Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
317/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VITOR
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO
FALSAS DECLARAÇÕES
NULIDADE DO CONTRATO
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 05/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 2º DO DL 522/85; ARTIGO 429º DO CÓDIGO COMERCIAL; ARTIGO 4º Nº 2 DO DL 388/91 DE 10 DE OUTUBRO
Sumário: 1. O contrato de seguro obrigatório tem um papel de acentuado cariz social, funcionando de certa forma como contrato a favor de terceiro.
2. Atendendo à especial configuração de tal seguro e interesse público que lhe está subjacente, com-preende-se que a lei subtraia justificadamente o mesmo a certos princípios da plena autonomia privada; É o caso do disposto no artigo 2º do DL 522/85 ao referir que "se qualquer outra pessoa [que não o condutor da viatura] celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satis-faça o disposto no presente Diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior".

3. Prestando o proponente falsas declarações ao preencher a proposta de seguro, este é nulo à face do que estatui o artigo 429º do Código Comercial.

4. Não existindo subjacente ao vício um interesse público relevante no sentido da nulidade do contrato stricto sensu, tem-se entendido que as aludidas “falsas declarações” tornam o contrato simplesmente anulável, o que cabe aliás também no espírito e letra do preceito em causa.

5. Intervindo na formação do contrato de seguro e junto do proponente um mediador com amplos poderes de representação da Seguradora, nos termos do artigo 4º nº 2 do DL 388/91 de 10 de Outubro e tendo sido aquele intermediário que aconselhou o proponente a declarar que era proprietário da viatura, sabendo que esta iria ser conduzida e posteriormente adquirida pelo filho, não pode a seguradora eximir-se à sua responsabilidade nomeadamente para com terceiros lesados. Sentindo-se prejudicada resta à Ré seguradora demandar o mediador e/ou respectiva Companhia de Seguros.

6. Não colocando as ulteriores propostas de seguro em virtude da mudança de veículo qualquer nova questão essencial no que concerne ao contrato posteriormente ao momento em que foi celebrado, v.g. no que toca à pro-priedade da viatura, o seguro manteve-se válido subsis-tindo os pressupostos da proposta inicial.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal de Relação de Coimbra.
A estes autos de processo comum na forma ordinária que correm termos sob o nº 145/01 foram na sequência da decisão de fls. 139 a 141, apensados os que corriam termos no 1º Juízo do Tribunal a quo sob o nº 174/01 (forma ordinária) e sob o nº 175/01 (forma sumária) e os que corriam termos neste mesmo Juízo sob o nº 172/01 (forma sumária).
Em todos os referidos autos, assim como nestes, se discute a responsabilidade civil decorrente de um mesmo acidente de viação, ocorrido em 15/3/1998, em que dois veículos automóveis colidiram entre si.
Em todos os referidos autos são Réus a Companhia de Seguros A..., o Fundo de Garantia Automóvel, B... e C....
Nestes Autos são Autores D... e esposa E.... Nos que tinham o nº 172/01 é Autor F.... Nos que tinham o nº 174/01 é Autora G.... Nos que tinham o nº 175/01 é Autora H....

Durante a audiência de julgamento veio F..., Autor nos autos que corriam termos sob o nº 172/01, desistir do pedido que formulara, desistên-cia que foi homologada por decisão de fls. 400.

Todos os Autores fundamentam o seu pedido de indemnização no facto de terem sofrido danos patrimo-niais e não patrimoniais em consequência de acidente de viação causado com culpa do Réu B..., que conduzindo o seu veículo de matrícula VF-54-42 fora da sua "mão de trânsito", foi embater com ele no que circulava em sentido contrário, de matrícula DJ-93-47, tendo falecido o condutor deste último, I..., filho dos Autores Eliseu Pires e esposa, sendo que os Autores Sílvia, Ivone e João seguiam como passageiros no referido DJ e tiveram lesões físicas.

A Ré Companhia de Seguros A... é demandada na qualidade de seguradora do veículo VF para ser con-denada a pagar aos Autores António Eliseu e esposa a quantia de Esc. 22.259.828$00, à Autora Sílvia a quan-tia de Esc. 3.500.000$00; e à Autora Ivone a quantia de Esc. 775.000$00.
Os Réus Fundo de Garantia Automóvel, Nuno Costa e António Baptista são demandados subsidiariamente, para o caso de o veículo causador do acidente não beneficiar de seguro válido e eficaz, o Réu Nuno como condutor do dito veículo causador do acidente e o Réu António como alegado proprietário do mesmo.
Concluindo que deve ser absolvida do pedido, con-testou a Ré seguradora aceitando que o acidente tenha ocorrido da forma alegada pelos Autores, afirmando des-conhecer os danos por estes sofridos e declinando a responsabilidade que lhe é imputada, dizendo, em suma, que:
- Não celebrou qualquer contrato de seguro com o Réu Nuno, condutor do veículo VF, pelo que não assumiu a responsabilidade civil deste;
- Em 31/7/1995 o Réu António propôs à Ré a contra-tação de um seguro do ramo automóvel para um veículo de matrícula IT-92-28;
- À apólice foi atribuído o nº 5.872.394, para garantia do risco de responsabilidade civil por danos causados pelo citado veículo, até ao montante de 50.000.000$00;
- Tal como consta da proposta de contrato de seguro, o proprietário do veículo era o proponente (o Réu António), sendo ele o seu condutor habitual;
- A apólice foi objecto de alterações propostas pelo Réu António por substituição de veículo em 30/11/95, pelo veículo de matrícula PL-54-96 e em 03/02/97 pelo veículo de matrícula VF-54-42.
- Em qualquer das alterações se mantiveram as demais condições inicialmente contratadas, tendo então declarado o Réu António que tinha adquirido os veículos nas referidas datas.
- Porém, o dono e o condutor habitual dos veículos segurados era o Réu Nuno, que estava habilitado com carta de condução desde 27/6/95 e tinha 23 anos de idade à data do acidente.
- A propriedade do VF encontrava-se registada a favor do Réu Nuno desde 18/3/97, ou seja cerca de um mês e meio após a data do pedido de alteração do seguro para esse veículo por parte do Réu António e da alegada aquisição por parte deste, não tendo a transmissão da propriedade sido comunicada à Ré seguradora;
- O seguro foi contratado em nome do Réu António com base em falsas declarações destinadas a defraudar a seguradora para o Réu Nuno poder beneficiar de prémio inferior.
- Se a Ré seguradora soubesse que o dono e condu-tor habitual do veículo segurado era o Réu Nuno não tinha aceite a proposta de seguro, ou, pelo menos, não a tinha aceite com as condições em que foi contratada a apólice, pelo que é nulo o contrato de seguro, o que sempre ocorreria por força do disposto no artº 428º do Código Comercial, por o Réu António não ter interesse na transferência da responsabilidade.
- Mesmo considerando-se que à data da alteração da apólice para o VF era o Réu António o seu dono, sempre o contrato de seguro seria ineficaz à data do acidente por o VF ter sido alienado a favor do Réu Nuno na data do registo a seu favor (18/03/1997), nos termos do dis-posto no artº 13º do DL nº 522/85.

Contestou o Réu Fundo afirmando que à data do aci-dente se encontrava validamente transferida para a Ré A... a responsabilidade civil emergente da circu-lação do veículo VF, razão por que não lhe compete indemnizar os Autores, uma vez que isso só acontece quando não existe seguro válido. Ainda em contestação disse que, por terem decorrido mais de 3 anos entre a data do acidente e a propositura da acção, prescreveu o direito dos Autores à indemnização peticionada e que desconhece a forma como ocorreu o acidente e os danos dele decorrentes para os Autores, os quais afirma terem sido exageradamente quantificados.
Posteriormente, reconhecendo ter havido interrup-ção do prazo de prescrição, veio o Réu Fundo requerer que se considerasse não escrita a arguição da referida excepção.

Contestaram os Réus B... e C.... dizendo, em suma, que:
- são parte ilegítima por a responsabilidade peti-cionada pelos Autores se encontrar transferida para a Ré A... por contrato de seguro válido.
- Foi o mediador da Ré seguradora que propôs o con-trato de seguro como foi celebrado, sabendo que era o Réu Nuno o dono do VF e o seu condutor habitual.
- Não teve o Réu Nuno qualquer responsabilidade na ocorrência do acidente, uma vez que o mesmo se deu na sua mão de trânsito, onde foi embatido pelo condutor do DJ.
- Desconhecem os danos alegados pelos Autores.

Responderam os AA. pugnando pela improcedência das excepções arguidas em sede de contestação.

A fls. 123 destes autos, secundando os factos ale-gados pelos Autores quanto à forma como decorreu o aci-dente, veio o Instituto de Solidariedade e Segurança Social intervir espontaneamente nos autos e formular contra a Ré Companhia de Seguros A... pedido de reembolso das prestações que pagou à Autora E... pela morte de I... no valor de Esc. 120.000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal e contados desde a citação até integral pagamento, ale-gando o direito de sub-rogação previsto no artº 16º da Lei nº 28/84 de 14/8 e no DL nº 59/89 de 22 de Feve-reiro.
A Ré Seguradora, tomando posição sobre a pretensão do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, reme-teu para a contestação que havia apresentado relativa-mente aos demais Autores.

Também os Hospitais da Universidade de Coimbra, fazendo seus os articulados das Autoras Ivone e Sílvia e do Autor F... e alegando que lhes prestou serviços de saúde em consequência do acidente em discussão nos autos, vieram a fls. 149 e 152 deduzir incidente de intervenção principal pedindo a condenação dos Réus no pagamento de Esc. 361.097$00, acrescida de juros de mora à taxa legal e contados desde a citação até integral pagamento.
Apenas a Ré Seguradora e o Réu Fundo contestaram a pretensão dos Hospitais da Universidade de Coimbra. A primeira fê-lo remetendo para os factos que já alegara nos autos e o segundo dizendo desconhecer os factos que fundamentam aquela pretensão.

No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância, tendo-se admitido a intervenção espontâ-nea dos requerentes HUC e Instituto, julgando-se ine-xistirem questões prévias a apreciar que tivessem por efeito obstar ao conhecimento do mérito da causa e relegou-se para momento posterior o conhecimento da excepção de ilegitimidade passiva.

Procedeu-se a julgamento com a observância do for-malismo legal, tendo a final sido proferida sentença que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade passiva dos Réus B... e C... julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A) Absolveu-se do pedido os Réus Fundo de Garantia Automóvel, B...e C....;
B) Condenou-se a Ré Companhia de Seguros Fidelidade,
SA. a pagar:
1) Ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social a quantia de € 598,56 (quinhentos e noventa e oito Euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde 29/02/2002 até integral pagamento.
2) Aos Hospitais da Universidade de Coimbra a quan-tia de € 1.801,09 (mil, oitocentos e um Euros e nove cêntimos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 29/02/02 até integral pagamento.
3) Aos Autores D... e esposa Amé-lia de Jesus Teixeira Pires, em regime de solidariedade activa, a quantia de € 1.296,02 (mil, duzentos e noventa e seis Euros e dois cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde 21/3/2001 até integral pagamento e a quantia de € 77.500,00 (setenta e sete mil e qui-nhentos Euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde 11/6/2004 até integral pagamento.
4) À Autora H..., a quantia de € 1.000,00 (mil Euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde 11/06/04 até integral pagamento.
5) À Autora G..., a quan-tia de € 13.300,00 (treze mil e trezentos Euros), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acres-cida de juros de mora à taxa legal, contados desde 11/06/04 até integral pagamento.
Daí o presente recurso de apelação interposto pela Companhia de Seguros A...., a qual no termo da sua alegação, pediu que se revogue a sentença apelada, con-siderando-se o seguro nulo e ineficaz ou caso assim se não entenda, que o mesmo cessou os seus efeitos.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A resposta dada à matéria do quesito 44º deve ser alterada de negativa para positiva com base nos depoimentos das testemunhas José Agostinho Pereira – gravação nas fitas magnéticas com o nº 2 desde o nº 06.16 a 17.41 Lado A e desde 00.00 até ao final do lado B e cassete nº 3 desde o nº 00.00 a 9.40 lado A e Mário Vaz de Almeida, gravado nas fitas magnéticas com o nº 4 de voltas nº 0279 Lado B a voltas 1027, lado A da fita magnética nº 5.
2) O disposto no artº 2º, nº 2, do D.L. nº 522/85, de 31.12, respeita a todas as pessoas que não sendo legalmente obrigadas a segurar, todavia celebram rela-tivamente ao veículo um contrato de seguro exactamente porque podem vir a ser responsabilizadas, ou porque o conduzem ou porque são detentores do veículo.
3) Por seu lado, o artº 8º nº 1, de tal diploma legal, referindo-se às pessoas que são abrangidas pelo seguro, pressupõe que o contrato de seguro seja cele-brado por quem possa vir a ser responsabilizado nos termos dos artsº 500º e 503º do C.C.. Ora,
4) A obrigação da apelante é a de responder pelas indemnizações devidas pelo seu segurado, que é aquele que, ao tempo do acidente, consta da Apólice, pois o objecto do seguro incide sobre a responsabilidade do tomador e só há responsabilidade pessoal deste se for ele o proprietário do veículo, já que, não o sendo, o tomador não podia transferir para a apelante uma res-ponsabilidade que não tinha.
5) Daí que não sendo o Réu António Batista proprie-tário, detentor por qualquer título ou condutor do veiculo VF, não transferiu para a apelante qualquer risco, já que a ele nunca lhe poderia ser assacada, nestas condições, qualquer responsabilidade por aciden-tes com tal veículo e esta não celebrou com o Réu Nuno Costa qualquer contrato de seguro, não tendo, por isso, assumido contratualmente a responsabilidade civil deste por acidentes causados com o referido veiculo.
6) Uma vez que da proposta de substituição do veí-culo PL-54-96 pelo veículo VF-54-42 – fls. 75 – não consta que o seguro é feito por conta de outrem, pre-sume-se contratado por conta de quem o fez – Art. 428º, nº 2º, do Cód. Comercial, sendo certo que, no caso con-creto, esta presunção não foi ilidida mediante prova em contrário.
7) Tendo sido o Réu António Batista quem efectuou o seguro automóvel relativo ao veículo VF-54-42, este fê-lo por conta própria e não por conta de outrem, nomeadamente do Réu Nuno Costa, proprietário e condutor habitual do mesmo ao tempo do acidente, pelo que aquele não transferiu para a apelante qualquer risco.
8) Está-se, pois, perante um contrato relativa-mente ao qual lhe falta o objecto, pois não tendo a apelante assumido qualquer responsabilidade, também não é responsável perante os terceiros lesados, que não têm direito a dela haver qualquer indemnização, pois o con-trato é nulo.
9) O proponente da alteração do seguro, o Réu Antó-nio Batista, para além de ter ocultado à apelante a identidade do verdadeiro proprietário e condutor do veículo VF declarou ser ele o proprietário de tal veí-culo, fazendo-o como se ele fosse o directamente inte-ressado nessa alteração, tendo por isso prestado de forma positiva, declarações falsas.
10) Tais declarações afectam a existência do con-trato e tornam o seguro nulo, até porque falta objecto ao negócio jurídico.
11) Aquele tipo de declarações teve igualmente influência nas condições do contrato de seguro, uma vez que resultou provado que se nas propostas de alteração do contrato de seguro constasse que o dono e o condutor do veículo seguro era o Réu Nuno, a Ré A... não aceitaria acerar o contrato de seguro com as concretas condições em que foi alterado.
12) O contrato objecto dos presentes autos é nulo por o Réu António Batista, na proposta de alteração que passou a incluir o veículo interveniente no acidente – VF –, ter prestado, sem intervenção do mediador, falsas declarações ou declarações incompletas ou reticências que tiveram influência na existência ou condições do mesmo. No entanto,
13) Está documentado e provado nos autos que na proposta de alteração do contrato de seguro constava que o proponente C... havia adquirido o veículo a incluir – VF 54-42 – na data do início de alteração – 03.02.9?.
14) A apelante entendeu tal declaração como um qualquer declaratário mediano, colocado na sua posição, a teria entendido – Artº 236º do C.C. – isto é, que o C... era o dono do veículo – VF 54-42 – a incluir na proposta de alteração. Ora,
se no dia 03.02.97 o veiculo VF era propriedade do Réu António 8atista, então já não o era no dia 18.03.97, data da inscrição de tal direito a favor do Réu Nuno Costa, e o contrato de seguro, caso fosse válido, o que não se admite, teria cessado os seus efeitos no dia da alienação, ou seja, pelo menos, em 18.03.9T – Artº 13º, nº 1, do D.L nº 522/85, de 31.12.
15) A sentença impugnada violou, pois, o disposto nos Artsº 236º e 342º do C.C., nos artsº 426º a 429º do Cód. Com. e nos Artsº 1º, 2º, 8º e 13º do D.L. nº 522/85, de 31.12.
Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirma-ção da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
2. FUNDAMENTOS.
+
O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. Por contrato de seguro, titulado pela apó-lice nº 60/5.872394, C... havia transferido a sua responsabilidade civil extra-contratual, por danos causados pela circulação do veí-culo VF-54-42, para a Companhia de Seguros A...., até ao montante de Esc. 50 000 000$;
2.1.2. A proposta de seguro apresentada à Compa-nhia de Seguros A...., relativa ao veículo IT-92-38, foi subscrita por C...;
2.1.3. Na proposta apresentada à Companhia de Segu-ros A....., constava que “o proprietário” do veículo era o proponente e que este o tinha “adqui-rido nessa data”, sendo o seu “condutor habitual”;
2.1.4. Tal proposta de seguro foi objecto de duas alterações contratuais, subscritas pelo mesmo C..., uma em 30 de Novembro de 1995, pelo veículo de matrícula PL-54-96, e outra em 3 de Fevereiro de 1997, pelo veículo em causa, o VF-54-42;
2.1.5. Nas referidas alterações mantiveram-se as demais condições inicialmente contratadas, bem como a pessoa do segurado, que declarava que havia adquirido os veículos naquelas datas;
2.1.6. Na participação do acidente à seguradora constava que “o condutor habitual” do veículo era o Réu Nuno Costa;
2.1.7. A aquisição do direito de propriedade do veículo mostra-se inscrita em nome do Réu Nuno Costa, na Conservatória do Registo Automóvel, desde o dia 18 de Março de 1997;
2.1.8. O Réu Nuno Costa tirou a sua carta de condu-ção no dia 27 de Junho de 1995;
2.1.9. No dia 8 de Maio de 1998 o Réu Nuno Costa escreveu à Companhia de Seguros A...., a carta cujo teor consta a fls. 87 e 88;
2.1.10. A seguradora recebeu os prémios do seguro referentes àquela apólice;
2.1.11. O Instituto de Solidariedade e Segurança Social reembolsou os Autores António Eliseu e mulher, pelo funeral do seu filho, com um subsídio de funeral no montante de Esc. 120 000$;
2.1.12. Os Hospitais da Universidade de Coimbra, em consequência do acidente de viação em apreço nestes autos, despenderam com os cuidados de saúde prestados a H..., a F... e a G... as importâncias, respecti-vamente, de Esc. 20 655$, de 326 100$ e de 14 332$.
2.1.13. No dia 15 de Março de 1998, pela 01h40m, o Réu Nuno Costa conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula VF-54-42, na Estrada Nacional n.º 221, nas imediações da localidade de Arrifana, con-celho da Guarda, no sentido norte-sul.
2.1.14. A estrada, no local, configura uma recta com cerca de 200 metros de comprimento, tendo a faixa de rodagem 6,30 metros de largura, além das bermas.
2.1.15. O piso era asfaltado e encontrava-se em bom estado de conservação.
2.1.16. Na referida localidade, mas em sentido con-trário, ou seja, no sentido sul-norte, circulava o veículo automóvel, ligeiro, de matrícula DJ-93-47, con-duzido por I....
2.1.17. Ao aproximar-se das primeiras moradias pró-ximas do cruzamento da dita localidade de Arrifana, na referida Estrada Nacional nº 221, o Réu Nuno Pedro Pereira da Costa passou a circular fora da sua "mão de trânsito", ocupando a metade esquerda da via, atento o sentido de marcha que levava, ou seja norte-sul, e foi embater de forma violenta no veículo automóvel de matrícula DJ-93-47, conduzido pelo referido I..., que transitava em sentido contrário, na sua mão de trânsito, na metade direita da sua faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, sul-norte.
2.1.18. Em consequência do embate, o referidoI... sofreu os ferimentos descritos no relató-rio de autópsia, cuja cópia consta a fls. 17 e ss., que foram a causa directa e necessária da sua morte.
2.1.19. No veículo conduzido pelo I... seguiam também G..., H... (no banco ao lado do condutor), Luís Paulo Proença Antunes e F....
2.1.20. O embate deu-se entre a frente lateral esquerda do veículo VF e a frente lateral esquerda do veículo DJ.
2.1.21. Com o embate o veículo DJ foi projectado para a berma direita, atento o sentido de marcha que o mesmo levava.
2.1.22. Na altura não chovia e o piso estava seco.
2.1.23. Após o embate o referido I... per-maneceu por algum tempo, cerca de 30 minutos cons-ciente, tendo ficado entalado nos destroços da viatura que conduzia, sofrendo dores enormes até ao momento da sua morte.
2.1.24. Foi ainda colocado com vida na ambulância dos Bombeiros da Guarda, mas já chegou sem vida ao Hos-pital Sousa Martins – Guarda.
2.1.25. O I... havia nascido no dia 13 de Agosto de 1972.
2.1.26. Era um jovem alegre e saudável, sociável e considerado por toda a gente da povoação onde vivia.
2.1.27. Era o único filho do casal D... e E... e não tinha filhos.
2.1.28. Vivia com os seus pais, que o criaram e educaram, e teve uma infância, adolescência e juventude sem problemas de saúde e de relacionamento com os pais.
2.1.29. O I... e os seus pais tinham um bom e recíproco relacionamento afectivo.
2.1.30. O falecido I... estava noivo de Ivone Franco Ferreira, com quem iria casar no dia 8 de Agosto desse ano, casamento esse que era aguardado e preparado também pelos seu pais.
2.1.31. Os pais do I... até à data da morte deste eram pessoas felizes, que sobreviviam dos produtos duma pequena agricultura, onde eram ajudados pelo seu filho, e de uma renda de Esc. 40 000$/mensais.
2.1.32. Com a morte do seu filho, os pais de I... sofreram muito, necessitando por vezes de acom-panhamento médico e de medicação com vista a atenuarem o seu estado depressivo.
2.1.33. O I... tinha trabalhado para a firma Central Gran – Sociedade Central de Granitos, Ld.ª, onde auferia um vencimento mensal de Esc. 58 900$.
2.1.34. O I... tinha iniciado em Março de 1998 a profissão de motorista, para a firma Cabral & Gonçalves, Estação de Granitos e Obras Públicas, Ld.ª, onde iria auferir um vencimento mensal de Esc. 90 000$.
O veículo DJ-93-47 era propriedade do falecido I....
2.1.35. Em consequência do embate o veículo condu-zido pelo I... ficou totalmente destruído.
2.1.36. Tal veículo tinha, antes do acidente, o valor venal, pelo menos, de Esc. 200 000$.
2.1.37. Os Autores António Eliseu e esposa despen-deram com a remoção do veículo DJ do local do acidente a quantia de Esc. 9 828$.
2.1.38. Despenderam Esc. 170 000$ com os serviços de funeral do seu filho.
2.1.39. Em consequência do embate, Silvia Janela ficou politraumatizada (no crânio, na face, nos ossos do nariz, no punho e mão direita), tendo sido transpor-tada de ambulância para o Hospital Sousa Martins – Guarda, onde foi assistida e daí para os Hospitais da Universidade de Coimbra, onde, depois de assistida, teve alta no mesmo dia.
2.1.40. Silvia Janela teve dores, que foram classi-ficadas, em termos de quantum doloris, como “con-sideráveis”.
2.1.41. Nasceu no dia 1 de Setembro de 1977.
Silvia Janela exerce a profissão de operadora de dados, auferindo uma remuneração mensal de Esc. 65 000$.
2.1.42. As lesões consolidaram no dia 8 de Abril de 1998, deixando como sequelas do acidente uma cica-triz de cerca de 1,5 cm de comprimento no nariz e uma pequena cicatriz no lábio superior, que em termos de dano estético foram classificadas como “muito ligei-ras”.
2.1.43. Ficou com incapacidade geral temporária total desde o dia 15/3/1998 até ao dia 8/4/1998.
Ficou com incapacidade temporária profissional no mesmo período.
2.1.44. Foi-lhe fixada uma incapacidade permanente parcial de 15% (a partir da data da consolidação).
2.1.45. Ivone Correia, em consequência do embate, sofreu ferimentos vários (na vista direita, na mão, no braço, no ombro e no joelho), tendo sido transportada de ambulância para o Hospital Sousa Martins – Guarda, onde foi assistida e daí transportada para os Hospi-tais da Universidade de Coimbra, onde foi assistida e teve alta no mesmo dia.
2.1.46. Teve dores e sofreu com a morte do seu noivo.
2.1.47. É funcionária pública e aufere um venci-mento de Esc. 74 900$00.
2.1.48. João Manuel Alves, em consequência do aci-dente, sofreu fractura da mandíbula direita e do punho direito, o que motivou a sua assistência hospitalar no Hospital Sousa Martins - Guarda e de seguida nos Hos-pi-tais da Universidade de Coimbra, onde ficou internado e teve alta hospitalar em 17 de Março de 1998.
2.1.49. Teve dores e ficou com uma cicatriz visí-vel no queixo.
2.1.50. Exerce a profissão de pedreiro, auferindo um vencimento mensal de Esc. 70 000$00.
2.1.51. O Réu Nuno Costa exerce a profissão de dis-tribuidor de produtos alimentares, auferindo uma remuneração mensal de Esc. 80 500$00.
2.1.52. É casado, exercendo a sua mulher a profis-são de operária fabril, da qual aufere um vencimento mensal de Esc. 80 000$.
2.1.53. Se na proposta inicial de seguro, cuja cópia se encontra junta a fls. 73, constasse que o dono e o condutor do veículo seguro era o Réu Nuno, a Ré A... não tinha celebrado o contrato de seguro que celebrou com as concretas condições em que o fez e se tal situação constasse nas propostas de alteração do contrato de seguro, cujas cópias se mostram juntas a fls. 74 e 75, a Ré não aceitaria alterar o contrato de seguro com as concretas condições em que foi alterado 2.1.54. Na proposta inicial de seguro apresentada à Ré Companhia de Seguros A....., cuja cópia se mostra junta a fls. 73, constava que o proponente era o condutor habitual do veículo a segurar e que tal veículo havia sido adquirido na data de subscrição da proposta e na proposta de alteração do contrato de seguro, cuja cópia se mostra junta a fls. 74, constava que o proponente havia adquirido o veículo a incluir na data do inicio da alteração.
2.1.55. Foi o mediador da Ré Companhia de Seguros A...., José Rosa Dias, quem propôs o preen-chimento da proposta inicial de seguro referida em B) dos factos assentes, sabendo que a viatura constante daquela proposta (matrícula IT-92-38) iria ser condu-zida habitualmente pelo Nuno Costa e que este era quem a iria adquirir (Q. 45).
2.1.56. O mediador supra referido tinha na data do preenchimento da proposta de seguro um acordo com a Companhia de Seguros A.... mediante o qual a pode representar na celebração de contratos de seguro (Q. 48).
2.1.57. Na mesma altura tinha o mediador José Rosa Dias seguro de responsabilidade civil profissional para o efeito (Q. 49º).
2.1.58. A Ré A... foi citada para contestar o pedido formulado pelos Autores Eliseu e esposa em 22/03/01, o pedido formulado pela Autora Ivone em 5/4/01 e o pedido formulado pela Autora Sílvia em 2/4/01.
2.1.59. O Réu Fundo foi citado para contestar o pedido formulado pelos Autores Eliseu e esposa em 20/3/01, o pedido formulado pela Autora Ivone em 3/4/01 e o pedido formulado pela Autora Sílvia em 2/4/01.
2.1.60. O Réu Nuno foi citado para contestar o pedido formulado pelos Autores Eliseu e esposa em 23/3/01, o pedido formulado pela Autora Ivone em 4/4/01 e o pedido formulado pela Autora Sílvia em 4/4/01.
2.1.61. O Réu António foi citado para contestar o pedido formulado pelos Autores Eliseu e esposa em 20/3/01, o pedido formulado pela Autora Ivone em 4/4/01 e o pedido formulado pela Autora Sílvia em 2/4/01.
+
2.2. Da reapreciação da matéria de facto.
Alteração da resposta ao quesito 44º. +
2.2.1. Da reapreciação da matéria de facto.
Alteração da resposta ao quesito 44º.
Previamente à análise desta questão, nunca será de mais salientar que o pedido de reapreciação da matéria de facto não conduz a um novo julgamento, nem pode supri-lo. Na verdade a prova gravada ou transcrita nunca poderá suprir a abundância de pormenores que a imediação proporciona ao Juiz quando aprecia a matéria de facto; o modo como a testemunha depõe, as suas reac-ções, as suas reticências e a sua mímica, são factos decisivos na formação de uma convicção final e que não podem ser captados pela frieza de meios mecânicos. Assim o Juiz da 1ª instância que julga de facto goza de ampla liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmo-nia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova; as provas são livremente valoradas pelo Juiz sem obediência a regras pré-fixadas – artº 655º do Código de Processo Civil. E essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global é insindicável por esta Relação. Nesta conformidade, o Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá alterar o decidido em 1ª instância; será o caso de o depoimento de uma testemu-nha ter um sentido diame-tralmente oposto ao que foi considerado na sen-tença conjugado ou não com qualquer documento em que se não tenha atentado devidamente e pouco mais.
+
Insurge-se a apelante A... contra a resposta negativa dada ao quesito 44º.
Perguntava-se no quesito em análise se "A compa-nhia de Seguros A.... só teve conhecimento que o veículo VF era conduzido habitualmente pelo Réu Nuno Costa e que era este o seu proprietário nas averigua-ções efectuadas posteriormente à data do acidente?

Entende a apelante que se deveria ter respondido positivamente ao referido quesito.

Vejamos. A matéria constante do quesito é impedi-tiva do direito da Autora. Assim o ónus da respectiva prova caberia à Ré A.... O Tribunal a quo enten-deu responder negativamente a tal sujeito.
Para sustentar o inverso a Ré louva-se no depoi-mento das suas testemunhas, José Agostinho Pereira e Mário Vaz de Almeida, o primeiro funcionário da ape-lante que tomou a seu cargo a investigação do acidente e o segundo averiguador e perito liquidatário também da Companhia A.....
Reapreciada a prova diremos à partida que a Ré não tem razão. Começaremos por referir que a forma como o quesito em análise foi colocado à testemunha José Agos-tinho se nos apresenta desde logo na transcrição feita a fls. 532 algo sugestiva, sendo certo que a resposta a fls. 533 não é inteiramente clara. Depois, da súmula de todo o depoimento quer desta testemunha quer de Mário Vaz Almeida, não nos ficou uma certeza de que a Compa-nhia de Seguros só tivesse conhecimento com a partici-pação do acidente que o condutor habitual da viatura não era o respectivo proprietário contratante do seguro. Para além disso, deverá ainda adiantar-se que só poderá ser apreciado um juízo após a análise dos elementos e premissas que a ele conduziram. Ora para além de ser insuficiente o depoimento das testemunhas em análise, também a resposta da primeira instância encontra o seu fundamento no facto de ser referido, quer pelo mediador de Seguros José Rosa Dias, que efec-tuara inicialmente o seguro, quer pela testemunha Augusto Ferreira Baptista, que as renovações do seguro, uma das quais referente à viatura segurada foi feita aos bal-cões da Ré Seguradora.
Nesta conformidade não há que alterar a resposta negativa dada ao quesito 44º, sendo certo que mesmo que tal se impusesse a responsabilidade da Ré não seria afastada como procuraremos demonstrar mais abaixo.
+
2.3. O Direito.

Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- Do caso em análise.
- Da alegada nulidade do seguro. O problema da caducidade do mesmo

2.3.1. Do caso em análise.

A presente acção consubstancia vários pedidos for-mulados por lesados num acidente de viação em que são RR. a Companhia de Seguros A...., o Fundo de Garantia Automóvel B... e C....
A sentença apelada condenou apenas a Ré A... a ressarcir os prejuízos sofridos pelos lesados.
Interposto recurso pela Ré é reiterada a tese da nulidade do seguro, ponto fulcral para o atribuir de responsabilidades.

2.3.2. Da alegada nulidade do seguro.

A Ré apelante coloca em crise a validade do con-trato de seguro referente ao veículo VG cuja responsa-bilidade na eclosão do sinistro não vem contudo ques-tionada.
Consoante se decida pela positiva ou negativa serão diferentes os titulares do dever de indemnização face aos AA.. Na verdade, caso vingue a tese da nuli-dade do seguro, aquele dever recai nos termos do artigo 29º nº 6 do DL 522/85 sobre o Fundo de Garantia Automó-vel e o responsável civil.
O "contrato de seguro" poderá definir-se como aquele em que uma das partes (segurador) se obriga con-tra o pagamento de certa importância (prémio), a indem-nizar outra parte (segurado ou terceiro) pelos prejuí-zos resultantes da verificação de determinados riscos. No caso vertente estamos em face de um seguro de natu-reza obrigatória regulamentado pelo DL supracitado. Este seguro surge como resultado da necessidade de socializar o risco (tomado numa acepção ampla). Se por um lado a dinâmica social potencia a possibilidade da ocorrência de danos em pessoas e coisas, por outro, a consciencialização da respectiva gravidade bem como da incompleta ou deficiente capacidade do responsável do respectivo causador para o ressarcimento, levou à insti-tuição de mecanismos indemnizatórios de assunção obri-gatória como condição sine qua non do exercício de cer-tas actividades potencialmente perigosas ou portado-ras de riscos nomeadamente em face de terceiros. É na linha deste entendimento que se perfila a instituição do seguro obrigatório vigente nas sociedades modernas Cfr. mais desenvolvimentos in Dario Martins de Almeida "Manual de Acidentes de Viação", Almedina, Coimbra, 3ª Edição, pags. 450 ss e Carlo Castronovo "La Nuova Responsabilità Civile" 2ª Edizione, Giuffrè pags. 457 ss.. O contrato assume pois nesta veste uma natureza trilate-ral em que figuram por um lado a seguradora, a qual garante ao segurado mediante o pagamento de um prémio, a indemnização que lhe possa vir a ser exigida por um terceiro lesado em consequência do acidente que o viti-mou na sua pessoa e também nos seus bens. Por outro lado, o seguro acautela o próprio património do segu-rado colocando-o ao abrigo da pretensão indemniza-tória dos potenciais lesados. Funciona pois o seguro obriga-tório de certa forma como um contrato a favor de ter-ceiro lesado, à partida potencial e estranho ao negó-cio.
As considerações supra-expostas deixam transpare-cer a razão pela qual particular interesse público sub-jacente à figura do "contrato de seguro obrigatório", subtraia justificadamente o mesmo a certos princípios de plena autonomia da vontade. É o caso do disposto no artigo 2º do DL 522/85 ao referir que "Se qualquer outra pessoa [que não o condutor da viatura] celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satis-faça o disposto no presente Diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior".
Decorre assim do normativo supracitado que ao con-trário do que a Apelante sustenta, o seguro pode cobrir pois os danos provocados a terceiros pela viatura, ainda que tripu-lada pelo seu condutor independentemente de ser ele ou não o respectivo proprietário.
Todavia para que tal se verifique necessário se torna que não ocorra nenhuma das circunstâncias que tornem nulo ou ineficaz o seguro em causa.
Na sequência do exposto, não colhe o apelo que a seguradora faz ao disposto no artigo 8º nº 1 do Diploma supracitado ao estatuir que "O contrato garante a res-ponsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 2º e dos legítimos detentores e condutores do veículo". É que na verdade omite a previsão supracitada do mesmo normativo legal quanto à cobertura de danos provocados por outrem que não seja necessariamente o proprietário da viatura.
+
Sucede porém que a apelante defende que o seguro é nulo em virtude de o proponente António haver prestado falsas declarações aquando da proposta de adesão ao mesmo. Efectivamente daquele documento consta a decla-ração de que o proprietário e condutor da viatura ini-cialmente segura é o próprio tomador do seguro. O seguro sofreu duas alterações em virtude da mudança de viaturas como o documentam as propostas insertas a fls. passando o contrato a reportar-se a outros veículos, mantendo-se todavia o demais clausulado, nomeadamente quanto à propriedade e condução da viatura.
Provou-se todavia que o condutor habitual e pro-prietário do veículo causador do acidente, o VF, era o Réu Nuno filho do proponente do seguro, estando a aqui-sição do direito de propriedade do veículo inscrita a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel desde 19 de Março de 1997. Mais se apurou que caso a Ré tivesse tido conhecimento de tal situação não teria contratado nas condições em que o fez, sendo certo que de igual forma não aceitaria as renovações do seguro em tal caso.
Efectivamente estatui o artigo 429º do Código Comercial que " Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conheci-das pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo".
Bem se compreende que assim seja; na verdade a autonomia privada geradora dos contratos terá que ser esclarecida a fim de que possa ser validamente consti-tutiva de vínculos bilaterais. Isto é particularmente exacto no âmbito dos contratos aleatórios em que o seguro se insere. Só conhecendo o risco que envolve a realização do contrato pode a seguradora decidir em que termos pretende contratar, qual o preço do risco que assume ao fazê-lo.
Sucede porém que no caso vertente o seguro foi ab initio contratado através de mediador da Ré devidamente Autorizado. O "contrato de mediação" é inominado, não sendo o respectivo conceito fornecido por lei. Poderá definir-se como sendo "o contrato pelo qual uma das partes fica obrigada a procurar interessado para certo negócio e a pô-lo em contacto com a contraparte, podendo intervir ou não na fase de conclusão do negó-cio" Cfr. Ana Prata "Dicionário Jurídico", Coimbra, Almedina 2005, 4ª edição pags. 750 ss. . Não obstante a ausência de definição legal, a lei contempla o contrato de mediação em vários Diplo-mas, interessando-nos a análise do que se reporta aos seguros regulado entre nós pelo DL 388/91 de 10 de Outubro. Como decorre do respectivo conceito doutrinal o mediador é em princípio uma entidade que facilita a aproximação dos potenciais contratantes e em princípio mesmo que intervenha activamente na conclusão do negó-cio não o pode dar por celebrado em nome de uma segura-dora sem aprovação desta – artigo 4º nº 1 do mencionado Diploma Legal. Em homenagem ao incremento contratual e descentralização das decisões, abre a lei no nº 2 do mesmo normativo legal uma excepção referindo que "é facultada a celebração de acordos entre um mediador e uma seguradora, no sentido de aquele poder, salvo no que respeita a fundos de pensões, celebrar contratos em nome e por conta desta, desde que a inerente responsa-bilidade civil profissional esteja garantida através do adequado seguro". Nesta hipótese, torna-se o mediador um elemento activo com potencialidade para vincular por si a seguradora investido que se encontra de um verda-deiro "mandato com representação", já que se nos anto-lha estarem preenchidos à partida os pressupostos a que alude o artigo 258º do Código Civil Cfr. para alguns desenvolvimentos, as considerações tecidas por Pedro de Albuquerque in "A Representação voluntária em Direito Civil", Almedina, Teses, 2004, pags. 497 ss.
Na Jurisprudência cfr. Acs. do S.T.J. de 10-4-1996 (P. 4344)in Col. de Jur., 1996, 1, 285 e de 25-10-1995 (P. 4264) in Col. de Jur., 1995, 3, 282; desta Relação de 22-05-2001 (R. 811/01) in Col. de Jur., 2001, 3, 16. . Concluindo-se ser in casu o mediador que inicialmente preencheu a pri-meira proposta do seguro, nessa altura reportado ao primeiro veículo, teremos de concluir que o contrato se considera perfeito com o encontro de vontades entre a Seguradora por ele plenamente representada e o Réu António. Na realidade sabendo o mediador que o contrato de seguro se destinava a cobrir a circulação do veículo conduzido habitualmente pelo filho do proponente e tendo o mediador recomendado que o seguro fosse efec-tuado pelo pai sem mencionar esta circunstância, tal não obsta à vinculação da Ré. Julgando-se esta com o direito de exigir responsabilidades terá que pedi-las em sede própria ao mediador v.g. por "abuso de repre-sentação", uma vez que o mesmo terá actuado ao arrepio das instruções recebidas da Companhia, mau grado for-malmente se mantivesse dentro dos limites conferidos no contrato Sobre o "abuso de representação" pode consultar-se Helena Mota "Do Abuso de Representação", Coimbra Editora 2001, pags. 135 ss. . Por outro lado não é também crível que o pro-ponente António aceitasse contratar caso tivesse previsto a nulidade do contrato que o deixaria a ele e ao filho desprotegido perante terceiros em caso de aci-dente.
E no que concerne às renovações do contrato?
Dir-se-á que muito embora o mediador já não tivesse tido qualquer intervenção documentada naquelas, os impressos de fls. 74-75 não colocam ao proponente qual-quer problema sobre a identidade do condutor (proprie-tário) da viatura, pelo que nada indicia que o Réu António estivesse consciente de qualquer omissão, man-tendo-se os pressupostos de validade da proposta ini-cial. Adiante-se também que muito embora aqueles docu-mentos tenham alguns espaços em branco cabia à Ré se o entendesse necessário levantar o problema junto do cliente, o que não sucedeu.
Refira-se ainda que seria à Ré que cabia elaborar questionário mais pormenorizado para as alterações, caso entendesse que as mesmas seriam essenciais para acautelar situações deste género. Para isso tem, ao contrário do proponente, um poder económico muito supe-rior àquele, com juristas contratados e necessariamente sensíveis a tais questões. Não o tendo feito, deverá entender-se que agiu esclarecidamente, tanto mais que de harmonia com o que vem provado, tal facto não impe-diu a Seguradora de continuar a receber o valor dos prémios. O que nos parece tardio e infundamentado à face dos factos provados, é pretender eximir-se às suas responsabilidades perante terceiros. É bem certo esta-tuir o artigo 13º nº 1 do DL "O con-trato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, ces-sando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador de seguro inicial para segurar novo veículo". No entanto e independentemente de o seguro obrigatório automóvel ter uma relevante faceta de contrato a favor de terceiro, haverá de salientar que o próprio mediador de seguros tinha conhecimento de que a viatura IT 92-38 iria ser conduzida habitualmente pelo Nuno Costa e que este era quem a iria adquirir – resposta ao quesito 45º; mesmo assim motivou o outro contraente a fechar o negócio nos termos em que o fez. Assim sendo, entende-mos que a invocação da cessação do contrato configura aqui um nítido abuso do direito nos termos do artigo 334º do Código Civil. Atentas as expectativas criadas por um mediador munido de plenos poderes de representa-ção da Ré e assim merecedor da sua confiança, só em face daquele e da respectiva seguradora poderá a Ré como acima referimos, ressarcir-se dos prejuízos que entenda ter sofrido Cfr. num caso algo semelhante a este, o Ac. desta Relação de 6-12-1994 (R. 728/94) in Col. de Jur., 1994, 5, 55. .
Não queremos ainda deixar de aludir aos efeitos das falsas declarações subjacentes ao contrato de seguro. Caso se entendesse como a Ré estarmos perante uma hipótese de nulidade que opera necessária e automa-ticamente, seria inelutável a falência do contrato. No entanto perfilhamos a corrente maioritária a nível dou-trinário e jurisprudencial que se nos afigura mais maleável e que propende para a mera anulabilidade; para além de entendermos que o artigo 429º do Código Comer-cial não impõe de forma inexorável tal consequência, não há aqui um interesse público relevante a atender mas de âmbito reduzido e respeitante à relação negocial entre o proponente e a seguradora Cfr. Acs. do S.T.J. de 4-3-2004 (P. 3631/2003)in Col. de Jur., 2004, I, 102 e desta Relação de 05-11-2002 (R. 2184/02) in Col. de Jur., 2002, 5, 9. No mesmo sentido Cfr. José Vasques "Contrato de Seguro" Coimbra Editora, 1999, pags. 379 s.

. Aliás a forma como o preceito está redigido, com apelo ao circunstancia-lismo da génese do contrato para o funcionamento da sanção é mais um subsídio hermenêutico de interpretação do preceito em caso no sentido de uma sanção menos gra-vosa que propugnamos.
Concluímos assim que a pretensão da Ré em ver declarado nulo o contrato também não procede.
Assim e sendo a validade do seguro a única questão que nos é colocada para além da problemática da altera-ção da matéria de facto supra-abordada, a apelação terá que improceder.

Pode assim concluir-se o seguinte:

1) O contrato de seguro obrigatório tem um papel de acentuado cariz social, funcionando de certa forma como contrato a favor de terceiro.
2) Atendendo à especial configuração de tal seguro e interesse público que lhe está subjacente, com-preende-se que a lei subtraia justificadamente o mesmo a certos princípios da plena autonomia privada; É o caso do disposto no artigo 2º do DL 522/85 ao referir que "Se qualquer outra pessoa [que não o condutor da viatura] celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satis-faça o disposto no presente Diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior".
3) Prestando o proponente falsas declarações ao preencher a proposta de seguro, este é nulo à face do que estatui o artigo 429º do Código Comercial.
4) Não existindo subjacente ao vício um interesse público relevante no sentido da nulidade do contrato stricto sensu, tem-se entendido que as aludidas “falsas declarações” tornam o contrato simplesmente anulável, o que cabe aliás também no espírito e letra do preceito em causa.
5) Intervindo na formação do contrato de seguro e junto do proponente um mediador com amplos poderes de representação da Seguradora, nos termos do artigo 4º nº 2 do DL 388/91 de 10 de Outubro e tendo sido aquele intermediário que aconselhou o proponente a declarar que era proprietário da viatura, sabendo que esta iria ser conduzida e posteriormente adquirida pelo filho, não pode a seguradora eximir-se à sua responsabilidade nomeadamente para com terceiros lesados. Sentindo-se prejudicada resta à Ré seguradora demandar o mediador e/ou respectiva Companhia de Seguros.
6) Não colocando as ulteriores propostas de seguro em virtude da mudança de veículo qualquer nova questão essencial no que concerne ao contrato posteriormente ao momento em que foi celebrado, v.g. no que toca à pro-priedade da viatura, o seguro manteve-se válido subsis-tindo os pressupostos da proposta inicial.
*
3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação impro-cedente, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pela apelante.