Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3658/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA LEITÃO
Descritores: INFRACÇÃO - REPOUSO DURANTE A CONDUÇÃO
Data do Acordão: 02/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 8º, Nº 1, DO REG. CEE 3820/85, DE 2012; 7º, Nº 1, DO DL 272/89, DE 19/8; 4º E 9º, Nº 1, AL. D), DA LEI Nº 116/99, DE 4/8 . ARTº 614º DO ACTUAL CÓDIGO DE TRABALHO
Sumário:

: I – No regime legal anterior ao actual Código de Trabalho, embora a materialidade dos factos constitutivos da contra-ordenação relativa ao desrespeito pelos tempos mínimos legais de repouso para motoristas fosse cometida pelo condutor, a punição do respectivo empregador encontrava suporte legal no disposto no artº 4º da Lei nº 116/99, de 4/6, onde expressamente se referia que eram responsáveis pelas contra-ordenações laborais e pelo pagamento das coimas as entidades patronais .
II – Assim, para além da sanção que era possível aplicar ao motorista, que seria o imediato autor material do ilícito, o que derivava desde logo do disposto nos artºs 1º, nº 1, da Lei 116/99 e do artº 7º, nºs 1, 2 e 6 do DL 272/89, de 19/8, por força da lei a dita responsabilidade transmitia-se ao seu empregador, no interesse de quem o trabalhador actua, salvo ocorrência de qualquer causa de exclusão de culpa ou de ilicitude .
III – Porém, com a entrada em vigor do actual Cód. de Trabalho operou-se a revogação expressa de toda a referida Lei 116/99 ( artº 21º, nº 1, al. aa) do dito código ), não havendo naquele diploma normativo idêntico ao aludido artº 4º, nº 1 da Lei 116/99, pelo que tem de se entender que o sujeito da referida contra-ordenação é quem a pratica ( o motorista ), apenas podendo também responder a sua entidade patronal desde que no auto de notícia conste materialidade fáctica que permita a imputação do ilícito à entidade empregadora, quer seja a nível da sua exclusiva autoria, quer como co-autora, quer a título de cúmplice ( artºs 614º do C. de Trabalho e 26º e 27º do Código Penal ) .
IV- Não havendo no auto de notícia factos que permitam a imputação directa da prática do referido ilícito à empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em processo por contra-ordenação com base nos citados preceitos .
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juizes da Secção Social do T. Relação de Coimbra
Pelo IDICT foram aplicadas à arguida A duas coimas no montante de € 1. 246, 99, pela prática de duas infracções p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 8º n.º 1 do Reg. CEE 3820/85 de 20/12, 7º n.º 1 do D.L. 272/89 de 19/8 e 9º n.º 1 d) da L. 116/99 de 4/8.
Discordando deduziu impugnação judicial, vendo denegada a sua pretensão.
Recorre agora da decisão proferida na 1º instância para esta Relação (embora por manifesto lapso tenha feito referência à Relação do Porto), alegando e concluindo:
a)- A douta sentença sob recurso é nula nos termos do disposto no art.º 379º n.º 1 a) e c) do CPP, porquanto viola o disposto no art.º 374º n.º 2 do CPP;
b)- A douta sentença recorrida não enumera os factos não provados, como não fundamenta a decisão de forma concisa, de facto e de direito;
c)- A douta sentença recorrida não se pronunciou sobre a alegada irregularidade da decisão da entidade administrativa;
d)- A douta sentença recorrida não se pronunciou sobre a alegada inconstitucionalidade do regime constante dos artºs 7 e 8º do RCCOL, no que concerne ao modo de determinação do montante da coima,
e)- A entidade patronal organiza os tempos de trabalho dos seus condutores, em conformidade com o art.º 15º do Reg. Com 3820/85;
f)- Tanto assim é, que organizou o trabalho do motorista em causa, permitindo-lhe respeitar os tempos de condução e que apenas não foram cumpridas pelas razões específicas constantes do processo administrativo;
g)- A aplicação da sanção em causa, enquadra-se no âmbito do direito contra ordenacional, aplicando-se subsidiariamente, as normas de direito penal;
h) Também por isso, não pode à ora recorrente ser imposta qualquer infracção por falta de tipicidade subjectiva, elemento imprescindível para tal;
i)- A concretização e a execução do tempo de condução está na disposição em último grau dos motoristas, que o podem fazer fora do controlo directo da empresa e das instruções que lhe são dadas;
j)- A empresa cumpre com a sua obrigação de formação de motoristas;
l)- A recorrente apenas posteriormente à prática da infracção teve conhecimento da mesma;
m)- Precisamente pelo tipo de actividade prestada pelos motoristas fora do controlo directo, as normas dos Reg. Com. nºs 3820/85 e 3821/85 estão para eles dirigido em primeira linha sobre esta matéria;
n)- E o D.L. n.º 272/89 prevê a aplicação das coimas aos condutores no n.º 6 do art.º 7º
o)- Para além disso, a aplicação da sanção em função da dimensão da empresa viola o princípio da igualdade prevista constitucionalmente no art.º 13º n.º 2;
p)- Os artºs 7º e 8º do RGCOL são inconstitucionais porquanto violam o princípio da igualdade e punem a arguida com base na dimensão económica e não na culpa
No seu douto parecer der fls. 124 e segs. o Ex. mo Sr. PGA, concluiu pela improcedência das razões invocadas pela arguida.
Em consequência da entrada em vigor do C. Trabalho, foi dada vista ao Ex. mo Sr. PGA, que doutamente opinou no sentido de se dever ter em atenção, o regime legal que se mostre mais favorável á arguida.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Dos Factos
É a seguinte a factualidade a ter em conta:
1- No dia 20/7/01 pelas 9h 30m, na E.N. n.º 1, ao Km 203- Carqueijo - Mealhada, arguida mantinha em circulação a viatura pesada de mercadorias, XV-42-01, serviço de aluguer, conduzida pelo motorista B;
2- O referido motorista no período de 24h, não beneficiou de pelo menos, 9 h consecutivas de repouso, isto relativamente ao dia 17/7/01;
3- No dia 20/7/ pelas 9h 30m, na E.N n.º 1, ao Km 203- Carqueijo - Mealhada, a arguida mantinha em circulação a viatura pesada de mercadorias, de matricula XX, serviço de aluguer, conduzida pelo motorista B;
4- O referido motorista no período de 24h, não beneficiou pelo menos 9h consecutivas de repouso, isto relativamente aos dias 19/701 e 20/7/01.
Do Direito
Como se viu são vários os motivos que fundamentam a discordância da arguida, relativamente à sentença proferida na 1º instância.
Uma questão prévia todavia se levanta e que decorre da entrada em vigor do Código de Trabalho, que entretanto sucedeu.
No anterior regime legal, e em situações de todo em todo idênticas às que são relatadas nos presentes autos, embora a materialidade dos factos constitutivos da contra ordenação fosse cometida pelo condutor, a punição do respectivo empregador encontrava suporte no disposto no art.º 4º da L. 116/99 de 4/6, onde expressamente se referia no seu n.º 1 a), que eram responsáveis pelas contra ordenações laborais e pelo pagamento das coimas, as entidades patronais.
Quer dizer: para além da sanção que era possível aplicar àquele que em princípio seria de imediato autor material do ilícito( no caso o condutor do veículo) e que derivava desde logo do disposto nos artºs 1º n.º 1 da L. 116/99 e 7º nºs 1 , 2 e 6 do D.L. 272/89 de 19/8( redacção do art.º 7º n.º 2 da L. 114/99 de 3/8) por força de lei, a responsabilidade transmitia-se de uma forma dir-se-ia “ quase objectivada”( salvo a ocorrência de qualquer causa de exclusão de culpa ou de ilicitude) ao seu empregador, no interesse de quem o trabalhador actuava.
Era este “ grosso modo” o entendimento perfilhado por esta relação e que foi plasmado em variadíssimos acórdãos aqui proferidos( cfr. p. ex. as decisões tomadas nos Recursos Penais 968/03 e 2650/02).
Porém, com a vigência do primeiro diploma citado, operou-se a revogação expressa de toda a referida L. 116/99 de 4/8- art.º 21 n.º 1 aa) daquela codificação-
E neste novo diploma, não se encontra normativo idêntico ao aludido art.º 4º nº1.
O art.º 617º do citado código, que de certa forma corresponde a esse art.º 4º, não contém em si a genérica responsabilização da entidade patronal, que anteriormente existia.
Por outro lado o art.º 614º do C. Trabalho, limita-se a definir como contra ordenação laboral todo o facto, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito das relações laborais e que seja punível com coima.
Claro que com este regime legal, não se afasta de todo em todo a responsabilidade da empregadora nos casos em que o facto ilícito em si, é praticado pelo trabalhador e o sujeito da contra ordenação, não é directamente a entidade patronal.
É o que se conclui facilmente do que prescreve o mencionado art.º 614º.
Todavia, para que tal responsabilização possa vir a ocorrer, passa a ser exigível que desde logo, quer o auto de notícia, quer a participação contenham materialidade fáctica que impute directamente a prática do ilícito à empregadora, quer seja a nível de exclusiva autoria, quer de co - autoria, quer de cumplicidade( cfr. artºs 26º e 27º do C. Penal, aplicáveis aos ilícitos contra ordenacionais laborais, por força do disposto nos artºs 32º do D.L. 433/82 de 27/10 e 615º do C. Trabalho).
O presente procedimento, sobre este ponto é em absoluto omisso.
Na realidade quer o auto de notícia, quer o despacho sancionatório, limitam-se a referir que o condutor não beneficiou do repouso que legalmente deveria ter observado.
O porquê desta situação, não consta minimamente em parte alguma do processo( auto de notícia, despacho sancionatório e sentença recorrida).
Ou seja a materialidade do facto contra ordenacional foi preenchida pela conduta do motorista/ trabalhador.
Ora parece-nos inquestionável, que nenhum óbice existe a que( como aliás já sucedia no anterior regime legal e também no que esse revogou e que constava do D.L. 491/85 de 26/11) directamente se impute a responsabilidade de uma contra ordenação, a um trabalhador enquanto tal.
É o que sucede além do mais, relativamente a certo tipo de ilícitos desta natureza que nomeadamente respeitem à circulação e exploração de viaturas de transportes rodoviários, campo onde aliás e de há muito essa responsabilização já existia( cfr. D.L. 44.422 de 27/6/62).
Como vimos, cremos ser fora de dúvida que também agora ao trabalhador pode( e muitas vezes deve) ser imputada a prática da contra ordenação.
É o que flui dos art.º 6º e 7º do Reg. (CEE) n.º 3820/85 e também do cotejo dos artºs 7º e 8º do D.L. 272/89 de 19/8.
À empresa – e em obediência ao determinado no art.º 15º do citado Reg. CEE-“ compete a organização do serviço por forma a dar cumprimento à regulamentação social”.
“ Ao condutor compete dar cumprimento à forma ( legal) da organização desse serviço. Se a infringir “ sibi imputet”- cfr. neste sentido J. Soares Ribeiro, in Responsabilidade contra ordenacional dos trabalhadores por conta de outrem, Questões Laborais, Ano I, n.º 1 1994, págs. 37 e segs. -.
E tanto assim é que o art.º 7º citado, no seu n.º 6 refere expressamente a possibilidade de aplicação de coimas aos condutores e o art.º 13º do mesmo diploma, prevê a sanção acessória de interdição do exercício da sua profissão.
Com tudo isto se quer significar que é perfeitamente possível a aplicabilidade da coima directamente aos condutores/trabalhadores.
Aliás e por isso - e segundo o A acima citado- deve ser imputado ao trabalhador e para além de outros ilícitos deste tipo que agora não importa referir “ o não cumprimento de qualquer disposição relativa aos tempo de condução e repouso, assim como as interrupções da condução-...”.( itálico nosso)
E é exactamente de uma situação destas que se trata no presente processo.
Em resumo: foi noticiada uma infracção que se traduz na não observância dos períodos de repouso durante a condução.
A respectiva imputação deveria ser em princípio feita ao próprio condutor, a não ser que no momento da autuação existissem indícios de que o trabalhador actuou a mando, por instruções ou condicionado por incumprimento da entidade patronal- cfr. A e ob. citadas , pág. 41-, o que de forma alguma ali ficou exarado.
Todavia responsabilizou-se a respectiva entidade patronal, o que na altura era legalmente possível face ao estatuído no aludido art.º 4º n.º 1 a) da L. 116/99.
Porém e como já se disse, este diploma foi expressamente revogado, pelo actual C. Trabalho.
Daí que, em nosso modesto entendimento - e ressalvando sempre o respeito devido por opinião diversa - deixou de haver suporte legal para que – com base nos factos tidos em conta, quer no auto de notícia, quer no despacho administrativo sancionatório - se opere a condenação do empregador.
É evidente, repete-se, que a este pode vir a ser imputada a prática de infracções da natureza daquela que ora se analisa.
Todavia, para que tanto possa suceder, é necessário que do procedimento administrativo, constem factos donde se possa retirar a sua responsabilização, quer exclusiva, quer em regime de simultaneidade, alternatividade ou subsidiaridade.
E a verdade é que “ in casu” nenhuma factualidade existe, que permita sancionar a arguida, por qualquer das formas de participação contra ordenacional.
E assim sendo, não pode a mesma vir a sofrer qualquer punição, pela prática de um facto, que a nenhum título lhe é imputada.
É verdade que, nos termos do art.º 7º n.º 2 do já mencionado D.L. 433/82 as pessoas colectivas ou equiparadas, são responsáveis pelas contra ordenações praticadas pelos seus órgãos, no exercício das suas funções.
E a arguida é efectivamente uma pessoa colectiva( sociedade comercial)
Contudo cremos ser inquestionável que o trabalhador de uma empresa( e quando somente revestido dessa qualidade) não pode ser considerado um órgão da sua empregadora.
A este propósito parece- nos oportuno salientar o seguinte:
Na vigência do D.L.491/85 de 26/11, que estabelecendo então o regime das contra ordenações laborais, veio a ser revogado pela L. 116/99 de 4/8( seu art.º 2º nº1 ), a possibilidade ( embora que não pacífica) de punição em hipóteses similares á dos presentes autos, da entidade patronal baseava-se no nº1 do art.º 5º de tal D.L., que estabelecia, que as pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto eram responsáveis pelas contra ordenações previstas em tal diploma, quando fossem cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
E havia quem entendesse, que o termo “ representantes” englobava os demais indivíduos que agiam em nome ou por conta do ente colectivo, portanto também os trabalhadores- neste sentido cfr. A e ob. citada pág. 38-.
Contudo no actual C. Trabalho, não se encontra qualquer referência semelhante, restando- nos o apelo ao citado art.º 7º nº2 que “ in casu” não colhe, como já referimos.
O que significa que também por esta via, não se encontra fundamento para a sancionar.
É igualmente certo, que nos termos do art.º 15º n.º 1 do Reg. CEE 3820/85 impende sobre a empresa a obrigação de organizar o trabalho os condutores de molde a que estes possam dar cumprimento às disposições adequadas do aludido regulamento, assim como do Regulamento CEE 3821/85 de 20/12/85.
E ainda que de acordo com o disposto no nº2 deste art.º a empresa tem o dever de verificar periodicamente se os dois regulamentos foram respeitados, devendo se se verificarem infracções tomar as medidas necessárias para as evitar.
Ora até pelo teor desta norma se conclui, em nosso modesto entendimento, que é o próprio legislador que parte do pressuposto, que a materialidade da infracção apenas pode ser praticada pelo trabalhador.
E de facto assim é, pois quem tem o domínio de facto da condução é, indubitavelmente ele e apenas ele.
Depois, nada permite que se presuma que, a não observância das regras relativas ao repouso na condução, seja devida à não organização correcta por parte do empregador, ou á sua negligência, no cumprimento do aludido dever de fiscalização.
Cremos ser inquestionável, que no domínio do direito sancionatório, é vedado ao julgador servir-se de presunções, para fazer integrar determinada conduta em certo ilícito.
Acresce que a violação deste normativo ( dito art.º 15º) é objecto de punição autónoma como flui do disposto no art.º 8º do D.L. 272/89.
O que vale dizer, que igualmente por esta forma( e salvo sempre o devido respeito por entendimento oposto) não se pode alcançar o sancionamento do empregador.
Igualmente a nosso ver( e também evidentemente ressalvando sempre o respeito que nos merece opinião diversa e naturalmente mais esclarecida) não se obtém tal desiderato com o apelo ao disposto no artºs 176º e 178º n.º 4 do C. Trabalho.
É que desde logo, estas normas dizem respeito à duração e organização dos tempos de trabalho em geral, sendo que inclusive o segundo normativo se refere a casos de isenção de horário, que é temática que nem sequer foi trazida à colação no processo.
E o que está aqui em causa é algo diverso e que se prende com os tempos de condução e de repouso e às interrupções daquela sendo que para este domínio regem os Regulamentos Comunitários e o já citado D.L. 272/89, que na nossa opinião se mantêm em vigor e aliás são muito mais restritivos em termos de permissão de duração laboral contínua do que o regime geral.
Depois, mesmo que assim se não entendesse, da matéria de facto dada como provada, não resulta qualquer violação das aludidas normas do C. Trabalho, sendo certo que como resulta do disposto no art.º 614º deste diploma, o princípio das tipicidade tem pleno acolhimento no campo das contra ordenações laborais.
O que significa que também por esta via não se pode obter a responsabilização da empregadora.
Pelo que e tendo em conta todo o exposto e porque apesar da infracção ter sido cometida antes da vigência do C. Trabalho é o regime neste contido que deve ser aplicado, por mais favorável à arguida( cfr. art.º 3º nº2 do D.L. 433/82), se determina a absolvição da recorrente.
Sem custas.
Junte-se cópia dos acórdãos proferidos nos aludidos recursos penais 968/03 e 2650/02.
Cumpra-se o disposto no art.º 70º n.º 4 do D.L. 433/82.