Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3301/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: AVAL EM TÍTULO CAMBIÁRIO
PRESUNÇÃO RESULTANTE
CONTRAPROVA
ASSENTO DO STJ DE 1/02/1996 E SUA APLICAÇÃO ACTUAL.
Data do Acordão: 04/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº31º, § 4, DA LULL .
Sumário: I – O § 4 do artº 31º da LULL não distingue entre relações mediatas e imediatas e a razão de ser da norma radica na necessidade de defender e proteger os interesses de futuros detentores do título, os quais só surgem com a transmissão da letra.
II – Revogado que foi o artº 2º do C. Civ. pelo artº 4º, nº 3, do DL nº 329-A/95, de 12/12, os assentos passaram a ter o valor de acórdãos de uniformização de jurisprudência proferidos nos termos dos artºs 732º-A e 732º-B do CPC, o que significa haverem perdido a primitiva força vinculativa, transformando-se em simples função orientadora e meramente indicativa .

III - Assim, no âmbito das relações imediatas, a presunção constante do artº 31º, § 4, da LULL pode ser ilidida por prova em contrário, ou seja, pode provar-se que o aval foi feito a favor do aceitante .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

Os embargantes - A..., B..., C... e D... – deduziram embargos de executado, por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa, com forma de processo ordinária, instaurada na Comarca de Vouzela pela exequente E...
Alegaram, em resumo:
A exequente apresentou à execução catorze letras de câmbio, por ela sacadas e todas aceites pela executada “ F...“, as quais foram endossadas ao G....
O aval concedido pelos embargantes nas letras de câmbio dadas à execução é a favor do sacador, nos termos do § 4 do art.31 da LULL e tratando-se de presunção inilidível, nenhum direito assiste à exequente, que carece de legitimidade.
A embargante D... não teve qualquer intervenção nas letras de câmbio juntas sob os docs. nº2, 4, 6 e 8, sendo parte ilegítima.
Pediu que se julgue:
a) - Procedente a excepção de ilegitimidade da embargada, por não ser portadora legítima das letras de câmbio;
b) – Que a embargante D... não interveio como sacadora, aceitante, avalista ou endossante nas letras dadas à execução sob os nºs 2, 4, 6 e 8, no valor de 1.3000.000$00 cada;
b) – Que o aval dado pelos embargantes e constante do verso das letras sob os docs.1,3,5,7,9,10,11,12,13, e 14 foi concedido ou prestado a favor do sacador ( E... ), pelo que nada devem a esta relativamente aos valores nelas titulados.
Contestou a embargada concluindo, em síntese, que os embargos devem ser julgados procedentes na parte da embargante D..., por não ser avalista das letras sob os docs. nº2, 4, 6 e 8, devendo improceder quanto aos demais pedidos.
No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade activa da embargada/exequente.
Os embargos foram julgados procedentes relativamente à executada D... quanto às letras de câmbio sob os nºs 2, 4, 6 e 8.
Afirmou-se quanto ao mais a validade e regularidade da instância.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu pela improcedência dos embargos
Recorreram de apelação os embargantes, formulando as seguintes conclusões:
1º) - A especial disciplina jurídica a que as letras estão sujeitas, com destaque para os princípios da literalidade e da abstracção da obrigação cartular, fazem com que esta seja independente da obrigação subjacente e que os seus contornos sejam fixados unicamente pelo título.
2º) – A reconstituição da obrigação dos recorrentes deverá fazer-se pela simples inspecção do título de onde consta ( no que concerne aos referidos nas alíneas B/ dos factos assentes ) apenas a inscrição “ bom para aval “ e as respectivas assinaturas.
3º) – O nº4 do art.31 da LULL quando dispõe que o “ aval deve indicar a pessoa por quem se dá . Na falta de indicação entender-se-á ser pelo sacador “ estabelece uma presunção inilidível.
4º) – Mantendo-se actualizado o Assento do STJ de 1/2/1966 ( Diário do Governo nº44 de 22/2/66 ) que fixou – “ Mesmo no domínio das relações imediatas o aval que não indique o avalizado é sempre prestado a favor do sacador “, significa que o nº4 do citado art.31 estabelece uma presunção “ juris et de jure”, não admitindo prova em contrário.
5º) – Por força do art.17 nº2 do DL 329-A/95 de 12/12, os Assentos têm o valor de acórdãos uniformizados da jurisprudência, devendo ser vinculativos e acatados pelos tribunais inferiores.
6º) – A sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação do art.31 da LULL e nº2 do art.17 do DL 329-A/95.
7º) – Os quesitos 1 e 2 da base instrutória são conclusivos.
8º) – Pelo que, fossem quais fossem as respostas sempre deveria considerar-se não escritas, nos termos do art.646 nº4 do CPC.
9º) – Ao ser elaborada a sentença, tudo se deveria passar como se aqueles dois quesitos não tivessem sido formulados, logo interpretou incorrectamente o art.646 nº4 do CPC.
Contra-alegou a embargada, preconizando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) - Se, no domínio das relações imediatas, é ou não possível conhecer por quem foi dado um aval expresso sem indicação do avalizado;
b) - Se as respostas aos quesitos 1ª e 2º devem ter-se por não escritas.

2.2. – Os factos provados:
1) - Com o requerimento inicial, a exequente juntou ao processo catorze letras de câmbio, conforme documentos 1 a 14 ( cf. fls. ), com datas de saque de 20/11/97, 3/5/96, 20/11/97, 3/5/96, 20/11/97, 3/5/96, 20/11/97, 3/5/96, 20/11/97, 20/11/97, 20/11/97, 20/11/97, 20/11/97 e 20/11/97, e vencimento, respectivamente, em 8/12/97, 15/12/97, 8/1/98, 15/1/98, 8/2/98, 15/2/98, 8/3/98, 15/3/98, 8/4/98, 8/5/98, 8/6/98, 8/7/98, 8/8/98 e 8/9/98, nos montantes de 1.500.000$00, 1.300.000$00, 1.500.000$00, 1.300.000$00, 1.500.000$00, 1.300.000$00, 1.500.000$00, 1.300.000$00, 1.500.000$00, 1.500.000$00, 3.500.000$00, 3.750.000$00, 4.000.000$00 e 4.000.000$00.
2) - Em cada um delas, consta como sacadora a exequente “ E...“ e como sacada e aceitante “ F... “.
3) - Nas letras de câmbio dadas á execução e que constituem os docs. nº1, 3, 5, 7, 9, 10, 11, 12, 13 e 14 consta nos respectivos versos as palavras “ bom para aval “, com as assinaturas dos embargantes após tal expressão, não existindo naquelas letras qualquer referência ou indicação sobre qual fosse o beneficiário da garantia que constitui o aval.
4) - O aval prestado no verso dos títulos dados à execução foi prestado a favor da “ F... “ ( r.q.1º )
5) - Os embargantes sabiam que o aval era prestado a favor do aceitante das letras e não do sacador ( r.q.2º ).

2.3. – 1ª QUESTÃO:
A primeira questão consiste em saber se, no domínio das relações imediatas, é ou não possível conhecer a favor de quem foi dado um aval expresso sem indicação do avalizado.
Prescreve o art.31 § 4 da LULL que “ o aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta da indicação, entender-se-á pelo sacador”.
Importa indagar se este preceito consagra uma presunção “ juris et de jure “ ou antes uma presunção “juris tantum”, susceptível se ser ilidida, no domínio das relações imediatas, por prova em contrário.
O Assento do STJ de 1/2/66 ( BMJ 154, pág.131), veio estabelecer que “ mesmo no domínio das relações imediatas, o aval que não identifique o avalizado é sempre prestado a favor do sacador “.
A interpretação do Assento, porque ligada à jurisprudência dos conceitos, foi desde o início criticada por parte da doutrina, ao considerá-la inaceitável, pelo menos no domínio das relações imediatas, sendo que tal solução havia sido rejeitada pela jurisprudência e doutrina estrangeiras ( cf. FERRER CORREIA, Direito Comercial, III, pág.212, VAZ SERRA, RLJ ao 108, pág.79 ).
Tal como já então justificava VAZ SERRA, compreende-se que em relação a terceiros adquirentes de boa fé se aplique a presunção juris et de jure de que o aval foi prestado a favor do sacador, mas nas relações imediatas, inexistindo terceiros de boa fé a proteger, tal presunção pode ser ilidida por prova em contrário.
Recorrendo às regras da hermenêutica jurídica, o § 4 do art.31 da LULL não distingue entre relações mediatas e imediatas e a razão de ser da norma radica na necessidade de defender e proteger os interesses de futuros detentores do título, os quais só surgem com a transmissão da letras, o que não sucede aqui, pois as letras não entraram em circulação.
Na verdade, o facto de constar no verso das letras dadas à execução “ Pague-se à ordem do G... “ traduz um endosso para cobrança ou procuratório, não transmitindo os direitos inerentes as letras, visando apenas habilitar o endossado a cobrar o montante, em nome e por conta do endossante.
Daí que, como afirma OLIVEIRA ASCENÇÃO, “ nenhuma preocupação desta ordem está em causa quando o sacador se dirige contra o avalista e demonstra que o aval não foi dado em favor dele, mas em favor do aceitante “ ( Direito Comercial, vol.III, pág.169 ).
Revogado que foi o artigo 2º do Código Civil pelo artigo 4º, nº3 do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, os assentos passaram a ter o valor de acórdãos de uniformização de jurisprudência proferidos nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil (artigo 17º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), o que significa haverem perdido a primitiva força vinculativa ( obrigatória geral ), transformando-se em simples função orientadora e meramente indicativa.
Por conseguinte, consideramos que no âmbito das relações imediatas, a presunção constante do art.31 § da LULL pode ser ilidida por prova em contrário, ou seja, pode provar-se que foi feito a favor do aceitante ( cf., neste sentido, Ac do STJ 14/10/97, BMJ 470, pág.637, de 9/5/2002, de 29/10/2002, de 21/1/2003, Ac RP de 14/7/2000, de 17/10/2000, disponíveis em www dgsi.pt, Ac RL de 20/1/2000, C.J. ano XXV, tomo I, pág.88 ).

2.4. - 2ª QUESTÃO:
Dispõe o art.646 nº4 do CPC – “ Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes “.
Estabelecem-se aqui os limites de validade e atendibilidade das respostas à base instrutória e porque contende com as normas jurídicas do direito probatório, reconduz-se ainda a uma questão de direito, como decorre do art.722 nº2 do CPC.
Para os apelantes os quesitos 1º e 2º ( respondidos positivamente ) são conclusivos, logo devem ter-se por não escritos, nos termos do art.646 nº4 do CPC, mas não lhes assiste razão.
Num estudo publicado na C.J. ano 2003 ( STJ ), tomo III, pág.5 e segs., o Conselheiro ABEL FREIRE, sublinha que os juízos de facto podem nuns casos ser matéria de facto e noutros matéria de direito, discernindo sobre os critérios da distinção.
No mesmo sentido, acentua ANTUNES VARELA ( RLJ ano 122, pág. 220 ):
“Há que distinguir nesses juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum e aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador.”
E continua - “Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto... Os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei (…), - para concluir que - “Se, porém, algum dos juízos de valor sobre factos (ou seja, sobre matéria de facto) for indevidamente incluído no questionário, a resposta do colectivo a esses quesitos não deve ser tida por não escrita, por aplicação do disposto no nº 4 do art.º 646º do CPC, visto não se tratar de verdadeiras questões de direito.”
A jurisprudência tem adoptado este critério, sustentando que se o apuramento de determinada realidade se efectua à margem da aplicação da lei, tratando-se apenas de averiguar factos cuja existência não depende da correcta interpretação a dar a qualquer norma jurídica, estaremos perante o domínio da matéria de facto ( cf, por ex. Acs. do STJ de 22/2/1995 e de 8/11/95, C.J. ano I, pág. 279 e II, pág. 294, respectivamente ).
Pois bem, ainda que os quesitos formulados tenham implícitos um certo juízo valorativo, eles contendem com pura matéria de facto, reportada à descoberta da real intenção dos embargantes avalistas sobre a pessoa do avalizado.
De resto, as respostas a quesitos conclusivos não se podem dar por não escritas, por não se tratar de uma questão de direito e só esta está abrangida pela sanção do art.646 nº4 do CPC ( cf. ANTUNES VARELA, loc.cit., pág.222, Ac do STJ de 13/5/2003, www dgsi.pt/jstj ).
Em resumo, porque a sentença recorrida não violou as normas jurídicas invocadas, improcede a apelação.
III - DECISÃO
Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar os apelantes nas custas.
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Coimbra, 12 de Abril de 2005.