Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
236/08.6TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: INJUNÇÃO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 04/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMETE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 264º E 193º, Nº2, AL. A) DO C.P.C. E ART. 17º Nº3, DO DEC. LEI 269/98 DE 01/09
Sumário: 1. Os documentos juntos pelas partes podem, em determinadas circunstâncias e verificado certo condicionalismo, colmatar lacunas no ónus de alegação, suprindo deficiências a esse nível; No entanto, quando estamos perante documentos particulares e esses documentos contém uma linguagem técnica muito precisa, associada frequentemente a determinada actividade ou tipo de negócio, cujo sentido não é facilmente perceptível ao leitor, e que só assumem algum significado desde que explicado o respectivo conteúdo e contexto em que surgem, essa remessa é inviável, não sendo admissível à parte – e muito menos ao tribunal – o recurso a esse expediente, associado à utilização de fórmulas como “cujo teor dou por reproduzido”.

2. Em processo de injunção, o mecanismo a que alude o art. 17º nº3, do Dec. Lei 269/98 de 01/09 constitui uma válvula de escape do sistema, permitindo que, nos casos em que ocorrem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, as partes corrijam as respectivas peças processuais; O processo passa, portanto, pelo crivo do juiz, a quem se impõe uma actividade de destrinça entre as situações que, pela simplicidade das matérias em discussão, comportam uma explicitação breve e linear dos factos, e aquelas em que, sem uma explanação mais concretizada e rigorosa dos elementos que compõem o tipo negocial em presença, se omitem factos relevantes para a decisão. No primeiro caso, o processo segue para julgamento, sem mais delongas, porquanto reúne condições para o efeito, no segundo, justifica-se um interregno, interpelando-se então a parte para colmatar lapsos e/ou lacunas do articulado, em ordem a preparar os autos para a fase do julgamento.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

A... instaurou a presente acção, com forma de processo especial de injunção, contra B... , com vista a obter desta o pagamento da quantia de € 7.888,79 respeitante ao preço dos serviços prestados, de angariação de clientes aos serviços telefónicos móveis da C... , da qual a ré é agente autorizado, acrescida das quantias de € 127,38, de € 96,00 e de € 100,00, a título, respectivamente, de juros de mora vencidos, calculados à taxa anual de 10,58 %, contabilizados entre 29.05.2007 e 15.02.08, de taxa de justiça paga e de despesas administrativas.

A ré, notificada do requerimento de injunção, ofereceu articulado de oposição, por via do qual se defendeu invocando a ineptidão da petição inicial e a incompetência territorial do tribunal. Impugna, ainda, a factualidade invocada no requerimento inicial, sustentando que pese embora tenha celebrado com a autora um contrato de prestação de serviços com o objecto acima referido, não deve o valor peticionado por esta, porquanto alguns dos contratos juntos não foram validados pela C... e, por outro lado, a “tabela comissional” apresentada pela autora não corresponde a qualquer tabela alguma vez acertada entre a requerente e a requerida.

Foi proferido despacho que julgou improcedentes as excepções deduzidas pela ré, concluindo-se, relativamente à excepção de ineptidão, da seguinte forma:

“Nos termos do disposto no artigo 10º do Decreto – Lei nº 269/98 de 01.09 no requerimento de injunção deve o requerente, nomeadamente “expor sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão”.

No requerimento apresentado a autora alega que a injunção visa o pagamento das comissões referentes aos serviços prestados à ré, alicerçados nos contratos juntos aos autos, juntando, ainda, em complemento pela tabela comissional de fls. 83 e esclarecendo o período a que os referidos contratos respeitam. Alega pois a autora factos – uma operação comercial concreta perfeitamente identificada através dos documentos contratos e tabela comissional em causa.

Acresce que o procedimento de injunção se insere no âmbito de procedimentos simplificados cujo grau de exigência na exposição da matéria de facto é mínimo.

Face ao exposto improcede, sem mais considerações a excepção suscitada”.

Foi designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento.

No decurso dessa audiência a autora juntou cinco documentos (fls. 150 a 291), que foram notificados à ré, tendo esta exercido o contraditório conforme consta de fls. 298 e 299. Nesse requerimento a ré refere, relativamente a um desses documentos, o seguinte:

“Pelo extracto de conta-corrente, com os valores relativos a cada contrato, pode-se constatar donde provêm as diferenças de valores, nos termos apresentados pela requerente e o que é entendido pela requerida.

O valor das comissões, resultante dos contratos celebrados pela requerente e marido ascendem a €6759,25, por aplicação das tabelas em vigor, e não o reclamado na p.i. de injunção.

O diferencial deriva de : 1) lançamento a débito de contratos já anteriormente pagos; 2) valores de comissões mal lançados”.     

Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:

“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, termos em que decido condenar a ré B..., a pagar à autora  A... a quantia global de € 7.888,79 (IVA incluído), a título de capital em dívida, acrescida de juros de mora vencidos, calculados desde 90.º dia após o término do mês a que respeita cada um dos contratos referidos em 4. sobre as quantias pelos mesmos geradas de acordo com a tabela de fls. 83, até à entrada em juízo do requerimento de injunção (15.02.2008), e de juros de mora vincendos, à taxa legal aplicável aos créditos civis, até efectivo e integral pagamento.

Custas a cargo da autora e da ré, na proporção do respectivo decaimento.

Notifique. Registe”.

Não se conformando a ré recorreu, referindo que “deve a douta sentença ser substituída por outra em que se considere nula a sentença, com todas as legais consequências. Caso assim não se entenda, deve a recorrente ser condenada no pagamento de apenas € 6.759,25, correspondente ao valor por si admitido” - sic.

Formula as seguintes conclusões:

“A) A autora alega ter celebrado um contrato de prestação de serviços, recebendo comissões diferenciadas, conforme o tipo de angariação de clientes por si efectuadas aquisição de serviços junto da operadora C... .

B) A autora alega ainda que os contratos originavam “diversas comissões”, conforme se tratasse de “activação de serviço”, “novo nif” e/ou “fidelização”.

C) Mais remete o valor devido por cada contrato para uma tabela que junta.

D) No entanto, confrontando o teor dos planos descritos nos contratos com o descritivo da tabela, não existe correspondência entre as designações de ambos os documentos.

E) À autora competia alegar e provar os valores de comissões gerados em cada contrato, ou, pelo menos, identificar o montante da comissão gerada por cada tipo de plano contratado, uma vez que tais elementos são factos constitutivos do direito invocado.

F) Não basta a junção de uma tabela para que tal ónus possa ser considerado cumprido, uma vez que dos contratos não resulta o tipo de comissão a que a autora teria direito, nomeadamente por “activação de serviço”, “novo nif” e/ou “fidelização”, bem como da tabela não resulta uma equivalência inequívoca de valores correspondentes a cada um daqueles concretos serviços.

G) Sem a alegação e prova da correspondência entre os contratos e os itens da tabela, ou seja, sem discriminar individualmente o valor de comissão gerado por cada contrato, não é possível apurar o quantum devido pela recorrente à autora.

 H) Por esse facto, a causa de pedir torna-se ininteligível, sendo fundamento de absolvição da instância.

I) Por outro lado, ao não constar a discriminação individualizada de tais valores na douta sentença, esta é nula, por não especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão.

J) Mais é nula por se fundamentar em pressupostos inexistentes.

K) Nunca poderia a sentença condenar em valor superior ao reconhecido pela recorrente, no montante de €6.759,25 (IVA incluído).

L) Ao decidir como decidiu, a douta sentença violou, entre outras, as disposições legais contidas nos arts. 193º, nº2 – al) a, 493º, 494º e 698º, nº1 – alc. b) e c), todas do CPC e art. 342º, nº1 do C.Civil”.                    

A autora apresentou contra alegações, formulando as seguintes conclusões:

 “1. Uma vez que tendo sido gravada a prova, imputava à recorrente, quanto aos meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas, sob pena de rejeição de recurso, indicar especificamente os concretos meios probatórios constantes da gravação nele realizada. A recorrente tinha de, com exactidão, indicar as passagens da gravação em que se funda.

2. Por outro lado, as conclusões formuladas pela recorrente, no termo das suas alegações pecam por deficiência e obscuridade, na medida em que não sintetizam, de forma clara e concisa e concludente, o que deixou exposto nas suas alegações, chegando mesmo ao ponto de questionarem, a despropósito, alguns pontos de facto;

3. Por conseguinte, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 685º-B do C.P.C., o recurso deverá ser rejeitado, na parte correspondente à impugnação da decisão da matéria de facto; 

4. Voltando, nas conclusões, a insistir na ineptidão da petição inicial; ineptidão essa inexistente por devidamente colmatada em audiência de julgamento, seja através da prova documental, seja através da prova testemunhal, de acordo com o previsto na respectiva legislação;

5. Sendo certo que a douta sentença recorrida decidiu, com perfeito acerto e total observância dos factos e da lei aplicável;

6. A matéria de facto dada como provada perlo Tribunal a quo, foi minuciosamente fundamentada na respectiva motivação;  

 7. Os fundamentos de facto e de direito, que estão na base da douta decisão, foram devidamente especificados e não estão em oposição com a mesma;

8. Pelo que a decisão proferida não padece de quaisquer nulidades e muito menos das que lhe são apontadas pela recorrente, nomeadamente, “por se fundamentar em pressupostos inexistentes”, e muito menos “por condenar em valor superior ao reconhecido pela recorrente”.  

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO  

A 1ª instância deu por provado o seguinte circunstancialismo:

1. A ré dedica-se, para além do mais, ao fornecimento de serviços móveis telefónicos, enquanto agente da C... .

2. No exercício da sua actividade, a ré acordou com a autora, a angariação por parte desta, em nome da primeira, de clientes aos serviços telefónicos móveis da C... .

3. Nos termos do referido acordo, tal serviço importaria para a autora o pagamento pela ré das comissões discriminadas na tabela comissional junta a fls. 83 e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

4. No cumprimento do aludido acordo a autora celebrou, em nome da ré, para além do mais, os contratos juntos a fls. 2 a 82 dos presentes autos que aqui se dão por integralmente reproduzidos, não só quanto ao concreto serviço subscrito, como em relação às datas, subscritores e demais elementos neles apostos.

5. Tais contratos deveriam ter gerado para a autora o pagamento pela ré dos valores descritos em 3., cujo pagamento deveria ser efectuado, por transferência bancária, no prazo de 90 dias após o término do mês a que respeitavam.

6. No dia 20 de Dezembro de 2007 a autora recebeu o valor correspondente ao trabalho referente aos meses de Abril, Junho e Agosto desse mesmo ano.

7. Contudo, já na data acima referida se encontravam em débito quantias referentes a contratos celebrados em datas anteriores, num total de € 7.888,79 (IVA incluído).

8. Porém, até ao momento presente a ré não procedeu ao respectivo pagamento.

9. A ré foi notificada do requerimento de injunção em 18.02.2008.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C.– salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formulada pela recorrente, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar, fundamentalmente:

- da ineptidão da petição inicial;

- se a sentença proferida enferma das nulidades a que se reportam o art. 668º, nº 1, alíneas b) e c) do C.P.C.

2. A ré excepcionou a ineptidão da petição inicial, invocando o disposto no art. 193º, nº2, al) a do C.P.C., por “falta de causa de pedir” – art. 12º da contestação – e, em sede de recurso, alude ainda à ininteligibilidade da causa de pedir, questão que cumpre apreciar porquanto, atenta a data de instauração da acção (15/02/2008), aplica-se aos autos o regime processual emergente do Dec. Lei 303/2007 de 24/08, donde decorre que a apelante pode, em sede de recurso da sentença proferida, impugnar a decisão que julgou improcedente a excepção – art. 691º, nº3 do C.P.C..

Embora estejamos perante um procedimento simplificado – trata-se de procedimento de injunção, que segue a forma de processo especial que resulta do regime aprovado pelo Dec. Lei 269/98 de 1 de Setembro, com as alterações subsequentes, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção específica [ [i] ] –, devendo o autor, na petição, “expor sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão” – art. 9º, nº2, alínea d) – e sendo o réu citado para contestar, acto que não carece de forma articulada – art. 15º –, parece-nos razoavelmente evidente que isso não significa que o autor possa formular o seu pedido sem alegar os factos que são constitutivos do direito invocado e que consubstanciam a causa de pedir. [ [ii] ]

Como refere Alberto dos Reis, o autor não pode limitar-se a formular o pedido, isto é, a indicar o direito que pretende fazer reconhecer, “tem de especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte desse direito, o facto ou acto de que, no seu entender, o direito procede”. [ [iii] ].

A causa de pedir, que juntamente com o pedido constitui o elemento objectivo da instância, define-se, nos termos do artigo 498º nº 4 do C.P.C., como o facto jurídico concreto de que procede a pretensão deduzida em juízo (teoria da substanciação). Consiste, pois, na alegação da relação material de onde o demandante faz derivar o direito invocado e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos concretos que suportam o pedido. [ [iv] ]

No sistema jurídico processual português vigora o princípio do dispositivo, pelo que é ao autor, que invoca a titularidade de um determinado direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito (artigo 264º do C.P.C.). Na verdade, o tribunal está impedido de carrear para o processo factos que não tenham sido alegados pelas partes, sem prejuízo de poderem ser atendidos os factos instrumentais resultantes da discussão da causa, nos termos do artigo 264º nº 2 do mesmo diploma. Daí que o demandante deva ser particularmente rigoroso e preciso na indicação (concretização) da causa de pedir, numa dupla vertente: deve alegar todos os factos que, globalmente considerados, asseguram a viabilidade do seu pedido, e deve fazê-lo evitando a utilização de expressões vagas, genéricas e conclusivas, porquanto o julgador não pode socorrer-se das mesmas na fundamentação da sua decisão.        

Por outro lado, a necessidade de delimitar a causa de pedir invocada baseia-se no respeito do princípio do contraditório, que impõe que ao réu seja dado conhecimento dos factos que fundamentam a pretensão do autor, pois só dessa forma o exercício do direito de defesa daquele pode ser efectivo.

                                             *   

Remetendo-nos ao caso concreto, e apreciando a excepção invocada pela ré, afigura-se-nos que a mesma não pode ser abordada nos moldes pretendidos pela apelante, porquanto, adianta-se já, a questão não é de ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, mas sim de procedência/improcedência do pedido, por eventual insuficiência da matéria de facto invocada pela autora/apelada. [ [v]  ]

Vejamos.

No requerimento inicial, do modelo oficialmente aprovado, a autora assinalou o espaço em que pode ler-se “Fornecimento de bens e serviços”, invocando ainda, quanto à “origem do crédito”, o seguinte:

“Não pagamento das comissões acordadas referentes aos 81 contratos juntos. As correspondentes comissões deveriam ser pagas (como sempre haviam sido) de acordo com a tabela anexa (doc. nº 82), no prazo máximo de 90 dias após o termino do mês em que aqueles foram enviados (via e-mail) para empresa requerida; (…) Ou seja, a requerida está em débito para com a requerente no valor global 7.888,79€ (IVA incluído).

Há que esclarecer que um só contrato pode ser objecto de diversas comissões (nomeadamente, activação de serviço, novo nif, fidelização), cada uma das comissões a receber tem valores diferentes conforme o tarifário e período de fidelização contratado pelo cliente”.

Ao que se percebe do requerimento inicial, conjugando-o, em parte, com a oposição apresentada, parece inequívoco que a autora acordou com a ré angariar para esta clientes, com vista à prestação de serviços telefónicos móveis da C... e, por cada cliente angariado – ou seja, cada contrato feito – a autora ganharia determinada comissão – independentemente agora de saber se os contratos tinham que ser validados pela C... (art. 24º da contestação).

Ora, o ponto é saber quais as comissões acordadas entre a autora e a ré, evidenciando-se o desacordo entre as partes, exactamente, quanto a essa factualidade.

A autora não indica, expressamente, qual o acordo globalmente feito com a ré – o preço dos seus serviços – e, por outro lado, com referência a cada um dos contratos, também não indica qual a comissão respectiva, limitando-se a remeter para os documentos que junta.

Ora, temos entendido que os documentos juntos pelas partes podem, em determinadas circunstâncias e verificado certo condicionalismo, colmatar lacunas no ónus de alegação, suprindo deficiências a esse nível [ [vi] ]. Não choca, por exemplo, que, aludindo-se a um contrato de compra e venda de imóvel, a parte remeta para a respectiva escritura pública no que concerne a elementos do contrato, como a identificação da coisa vendida e preço de venda.

No entanto, quando estamos perante documentos particulares e esses documentos contém uma linguagem técnica muito precisa, associada frequentemente a determinada actividade ou tipo de negócio, cujo sentido não é facilmente perceptível ao leitor, e que só assumem algum significado desde que explicado o respectivo conteúdo e contexto em que surgem, essa remessa é inviável, não sendo admissível à parte – e muito menos ao tribunal – o recurso a esse expediente, associado à utilização de fórmulas como “cujo teor dou por reproduzido”.

É exactamente esse o caso em apreço.

Na petição inicial a autora remeteu para 82 documentos, que consubstanciam igual número de contratos com clientes e, relativamente às invocadas “comissões”, remete para um documento intitulado “Tabela Comissional”, constante de fls. 83 dos autos, documento que, por si só, nada diz, não se alcançando qual o valor das referidas comissões.

E tanto é assim que, em sede de julgamento, a autora vem explicitar essa matéria, indicando agora, expressamente, com referência a cada contrato (que identifica), qual o negócio feito, “comissão gerada” e “comissão paga”, concluindo depois pelo “diferencial/pagamentos”.

Ora, em primeiro lugar, essa explicitação é feita na fase processual incorrecta – não se invoca, sequer, qualquer situação de superveniência – e, por outro lado, não é admissível o procedimento utilizado para o efeito. Efectivamente, a autora pede a junção de um documento (apresentado a fls. 163 a 165 dos autos) que, supostamente, constituirá meio de prova de um facto juridicamente relevante mas que, em bom rigor, mais não é senão um verdadeiro (e novo) articulado da parte [ [vii] ]. Aliás, o dito “documento” foi elaborado pela autora e é significativo o pedido de junção, formulado em audiência, com o seguinte teor:

“O documento nº 3 trata-se da enunciação taxativa dos contratos juntos pela autora e no qual se esclarece quais os negócios relativos a cada um deles, a comissão gerada, a comissão paga e o diferencial nesses mesmos pagamentos. A numeração constante neste documento é relativa aos documentos apresentados com o nº4. Estes últimos tratam-se das validações dos contratos enviadas pela C... à autora”.  

Refira-se que, subsequentemente, com referência a este documento e a outros juntos pela autora segue-se a resposta da ré (fls. 298 e 299), no exercício do contraditório e, sem que se perceba com que fundamento ou justificação processual, a autora volta, depois, a apresentar outro requerimento (fls. 302 e 303), tecendo considerações sobre a resposta da ré, não se vislumbrando que sobre esse “requerimento” tenha recaído qualquer despacho.

Em suma, a um procedimento simplificado na fase dos articulados, seguiu-se uma fase de audiência de julgamento com contínuas sessões (quatro), em função, também, dos inúmeros documentos juntos pelas partes (fls. 150 a 291, 318 a 356, 365 a 381, 386 a 402, 407 a 417, 421 e 422), na tentativa de explicitar factos que podiam (deviam) ter sido invocados no requerimento inicial e contestação – não é seguramente esse o modelo que o legislador teve em vista quando institui o regime da injunção.

                                             *

Noutra ordem de considerações dir-se-á que a sentença proferida reflecte precisamente essa insuficiência, na parte em que se referem os fundamentos de facto da decisão.

Efectivamente, consignou-se aí que a autora e a ré celebraram o acordo mencionado supra sob o nº 2 mas, quando se trata de enunciar a contrapartida monetária convencionada entre as partes para pagamento, pela ré, dos serviços prestados pela autora, o tribunal a quo limitou-se a remeter para o aludido documento, em termos muito similares ao que a autora havia feito no requerimento inicial, padecendo essa enunciação, pois, de igual vício – não pode deixar de salientar-se que na “tabela” para a qual a Sra. juiz remete são referenciados valores, sem que sequer seja indicada qualquer unidade monetária.

Não bastando, no nº5 dos factos assentes o tribunal volta a ser lacónico e vago na enunciação do circunstancialismo em causa, quando refere que “tais contratos deveriam ter gerado para a autora o pagamento pela ré dos valores descritos em 3., cujo pagamento deveria ser efectuado, por transferência bancária, no prazo de 90 dias após o término do mês a que respeitavam”. (sublinhado nosso).

É claro que, exactamente para obviar à deficiência e obscuridade sobre esse específico ponto da matéria de facto, o tribunal vê-se depois na necessidade de concluir conforme consta do nº 7, ou seja, que no dia 20 de Dezembro de 2007 a autora recebeu o valor correspondente ao trabalho referente aos meses de Abril, Junho e Agosto desse mesmo ano, mas nessa data já se “encontravam em débito quantias referentes a contratos celebrados em datas anteriores, num total de € 7.888,79 (IVA incluído)” – exactamente o valor global do pedido. Trata-se de matéria notoriamente conclusiva, que não pode constar, nesses precisos termos, dos factos provados e que por força do disposto no art. 646º, nº4 do C.P.C. teria de considerar-se não escrita. Aliás, com essa enunciação ficava imediatamente resolvida a questão de direito, o que é processualmente inadmissível.    

A este propósito pode ler-se na sentença recorrida, em sede de fundamentação de direito, o seguinte:

“Nos termos do disposto nos arts. 406.º e 798.º do Código Civil, os contratos devem ser pontualmente cumpridos, pelo que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelos prejuízos causados ao credor.

Assim, por força dos preceitos acima mencionados e atenta a factualidade provada, não pode a ré deixar de ser condenada no pagamento à autora da quantia de € 7.888,79 (IVA incluído) – respeitante ao somatório das comissões devidas de acordo com os contratos referidos em 4. e a tabela a que se alude em 3. dos factos provados”.

Nas alegações de recurso a ré indaga, com toda a razão, sobre os valores concretos em causa, que a sentença, afinal, não especifica nem menciona, devendo fazê-lo. [ [viii] ]    

Refira-se ainda que, ao contrário do que refere a recorrida, a questão não se prende com a impugnação do julgamento da matéria de facto feito pela 1ª instância. A apelante não questiona a valoração feita pela Sra. juiz, colocando a discussão a outro nível, a saber, em sede de vícios (nulidades) da sentença.

É sobre a autora que recai o ónus de prova do acordo celebrado com a ré, incluindo o elemento alusivo ao preço/valor dos serviços que se obrigou a prestar, bem como os factos pertinentes ao cumprimento desse acordo, ou seja, quais os clientes angariados e em que termos – quantos “contratos” celebrou, portanto, usando a terminologia do requerimento inicial, pessoalmente ou por intermédio de colaborador, o seu marido, uma vez que a grande maioria dos documentos juntos aos autos mostram-se assinados pelo mesmo e não pela autora, pese embora seja esta a “emitir o competente recibo”, segundo refere – art. 342º, nº1, do Cód. Civil.

                                             *

Concluindo, a autora invoca factos para fundamentar o pedido, e a ré até os percebeu, apenas não invoca os suficientes para suportar juridicamente a sua pretensão.      

Mas, se assim é, então justificava-se que a Sra. Juiz convidasse a autora a apresentar novo requerimento inicial aperfeiçoado.

Efectivamente, deduzida oposição, como aconteceu, os autos são remetidos à distribuição – art. 16º, nº1 – e, nos termos do art. 17º, nº3, “recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais”.

Trata-se de um mecanismo que constitui, afinal, uma válvula de escape do sistema, permitindo que, nos casos em que ocorrem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, as partes corrijam as respectivas peças processuais – à semelhança e aqui por maioria de razão, acrescentamos, do que dispõe o art. 508º, nº3 do C.P.C.[ [ix]]. O processo passa, portanto, pelo crivo do juiz, a quem se impõe uma actividade de destrinça entre as situações que, pela simplicidade das matérias em discussão [ [x] ], comportam uma explicitação breve e linear dos factos, e aquelas em que, sem uma explanação mais concretizada e rigorosa dos elementos que compõem o tipo negocial em presença, se omitem factos relevantes para a decisão. No primeiro caso, o processo segue para julgamento, sem mais delongas, porquanto reúne condições para o efeito – sem prejuízo, obviamente, do conhecimento de excepções e/ou do pedido, em conformidade com o que dispõe o art. 3º nº1 –, no segundo, justifica-se um interregno, interpelando-se então a parte para colmatar lapsos e/ou lacunas do articulado, em ordem a preparar os autos para a fase do julgamento.

Em última instância, joga-se aqui o poder de direcção do processo por parte do juiz (art. 265º do C.P.C.) e o princípio da cooperação enunciado no art. 266º do mesmo diploma, podendo conjugar-se de forma harmoniosa a desejável celeridade processual – ratio do regime especial de injunção, que tem em vista a obtenção, “de forma célere e simplificada”, de título executivo, como se refere no Dec. Lei 404/93 de 10/12, que instituiu a injunção – com a necessidade de salvaguarda da eficácia e segurança do sistema jurídico, em ordem à justa composição do litígio.

Considerando o exposto – e não olvidando as fragilidades que a sentença evidencia, na enunciação dos fundamentos de facto da decisão, que esta Relação nunca poderia colmatar uma vez que não se procedeu à gravação dos depoimentos prestados em audiência [ [xi] ] – entendemos que o despacho proferido pela 1ª instância, que julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, é prematuro.

Antes da apreciação dessa excepção impunha-se proferir despacho de aperfeiçoamento, dirigido à autora/apelada, como, aliás, esta propugna, subsidiariamente, nos arts. 17º e 18º do articulado de resposta à excepção deduzida.     

De resto, não será difícil à autora proceder ao aperfeiçoamento, considerando as vicissitudes ocorridas na fase do julgamento e a que aludimos supra.

3. Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela apelante e com referência às invocadas nulidades de sentença.

                                             *

Conclusões:

1. Os documentos juntos pelas partes podem, em determinadas circunstâncias e verificado certo condicionalismo, colmatar lacunas no ónus de alegação, suprindo deficiências a esse nível; No entanto, quando estamos perante documentos particulares e esses documentos contém uma linguagem técnica muito precisa, associada frequentemente a determinada actividade ou tipo de negócio, cujo sentido não é facilmente perceptível ao leitor, e que só assumem algum significado desde que explicado o respectivo conteúdo e contexto em que surgem, essa remessa é inviável, não sendo admissível à parte – e muito menos ao tribunal – o recurso a esse expediente, associado à utilização de fórmulas como “cujo teor dou por reproduzido”.

2. Em processo de injunção, o mecanismo a que alude o art. 17º nº3, do Dec. Lei 269/98 de 01/09 constitui uma válvula de escape do sistema, permitindo que, nos casos em que ocorrem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, as partes corrijam as respectivas peças processuais; O processo passa, portanto, pelo crivo do juiz, a quem se impõe uma actividade de destrinça entre as situações que, pela simplicidade das matérias em discussão, comportam uma explicitação breve e linear dos factos, e aquelas em que, sem uma explanação mais concretizada e rigorosa dos elementos que compõem o tipo negocial em presença, se omitem factos relevantes para a decisão. No primeiro caso, o processo segue para julgamento, sem mais delongas, porquanto reúne condições para o efeito, no segundo, justifica-se um interregno, interpelando-se então a parte para colmatar lapsos e/ou lacunas do articulado, em ordem a preparar os autos para a fase do julgamento.

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, determina-se a anulação do processado posterior à apresentação do articulado de resposta às excepções (fls. 126-132), devendo o tribunal a quo proferir despacho de aperfeiçoamento, dirigido à autora/apelada, para os efeitos supra indicados.

Custas por ambas as partes, na proporção de metade para cada uma, nos termos do art. 446º do C.P.C., afigurando-se ser esse o respectivo grau de decaimento.

Notifique.


[i] Reportamo-nos às alterações introduzidas pelos seguintes diplomas:
- Rect. n.º 16-A/98, de 30/09
- DL n.º 383/99, de 23/09
- DL n.º 183/2000, de 10/08
- DL n.º 323/2001, de 17/12
- DL n.º 32/2003, de 17/02
- DL n.º 38/2003, de 08/03
- DL n.º 324/2003, de 27/12
- Rect. n.º 26/2004, de 24/02
- DL n.º 107/2005, de 01/07
- Rect. n.º 63/2005, de 19/08
- Lei n.º 14/2006, de 26/04
- DL n.º 303/2007, de 24/08
- Lei n.º 67-A/2007, de 31/12 não relevando as alterações resultantes do DL n.º 34/2008, de 26/02 e do DL n.º 226/2008, de 20/11

[ii] Salvador da Costa, in A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Almedina, 5ª Edição, p. 189, refere que a lei não dispensa o requerente do procedimento de injunção “de invocar, no requerimento, os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, certo que a lei só flexibiliza a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves ”.

[iii] Comentário, vol. III, Coimbra Editora, 1946, p.370.

[iv] “A narração há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido”, Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 1981, p. 351. Analisando o conceito de causa de pedir, Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, p. 57 refere que a doutrina mais recente “tende a regressar à utilização do conceito de Tatbestand, matizado porém com a ideia de que o acontecimento da vida narrado pelo autor é susceptível de redução a um núcleo fáctico essencial. tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais como causa do efeito pretendido”. 
[v] Castro Mendes alude à dificuldade em “manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição inicial e a inviabilidade em sentido estrito”, in Direito Processual Civil, 1980, edição da AAFL, p 48. 
[vi]  “Os documentos não exercem apenas a função de prova, podem, no campo processual, ainda ter a de complemento de alegação de certos factos articulados quando juntos à peça processual onde o autor expõe a sua pretensão e respectivos fundamentos (a petição inicial) ou o réu deduz a sua defesa (a contestação)”, Ac. STJ de 02/11/2004, proferido no processo 04A3451 (Relator: Lopes Pinto), acessível in www.dgsi.pt.
[vii] Como refere Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora, 1981, p.9, citando  Manuel Rodrigues, “não podem considerar-se documentos, para o efeito das regras relativas à produção de prova documental, os articulados, alegações, requerimentos etc…”, que “não entram na categoria de documentos; a sua função é completamente diferente da que têm os documentos propriamente ditos”.   
[viii] A apelante é particularmente eloquente no discurso:”Somatório? Que somatório é esse? Para haver um somatório é preciso haver parcelas para somar… E, no caso concreto, estamos na absoluta ignorância das parcelas concretas de que resulta aquele somatório”.
[ix] Considerando que o requerimento de injunção pode ser subscrito pelo interessado e, portanto, sem intervenção de um técnico do direito, é natural que se acentue a necessidade de correcção.       
[x] No preâmbulo do Dec. Lei 269/98 e relativamente aos procedimentos para cumprimento de obrigações emergentes de contrato alude-se, por exemplo, à “normal simplicidade desse tipo de acções”. 
[xi] Nas contra alegações de recurso a autora/recorrida alude à gravação da audiência, referência que só pode dever-se a lapso. Efectivamente, compulsando o processo, não se vislumbra que as partes tenham requerido a gravação, como podiam fazer, nos termos do art. 3º, nº3, o tribunal também não ordenou nesse sentido e nas actas de julgamento não é feita qualquer menção a esse procedimento.