Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/06.2TBFCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CECÍLIA AGANTE
Descritores: USUCAPIÃO
INVERSÃO DE TÍTULO
POSSE
PRESUNÇÃO
EXERCÍCIO
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1251º, 1252º, Nº 2, 1287º E 1288º DO C. CIV.
Sumário: I – Estatui o artº 1287º do C. Civ. que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação – é o que se designa por usucapião, prescrição positiva ou aquisitiva.

II – A usucapião tem sempre na sua génese uma situação possessória, que pode derivar de constituição ex novo ou de posse anterior.

III – Posse delimitada como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artº 1251º C. Civ..

IV – A usucapião produz uma aquisição originária que opera com efeitos rectroactivos, reportados ao início da posse respectiva – artº 1288º do C.Civ. -, mas que, relativamente ao direito possuído, não pode verificar-se nos detentores ou possuidores precários, excepto achando-se invertido o título de posse, caso em que o prazo para usucapir só corre desde a inversão do título – artº 1290º C. Civ..

V – A vontade concreta do detentor só releva caso tenha invertido o título de posse.

VI – A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio (não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base; necessário se torna que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de actuar como titular do direito).

VII – Na ausência de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por actos positivos de oposição ao proprietário, sobrepondo-se à aparência representada pelo arrendamento, é vedado adquirir por usucapião.

VIII – Em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto – artº 1252º, nº 2, C. Civ. -, isto é, presume-se o exercício do animus naquele que detém o corpus, presunção a que subjaz a dificuldade de provar o dito animus.

Decisão Texto Integral: Acórdão

         Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

        

         I. Relatório

         1. A... e esposa, B... , residentes em ...., intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, convolada para a forma de processo ordinário por força da admissão da reconvenção, contra C... , solteiro, residente ...., D.... e esposa, residentes ...., E.... e esposa, residentes ..., F.... e esposa, residentes ..., G... , divorciado, residente ...., H... e esposa, residentes ...., I....., divorciada, residente ......, J.... e marido, residentes ...., L...., solteira, maior, residente ...., e M.... e esposa, residentes ...., filhos de N.... e  de  O.... .

         Alegaram os autores que o primeiro réu comprou aos demais quarenta e nove prédios, dois dos quais, conhecidos como P.... e Q..., pertença dos demandantes desde 1976. Desde então, ininterruptamente e à vista de todos, sem oposição, os amanham, cônscios de que não lesam direitos alheios. Para além disso, o réu comprador, quando negociou com os restantes demandados a compra daqueles prédios, era conhecedor de que aqueles dois prédios pertenciam aos autores.

         Concluíram pedindo:

         1.1. A declaração do seu direito de propriedade sobre os prédios rústicos, terra de lameiro e pastagem, sito em P..., com a área de 37 174 m2, inscrito na matriz da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o nº..., e terra de trigo, sito em Q..., com a área de 19 814 m2, inscrito na matriz da freguesia de ......sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de...com o nº .....

         1.2. A condenação dos réus a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam o seu exercício do direito de propriedade plena sobre os referidos prédios.

         1.3. A anulação das inscrições registais a favor de C... e consequente averbamento a favor dos autores.

         1.4. A condenação do réu C... por litigância de má fé.

         2. Contestaram os réus (só por lapso a sentença refere que apenas o réu adquirente deduziu oposição), alegando que jamais os autores adquiriram a propriedade dos prédios em causa ou se comportaram como tal, ao passo que o registo alcançado pelo réu C... se alicerça em escritura de compra e venda. Acrescentaram que foram outros os prédios adquiridos pelos autores aos pais dos demandados. Os prédios em causa, que integravam o acervo hereditário dos seus avós, na data da partilha, estavam dados de arrendamento aos autores, por contrato que foi denunciado em 1975/1976. Ficaram, então, convictos que os autores abandonaram o cultivo dos prédios, já que muito esporadicamente se deslocavam a Vilar de Torpim, mas nunca tiveram conhecimento de que os autores se arrogassem seus donos. A não utilização dos prédios pelo primeiro réu, em função da conduta dos autores, tem-lhe causado prejuízos.

         Deduziram reconvenção, formulando os seguintes pedidos:

         2.1. O reconhecimento do direito de propriedade do primeiro réu sobre aqueles imóveis.

         2.2. A condenação dos reconvindos a reconhecê-lo e a entregar-lhe os prédios livres de quaisquer bens, abstendo-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou turbem o exercício desse direito.

         2.3. A condenação dos reconvindos a pagar ao primeiro réu a quantia de 2 040,00 euros, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, e 2 040,00 euros anuais, ou proporcional, desde a data de entrada em juízo da reconvenção até entrega efectiva dos prédios.

         2.4. A condenação solidária dos reconvindos a pagar, a título de danos morais, ao primeiro réu a quantia de 5 000,00 euros e a cada um dos demais a quantia de 500,00 euros.

         2.5. E a condenação dos reconvindos como litigantes de má fé.

 

         3. Os autores apresentaram a resposta à contestação, mantendo a postura assumida na petição inicial, mas aceitando terem sido arrendatários daqueles imóveis. Referiram, então, ter “comprado verbalmente” os prédios a R.... Alegaram que a única desculpa para a posição dos réus vendedores reside no desconhecimento dos prédios.     

         4. Os réus ofereceram articulado em que negaram a existência de qualquer venda verbal dos prédios aos autores, porque, à data, a .R..... havia já falecido e os falecidos pais dos réus vendedores apenas venderam imóveis arrendados aos autores através da celebração das competentes escrituras públicas.

        

         5. Registada a acção por determinação do tribunal, teve lugar a audiência preliminar com admissão da reconvenção, saneamento e selecção da matéria de facto, sem reclamação. Discutida a causa, foi proferida a decisão sobre a matéria de facto, que não mereceu reclamação. Foi prolatada a sentença que decidiu a procedência da acção:

         5.1. Declarando o direito de propriedade dos autores sobre os prédios rústicos, terra de lameiro e pastagem, sito em P..., com a área de 37 174 m2, inscrito na matriz da freguesia de ......sob o artigo ...., descrito na Conservatória do Registo Predial de ......com o nº ......, e terra de trigo, sito em Q..., com a área de 19 814 m2, inscrito na matriz da freguesia de ......sob o artigo ......º, descrito na Conservatória do Registo Predial de ......com o nº .......

         5.2. Condenando os réus a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam o exercício, pelos autores, do direito de propriedade plena sobre os referidos prédios.

         5.3. Determinando o cancelamento das inscrições registais a favor de C..., em desconformidade com o direito de propriedade dos autores.

         5.4. Absolvendo os réus dos demais pedidos contra eles formulados.

         5.5. E absolvendo os autores dos pedidos contra eles deduzidos pelos réus.

         6. Notificados da sentença, os réus manifestaram o seu inconformismo recorrendo e apresentando alegações que rematam conclusivamente:

         […]

         7. Contra-alegaram os autores com a adução das seguintes conclusões:

         […]


*

        

         II. Delimitação do objecto do recurso

         Na delimitação temática do objecto do recurso (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil[1]), impõe-se a apreciação das seguintes questões:

1. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

         2. O direito de propriedade sobre os imóveis em causa.


*

         III. Fundamentação

         1. A impugnação da decisão de facto

         […]


*

         Concluída a apreciação da suscitada questão de facto, são de considerar os seguintes:

         2. Factos provados

         […]


*

         3. O direito

         Autores e réu Engenheiro C.... reivindicam a propriedade dos prédios rústicos sitos em P... e Q..., inscritos na matriz respectiva sob os artigos ......º e ......º do concelho de ....... A decisão de primeira instância julgou provada a propriedade dos autores, estribando-se na consideração de terem logrado provar a aquisição por usucapião dos prédios em causa. Os apelantes reequacionam a acção e defendem uma outra aplicação do direito aos factos apurados por via de diverso julgamento.

         Estatui o artigo 1287º do Código Civil que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação. É o que se designa por usucapião, prescrição positiva ou aquisitiva, fundamento jurídico da aquisição do declarado direito de propriedade dos autores.

         Usucapião que, como resulta da definição legal, tem sempre na sua génese uma situação possessória, que pode derivar de constituição ex novo ou de posse anterior. Posse delimitada como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil). Não obstante as críticas efectuadas a esta definição e as subjacentes concepções doutrinárias[2], todos aceitam que a posse se centra no exercício de determinadas actividades sobre uma coisa. Usucapião que produz uma aquisição originária e que opera com efeitos retroactivos, reportados ao início da posse respectiva (artigo 1288º do Código Civil), mas que, relativamente ao direito possuído, não pode verificar-se nos detentores ou possuidores precários, excepto achando-se invertido o título de posse, caso em que o prazo para usucapir só corre desde a inversão do título (artigo 1290º do Código Civil). Princípio que entronca naqueloutro de que a posse precária não constitui uma verdadeira posse, senão a partir do momento da interversio possessionis.

         A usucapião redunda de dois elementos nucleares, a posse e o decurso do tempo, correspondendo a um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica duma situação possessória duradoura no direito real correspondente. Posse que se traduz num elemento material de fruição de um direito (o corpus) e de um elemento intencional vertido na intenção de exercer um poder sobre as coisas (o animus sibi habendi). Animus que resulta da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito susceptível de posse, na apelidada teoria da causa[3]. Elemento intencional que se dever aferir não pela vontade concreta do adquirente da posse mas pela natureza jurídica do acto que originou a posse. Como simplistamente clarificava Manuel Rodrigues[4]: “… se a tradição se realizou em consequência de um acto de alienação da propriedade, a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade. Se a tradição se realizou em consequência de um acto de locação, pelo qual se transferiu um determinado prédio, a intenção do locatário é a de exercer o direito pessoal de arrendatário".

         Vale dizer que a vontade concreta do detentor só releva caso tenha invertido o título de posse. Doutro modo, o elemento intencional da posse mede-se pela natureza do acto jurídico que deu lugar à aquisição[5].

         Princípios que se não modificaram com a vigência do actual Código Civil e que continuam a ter aplicação[6].

        

         Retornando ao caso em apreço, constatamos que os autores começaram por fazer crer numa aquisição originária da posse, num apossamento, numa apropriação material da coisa (art. 1263º, a) do Código Civil), com a prática reiterada de actuação material sobre a coisa com uma tal intensidade que foi significativa da intenção de se apoderar dela[7]. Mas provado o arrendamento, até por confissão judicial dos autores no articulado de resposta à contestação, prima facie só pode valer aqueloutra forma de aquisição originária da posse, por inversão do título de posse (artigo 1263º, d), do Código Civil), para transformar a situação de detenção em verdadeira posse, para mudar o título por que se exerciam os poderes de facto sobre a coisa.

         Inversão que pode resultar de acto de oposição do próprio detentor contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265º do Código Civil). A inversão do título de posse (a interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio[8]. Não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base. Necessário se torna que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de actuar como titular do direito. Estando os interessados investidos numa posse precária (derivada do arrendamento), é necessária a conversão dessa posse em nome de outrem em posse em nome próprio. E os factos provados não denunciam actos suficientes de oposição dos autores em relação aos anteriores donos susceptíveis de consubstanciar a inversão da posse, de modo a poder concluir-se que de possuidores em nome alheio passaram à qualidade de possuidores em nome próprio do direito de propriedade. Aliás, nem sequer tiveram o cuidado de alegar factos nesse sentido. Destarte, somos tentados a afirmar que, na ausência de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por actos positivos de oposição ao proprietário, sobrepondo-se à aparência representada pelo arrendamento, aos autores é vedado adquirir por usucapião. O mesmo é dizer que os autores continuaram a exercer sobre os prédios poderes de facto consentâneos com o arrendamento, sem que tenham transmitido aos titulares do direito de propriedade a modificação da atitude, a manifestação de que passaram a actuar sobre a coisa como proprietários e, por isso, aquela actuação não tem relevância jurídica, porque desconhecida daqueles que poderiam opor-se. Como acentuado por Henrique Mesquita[9] “A oposição tem de traduzir-se em actos positivos materiais ou jurídicos, inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a que os actos se opõem. Além disso, é necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor através de actos que traduzam o exercício do direito que a este pertence”. Tudo para afirmar que, tal como a posse relevante para usucapião deve ser pública, também a oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía. Posse pública que não perde a publicidade quando não é conhecida de toda a gente, pois ela deve, acima de tudo, ser conhecida do interessado directo ou indirecto. Trata-se de uma relação mais com o próprio interessado do que com o público em geral. Não é necessário um consenso público. Basta que o interessado venha a saber, por qualquer meio, que o sujeito possui a coisa[10].

         Volvidos, mais uma vez, ao circunstancialismo fáctico que os autos comportam, vemos que, como arrendatários, os autores eram detentores daqueles imóveis e, em 1976, segundo a sua alegação, continuaram a praticar os actos materiais sobre a coisa na nova qualidade de proprietários. Vale dizer que continuaram a exercer sobre a coisa actos análogos aos que exerciam anteriormente e, por isso, imperiosa era a sua oposição contra aqueles em cujo nome possuíam, assumindo uma alteração exterior dessa qualidade como fosse, por exemplo, invocando não pagar as rendas porque os prédios eram seus, por forma a tornarem directamente conhecida dos ....., judicial ou extrajudicialmente, a sua intenção de actuar como titulares do direito.

         São estes fundamentos a que se aprisionam os apelantes para defender que os autores não adquiriram a posse efectiva e, não passando de possuidores precários, não puderam usucapir. Asserção que parece insofismável, porque a detenção, enquanto não se converter em posse, mediante inversão do título, permanece precária, tal como se iniciou, não bastando para tanto a simples vontade do detentor[11]. O exercício do simples poder de facto sobre uma coisa com simples animus detinendi converte-se em verdadeira posse, invertendo o título, passando o seu titular a agir com animus possidendi ou verdadeiro animus[12]. Embora se verifique uma actuação exterior compatível com o exercício do direito de propriedade, o corpus, falta-lhes a intenção de agir como beneficiário desse direito, o animus possidendi. Não tendo invertido o título de posse, ou, pelo menos, não foi alegado qualquer acto como tal qualificado, concludentemente revelador da sua mudança de atitude, os autores continuaram a ser meros detentores dos prédios, não podendo adquirir, por usucapião, o correspondente direito de propriedade[13].

         Na simples detenção, o sujeito exerce os poderes correspondentes ao direito, mas não os exerce como se fora titular dele e, por isso, esse estado de coisas, por mais tempo que perdure, não pode conduzir à aquisição do direito, de que o interessado não se apresenta como beneficiário[14].

         A relação material é idêntica na posse e na detenção e o que eleva a detenção a posse é o animus sibi habendi. Sem ele, a relação material é pura detenção e não pode invocar-se para justificar qualquer efeito possessório.

         A sentença recorrida partiu da construção que os autores possuíam em nome alheio, como arrendatários, mas, por força da venda verbal, deixaram de ser detentores e passaram a possuidores, assim adquirindo por usucapião o direito de propriedade sobre imóveis com a consequente ilisão do direito de propriedade que, a favor do réu Engenheiro C..., derivava do registo. Tese que justifica a omissão de pronúncia quanto à invocada imprescindibilidade da inversão do título de posse e necessidade de demonstração de um qualquer acto de oposição perante aqueles em nome de quem possuíam e que levou a que passassem a fruir os bens como donos[15].  Mas defenderam os réus que os autores estavam autorizados a usar os prédios no âmbito da locação. Logo, a especificidade da sua actuação material seria nessa qualidade e, mesmo deixando de pagar as rendas, nunca o arrendatário poderia adquirir a propriedade sem inversão do título de posse. Por isso, outra tutela não se lhe pode conferir face aos princípios estruturantes da posse: exercem a posse em nome de outrem ou por mera condescendência do dono, mas não têm animus possidendi, apenas o corpus possessório (artigo 1251º do Código Civil).

         Decantada esta construção face aos factos dados por demonstrados, vemos que esse arrendamento datava anteriormente a 1968 e decorreu até 1975, período em que os autores sempre amanharam e cultivaram aqueles prédios na qualidade de arrendatários. Alegaram os réus, facto não comprovado, que esse contrato de arrendamento foi “denunciado” em 1976; matéria que, vertida na base instrutória sob o item 13º, não logrou alcançar prova. Factualidade que, a provar-se, facultaria ajuizar a quebra da situação possessória dos autores que, deixando de ser arrendatários, passaram a exercer os poderes de facto como donos, perante os proprietários dos terrenos, sem que estes alguma vez tivessem deduzido oposição.

         Na resposta à contestação aceitaram os autores ter sido arrendatários até 1976, data em que “compraram verbalmente” os dois prédios agora em causa. Logo, embora por uma outra via, os demandantes aceitam a cessação do arrendamento, o que vai de encontro à alegação dos demandados. A ser assim, podemos dar como assente a extinção da relação locatícia e mantendo-se os autores no exercício do poder de facto sobre aqueles prédios, impendia sobre os réus o ónus da prova da ilisão da presunção de exercerem os autores o poder de facto em seu nome, o que não fizeram. E não o tendo feito, sobre eles recaem as desvantagens de tal omissão, levando ao funcionamento da presunção e à conclusão de que os autores têm sobre os prédios um estatuto possessório.

         Com efeito, em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto (artigo 1252º, 2, do Código Civil). Na sua essência, presume-se o exercício do animus naquele que detém o corpus, presunção a que subjaz a dificuldade de provar o animus[16]. Tendo os autores exercido o poder de facto sobre os prédios durante 30 anos, sem interrupção, de forma pacífica, pública, de boa fé (n.ºs 14 e 16 dos fundamentos de facto), por força da presunção não ilidida do n.º2 daquele artigo 1252º, têm de ser declarados seus proprietários, propriedade que adquiriram por usucapião.

         A solução idêntica conduz a jurisprudência uniformizadora de que podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa[17]. E como resulta dos factos apurados, reiteramos que os autores, durante 30 anos, sem interrupção, cultivaram e trataram dos prédios do P... e do Q..., à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de não ofenderem direitos alheios, numa posse pública, pacífica, contínua e de boa fé (artigos 1257°, 1260°, 1261º e 1262º do Código Civil). Exercitaram o corpus que faz presumir a existência de uma posse em nome próprio por parte daquele que tem a detenção.

         Presunção que pode ser ilidida pela demonstração de que os actos praticados são por sua natureza insusceptíveis de conduzir à posse, são actos facultativos ou actos de mera tolerância, situação em que se poderia dizer que a respectiva posse era precária, por exercida em nome dos antecessores dos réus[18]. E, face ao disposto no artigo 350º, 1, do Código Civil, quem tem a seu cargo uma presunção legal, escusa de provar o facto que a ela conduz. Portanto, cabe àquele que se arroga à posse provar que o detentor não é possuidor. Ora, provado o poder de facto dos autores sobre a coisa, não conseguiram os réus, apesar de a eles competir, a prova de que ele se traduzia em simples detenção ou posse precária. Logo, continuando aquele assento a vigorar, agora com a natureza de acórdão uniformizador de jurisprudência (art. 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), puderam os autores adquirir por usucapião.

        

         Não obstante estar registada a favor do Engenheiro C.... a aquisição da propriedade daqueles prédios, beneficiando da presunção da titularidade do direito a que alude o artigo 7º do Código de Registo Predial, temos de rematar que os autores ilidiram essa presunção[19].

         Tanto a posse como o registo predial constituem, no ordenamento jurídico português, formas de publicidade de direitos reais sobre imóveis: aquela uma publicidade espontânea e esta uma publicidade provocada e, por isso, tanto a posse como o registo fazem presumir a titularidade do direito[20]. Mesmo que defendamos um conflito das presunções derivadas da posse e do registo, ambas juris tantum e, portanto, sempre ilidíveis, prevalece aqui a que deriva da posse, por ser de constituição bem anterior (artigo 1268º do Código Civil)[21].

        

         Decaindo os réus na apelação suportam as custas correspectivas.


*

         IV. Decisão

         O excurso apresentado, embora por diversos fundamentos, conduz à improcedência da apelação e à confirmação de sentença recorrida.

         Custas da apelação a cargo dos réus apelantes.


[1] Processo iniciado anteriormente a 1 de Janeiro de 2008, reportando-se as normas em ausa à redacção vigente até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, versão a que pertencerão todas as normas do C.P.C. que viermos a indicar.
[2] Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1979, págs. 384 a 405.
[3] Manuel Rodrigues, “A Posse”, pág. 259.
[4] Manuel Rodrigues, ob. e loc. cit.
[5] Henrique Mesquita, ibidem, pág. 100, nota 1.

[6] Ac. R. Ev., 18.09.1997, in CJ online, ref. 10125/1997.
[7] Luís Carvalho Fernandes, ibidem, pág. 286.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., pág. 30.
[9] Ob. cit., pág. 98 e 99.
[10] Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, in RLJ 123º, págs. 73 e 74.
[11] Manuel Rodrigues, “A Posse”, pág. 269.
[12] Orlando de Carvalho, ibidem, pág. 261.
[13] Luís Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 2ª ed., pág. 267; Ac. R. Ev., 22.01.2009, in CJ online, ref. 2747/2009.

[14] Galvão Telles, in “O Direito”, 121º, pág. 650.

[15] Ac. STJ 17.04.07, in CJ online, ref. 2186/2007.
[16] Mota Pinto, “Direitos Reais”, 1970, pág. 191.
[17] Acórdão Pleno das Secções Cíveis do STJ 14.05.96, in DR, II Série, 24.06.96.

[18] Ac. STJ 10-11-05, in www.dgsi.pt, ref. 05B3055.

[19] Ac. STJ 16.06.90, in www.dgsi.pt, ref. 240/03.0TBRMR.S1.
[20] Ana Maria Taveira da Fonseca, “Cadernos de Direito Privado”, CEJUR, 20 Outubro a Dezembro de 2007, pág. 24.
[21] Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 288.