu devedor;

iV) Neste caso, praticado tal facto, face ao disposto no art. 673º, do CPC, a sentença proferida na 1ª acção - que envolveu as mesmas partes, pedido e causa de pedir - não produz caso julgado. 

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pela A., revogando-se a decisão recorrida, e em consequência ordena-se que o processo prossiga com a selecção da matéria de facto.

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Custas pela ré.

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João Moreira do Carmo ( Relator )
Alberto Ruço
Judite Pires