Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
890/21.3T8LMG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: DECISÃO DE JULGADO DE PAZ
RECURSOS
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ART. 643.º
Decisão: INDEFERIMENTO DA RECLAMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 62.º, N.º 1 E 63.º DA LEI N.º 78/2001, DE 13 DE JULHO, E ARTIGOS 629.º E 671.º, N.º 3, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - Tendo sido instaurada a ação em julgado de paz e tendo sido interposto recurso para o tribunal de comarca, a lei não permite um segundo recurso, agora da decisão proferida pelo tribunal de comarca para o tribunal da Relação.

II – Mesmo que se admitisse o recurso para o tribunal da Relação, a invocação do dispositivo da «dupla conforme» (artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), como suporte para a admissibilidade do recurso, ficaria ainda dependente do critério do valor estabelecido no artigo 629.º do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:
Reclamação – artigo 643.º do CPC – Conferência

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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………José Vítor dos Santos Amaral

2.º Juiz adjunto……….Luís Filipe Dias Cravo


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(…)

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Reclamantes…………………..AA;

…………………………………...BB e esposa CC;

……………………………………DD;

Reclamados……………………EE e esposa FF.


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I. Relatório

a) A presente reclamação insere-se num processo que respeita a um recurso interposto de uma decisão do julgado de Paz ... para o respetivo tribunal de comarca.

Por decisão do relator do pretérito dia 16 de março, a reclamação foi desatendida com fundamento na falta de valor da ação.

Em resumo, considerou-se que tendo sido instaurada a ação em julgado de paz, com o valor de € 3.500,00, e tendo sido interposto recurso para o tribunal de comarca, a lei não permite um segundo recurso, agora da decisão proferida pelo tribunal de comarca para o tribunal da Relação, porquanto se aplica à situação o disposto no artigo 629.º do Código de Processo Civil, onde se exige como requisito da admissibilidade do recurso que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada tenha sido desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

b) Os Reclamantes não se conformando com esta decisão pediram a intervenção do coletivo, nos termos previstos no artigo 643.º, n.º 4, do Código de processo Civil.

Para o efeito, concluíram do seguinte modo:

«1º O tribunal “ a quo” entendeu que a decisão é irrecorrível, fundando-se em que esta ação tem o valor de 3.500€ e, ao contrário do que dispõe o art.º 62º da LJP, que permite o recurso para este tribunal das decisões do julgado de paz com valor de metade da alçada, é agora aplicável o art.º 629º n 1 do CPC que exige que o valor da causa seja superior a 5000€;

2º Os julgados de paz são tribunais não judiciais ou mistos, tendo em conta a sua natureza obrigatória (e não voluntária como os outros meios de resolução alternativa de litígios) e os métodos que utilizam na resolução do conflito, procurando sempre o acordo e afastando a conceção adversarial de litígio;

3º As decisões proferidas nos julgados de paz nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal judicial de 1.ª instância (isto é, a partir de € 8 2.500,01) podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para o tribunal judicial de comarca em que esteja sediado o julgado de paz;

4º E isto, ao contrário do que sucede nos tribunais judiciais onde as decisões também podem ser impugnadas através de recurso, desde que cumpram os requisitos previstos para o efeito.

5º Ou seja, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal;

6º Ora, o que torna evidente e claro que existe uma norma especial quanto à recorribilidade destas decisões do julgado de paz que tão só têm como requisito o valor da ação a partir de € 2.500,01, que não pode ser olvidada.

7º O art. 63° do mesmo diploma estabelece que “é subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes;

8º Esta norma institui, o Código de Processo Civil como direito subsidiário, que é;

9º Assim só poderemos afirmar a existência de impossibilidade de recurso destas decisões proferidas pelos Julgados de Paz para o Supremo Tribunal de Justiça, face ao regime geral de recursos do nosso sistema processual civil, pois, só neste caso, a sua admissibilidade iria possibilitar, uma terceira hipótese de recurso, o que não é previsto, como é notório, face ao regime adjetivo vigente;

10º E, ainda que não se considerasse que a norma especial (art.º 62.º) da Lei dos Julgados de Paz, por si só já previsse essa possibilidade, sendo possíveis dois graus de recurso, ou seja, para o tribunal da Comarca (que no caso funciona como o tribunal da Relação enquanto o primeiro tribunal de recurso) e para a Relação (enquanto o segundo tribunal de recurso), 11º E, de acordo com as normas subsidiárias do Código de Processo Civil seria sempre de se admitir para este último o recurso de decisões, independentemente do seu valor, que não confirmassem, sem fundamentação e essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (no caso o Julgado de Paz).

12º Tanto que, de igual modo o art. 10º, nº 1, do Código Civil estipula que os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.

13º E assim, teria sempre aplicação a chamada dupla conforme, aplicando por analogia o disposto no art. 671º, nº 3, do CPCivil, sob pena de se estar a lesar os direitos constitucionalmente consagrados;

14º A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no respetivo art. 47º, consagra o direito à ação e ao julgamento por um tribunal competente e imparcial pré-estabelecido por lei (princípio do juiz natural ou do juiz legal), impondo que no julgamento da causa se proceda de forma equitativa e dentro de um prazo razoável.

15º O direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado deve integrar o direito ao recurso ou ao chamado duplo grau de jurisdição sob pena 10 de considerar-se como violadora do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20º da CRP;

15º Razões para que seja admitido o recurso e não pode deixar de ser apreciado, o que se requer seja devidamente reconhecido, assim se fazendo inteira justiça.

Termos em que, Deferindo-se que sobre a matéria do despacho de não admissão de recurso proferido recaia um acórdão pela conferência, deve o recurso interposto vir a ser admitido e, a final, julgado procedente, por provado, como é de JUSTIÇA.»

II. Objeto da reclamação

A questão colocada na presente Reclamação consiste em saber se tendo sido instaurada a ação em julgado de paz, com o valor de € 3.500,00 euros, e tendo sido interposto recurso para o tribunal de comarca, a lei permite um segundo recurso, agora da decisão proferida pelo tribunal de comarca para o tribunal da Relação, mormente no caso de não existir dupla conforme.

III. Fundamentação

(a) Matéria de facto processual

É a que resulta do relatório que antecede.

b) Apreciação

(I) Os fundamentos da anterior decisão foram os seguintes:

«1 - Se bem se compreende a ideia dos recorrentes, estes sustentam que o artigo 63.º da Lei dos Julgados de Paz (Lei n.º 78/2001, de 13 de julho), é uma norma especial relativa à recorribilidade das decisões dos julgados de paz, nos termos da qual a partir do momento em que o valor do processo permite o recurso para o tribunal de comarca, fica automaticamente adquirido que há um segundo grau de jurisdição, ou seja, também há recurso para o tribunal da Relação, independentemente do valor do processo, desde que seja superior a €2.500,01, valor mínimo para se poder recorrer para o tribunal de comarca.

Além disso, de acordo com as normas subsidiárias do Código de Processo Civil, como é o art. 671.º, n.º 3, do Código Processo Civil, sempre seria de admitir recurso de decisões, independentemente do seu valor, que não confirmassem a decisão proferida na 1.ª instância, posição que neste caso é ocupada pelo julgado de paz.

Por fim, a admissão de um duplo grau de jurisdição é necessária, sob pena de violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20º da CRP.

2 - Não se afigura procedente esta argumentação, pelas razões que se passam a indicar.

(a) Nos julgados de paz a matéria dos recursos está regulada no n.º 1 do artigo 62.º da Lei dos Julgados de Paz (doravante designada apenas por «LJP»), nos seguintes termos:

«As decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz.»

O artigo 63.º da mesma lei, sobre direito subsidiário, acrescenta que «É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes.»

Nos tribunais judiciais, em matéria cível, face ao disposto no n.º 1, do artigo 629.º do Código de Processo Civil, «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.»

Como resulta desta norma, exigem-se duas condições para a recorribilidade da decisão desfavorável:

Primeiro, que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre;

Segundo, que a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

Fora estes casos, o recurso só é admissível quando a lei o prevê expressamente, como nos casos mencionados nos n.º 2 e 3 deste artigo 629.º.

Presentemente, nos termos do n.º 1 do artigo 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), «Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.»

(b) Fundamentalmente, o regime de recursos nos tribunais judiciais faz depender a sua admissibilidade do valor do processo.

Salvo algumas exceções, a regra geral diz que o valor em jogo no processo justificará se há ou não há recurso para uma instância superior e, havendo, o número de graus de jurisdição admissíveis.

Presentemente, a nossa lei estabelece dois graus de jurisdição:  tribunal da Relação e Supremo Tribunal de Justiça.

Face a este regime legal que fica indicado, não se deteta nada de excecional que justifique, em relação ao regime comum dos recursos que, em matéria cível, exista um tratamento diferenciado para as ações dos julgados de paz, diverso de qualquer causa cível que seja instaurada no tribunal de comarca.

Neste momento e na altura e que a ação foi instaurada no julgado de paz, uma causa cível instaurada num tribunal de comarca que tenha ou tivesse, por exemplo, o valor de €3.500,00, que é o valor da presente ação instaurada no julgado de paz, não admitiria recurso para o tribunal da Relação.

Por conseguinte, também não se deve admitir recurso para o tribunal a Relação de uma ação cível, com o mesmo valor, que tenha sido instaurada originariamente no julgado de paz.

A igualdade de situações e a necessária harmonia do sistema, que é um reflexo dessa igualdade, exigem o mesmo tratamento porque as situações são iguais.

Concorda-se, por conseguinte, com a ideia expressa em 1.ª instância quando se adverte que estando o processo no tribunal de comarca o regime de recurso é o deste tribunal.

Por conseguinte, nos casos como o dos autos só existe a possibilidade de recurso para o tribunal da Relação se estiverem preenchidos os requisitos previstos no mencionado artigo 629.º, ou seja: (i) causa com valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e (ii) decisão desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

E no presente caso estes requisitos não estão preenchidos, porquanto o valor da causa é de €3.500,00 e este valor é inferior à alçada do tribunal de comarca.

Acresce que o disposto no artigo 63.º da LJP favorece esta interpretação ao dizer que «É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, …»

Ou seja, a partir do momento em que a ação ingressa no tribunal e comarca, aplicam-se subsidiariamente as normas do Código de Processo Civil, isto é, aplicam-se as normas processuais civis aos casos omissos na LJP, como é o caso acerca da possibilidade de um segundo grau de jurisdição, porquanto a LJP só prevê um grau.

[No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de setembro de 2020, no processo 25462/18.6T8LSB-A.L1, entendeu-se, por exemplo, que as decisões dos julgados de paz só beneficiam de um grau de jurisdição:

«I – Não é admissível recurso para o tribunal da Relação da sentença proferida em 1ª instância em recurso interposto de processo instaurado em julgado de paz.

II – Em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado, não integra forçosamente o direito ao recurso ou ao chamado duplo grau de jurisdição» (sumário).

(…)]

3Como resulta do que acaba de ser dito, o facto da decisão recorrida não ter confirmado a decisão proferida na 1.ª instância, posição que neste caso é ocupada pelo julgado de paz, não é critério para a admissibilidade de recurso, mas sim o valor da ação, nos termos indicados no mencionado artigo 629.º do Código de Processo Civil.

4 – Por fim, cumpre referir que a não admissão de um duplo grau de jurisdição não ofende o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20.º da Constituição.

Como se refere no recente acórdão nº 137/2022 do Tribunal Constitucional (Processo n.º 1023/2021 - Relatora: Conselheira Mariana Canotilho), «Ora, relativamente ao direito de acesso aos tribunais, constitui reiterado entendi­mento deste Tribunal o de que do artigo 20.º, n.º 1, da CRP não decorre um direito geral a um duplo grau de jurisdição, como já se explicitou nos atrás parcialmente transcritos Acórdãos n.ºs 489/95 e 1124/96. (...) Reapreciando esta problemática, afigura‑se que – para além dos casos em que este Tribunal tem tradicionalmente afirmado a imposição constitucional de um direito ao recurso jurisdicional (ou direito a um duplo grau de jurisdição), a saber: as decisões conde­natórias em processo penal ou que impliquem a adopção de medidas restritivas da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido (orientação reafirmada, por último, nos Acór­dãos n.ºs 500/2007 e 588/2007, que justamente julgaram não inconstitucional a norma cons­tante do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso da decisão judicial tirada sobre impugnação de decisão admi­nistrativa que indefere requerimento de apoio judiciário) – é sustentável que, sendo constitu­cionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses actos provenientes de par­ticulares ou de órgãos do Estado, forçoso é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira e directa da afectação de tais direitos. Considera‑se, pois, que quando uma actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cida­dão, mesmo fora da área penal, a este deve ser reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação. Mas quando a afectação do direito fundamental do cidadão teve ori­gem numa actuação da Admi­nistração ou de particulares e esta actuação já foi objecto de controlo jurisdicional, não é sempre constitucionalmente imposta uma reapreciação judicial dessa decisão.»

 [Consultável em  www.tribunalconstitucional.pt].

Ou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 745/2021 (Processo n.º 838/21 - Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro), quando se ponderou que «O específico critério utilizado pelo legislador para traçar a fronteira entre a recorribilidade e a irrecorribilidade assenta, em grande medida, na gravidade da pena concretamente aplicada. Com certeza que a bondade dessa opção infraconstitucional – como a da generalidade dessas opções – pode ser questionada. No entanto, na medida em que leva em conta a severidade da consequência jurídica (é dizer, da compreensão de um direito fundamental) enfrentada pelo arguido, oferecendo-lhe uma possibilidade suplementar de recurso quando aquela consequência jurídica apresente uma dada medida considerada já particularmente severa, o critério utilizado não pode de modo algum considerar-se arbitrário ou irrazoável.

O argumento fica então reduzido à específica medida de pena utilizada para traçar a fronteira – i.e., ao facto de ela ser de x anos em vez de y. Afirma o recorrente que, «processualmente, a gravidade da pena de prisão de cinco anos e um dia reveste-se da mesma gravidade do que a pena de prisão de oito anos, visto o legislador ter considerado que atendendo à gravidade das mesmas e aos crimes a elas associados, não haveria de ser permitido que as mesmas fossem suspensas na sua execução.» Mas é uma vez mais a partir da inexigibilidade constitucional de um duplo grau de recurso que esse argumento decai, uma vez que, não estando o legislador vinculado a proporcionar um duplo grau de recurso, não está também, desse mesmo passo, sujeito a especiais constrangimentos decorrentes do princípio da igualdade na definição da concreta medida a utilizar como fronteira. Essa concreta medida sempre será suscetível de debate no plano infraconstitucional. Isso é inerente às fronteiras traçadas de forma aritmética. E nesse debate sempre será possível lançar mão de comparações com outras regras do mesmo domínio normativo (no caso, o processual penal) e com as concretas medidas aí utilizadas, mas dificilmente um juízo como esse, que é de caráter relativo, será determinante no plano constitucional. Sempre se acrescentará, em qualquer caso, que a comparação invocada pelo recorrente (com as regras sobre a suspensão da execução da pena de prisão), constitui uma comparação desgarrada, que apenas poderia assumir um mínimo de relevância hermenêutica no âmbito de um juízo comparativo bem mais amplo que levasse em conta inúmeras outras variáveis» [Consultável em  www.tribunalconstitucional.pt].

Estas decisões incidiram sobre matéria criminal, mas valem igualmente em matéria cível, bastando substituir a referência a «penas» por «valor económico do processo».

Retira-se destas decisões que a Constituição da República não exige que exista em todos os casos um duplo grau de jurisdição, podendo existir apenas um grau ou mesmo não existir recurso, tudo dependendo da importância ou gravidade da situação jurídica objeto da decisão.

No caso dos autos o reduzido valor do processo não justifica que exista duplo grau de jurisdição, pelo que não ocorre ofensa ao princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20.º da Constituição.

 (II) Tendo em consideração as conclusões dos Reclamantes dirigidas ao coletivo, cumpre referir que não existe fundamento para alterar o antes decidido, pelas seguintes razões:

1 – Uma das posições jurisprudenciais, já atrás mencionada (que é a seguida pelos ora juízes-adjuntos) defende que não há, em caso algum, recurso para o tribunal da Relação.

Argumenta-se que quando o legislador previu no artigo 62.º, n.º 1, da Lei dos Julgados de Paz, a possibilidade de recurso face às decisões destes tribunais, dispôs aí que «As decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz», o que quer dizer que esta norma prevê de modo completo, fechado, os casos em que há recurso, resultando claro do seu texto que vedou a possibilidade de recurso para os tribunais da Relação.

Outra posição, para a qual me inclinei enquanto relator da anterior decisão, consiste em admitir o recurso perante o tribunal da Relação argumentando-se que esse recurso cabe na norma do artigo 63.º da mesma lei, onde se diz que «É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados.»

Isto é, a norma do artigo 62.º acima transcrita articular-se-ia com esta de modo que ao prever o recurso para o tribunal de comarca, não excluiria a possibilidade de, por aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, aplicar ainda as suas normas gerais sobre recursos.

Porém, refletindo novamente sobre a matéria, cumpre referir que admitindo-se um segundo recurso, agora para o tribunal da Relação, originar-se-ia uma quebra na harmonia do sistema que consistiria no seguinte:

Como, em razão do valor, a competência dos julgados de paz está fixada em €15.000,00 euros (artigo 8.º da LJP), se fosse admitido recurso do julgado de paz para o tribunal de 1.ª Instância e da decisão deste tribunal para o tribunal da Relação, pelo menos em alguns casos, então isso implicaria que ações até ao valor de 15.000,00 euros interpostas nos julgados de paz pudessem beneficiar em alguns casos de dois graus de jurisdição, o que nunca sucede com as causas de igual valor (até 15.000,00 euros) instauradas nos tribunais judiciais de 1.ª instância.

Esta desarmonia ou incoerência mostra que a interpretação adequada é a que limita o recurso ao tribunal da 1.ª instância.

Cumpre, pelo exposto, decidir em conformidade, desatendendo a reclamação.

2 – Ainda se dirá o seguinte:

Os Reclamantes focam a sua argumentação no facto de não ter existido dupla conforme entre o julgado de paz e o tribunal de comarca e, por isso, independentemente do valor, entendem que sempre seria admissível o recurso para o tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 672.º do Código de Processo Civil, relativo aos casos em que é admissível «revista excecional».

Mas, para além das razões já referidas no anterior «ponto 1», também não lhes assistiria razão na hipótese de ser admissível recurso para o tribunal da Relação.

Com efeito, a admissibilidade da «revista excecional» também está submetida aos requisitos gerais, como o critério do valor, indicados no artigo 629.º do Código de Processo civil.

Isto já foi referido na anterior decisão, mas, porventura, de modo pouco convincente, quando aí se referiu que «3 – Como resulta do que acaba de ser dito, o facto da decisão recorrida não ter confirmado a decisão proferida na 1.ª instância, posição que neste caso é ocupada pelo julgado de paz, não é critério para a admissibilidade de recurso, mas sim o valor da ação, nos termos indicados no mencionado artigo 629.º do Código de Processo Civil.»

Isto é, para que seja admitida a revista excecional, a ação há de permitir o recurso para o tribunal superior nos termos gerais do artigo 629.º do Código de Processo Civil.

Neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal e Justiça de 22 de junho de 2017, no processo n.º 1804/15.5T8CBR-A.C1-A.S1:

«…II - Havendo dupla conforme, a admissibilidade da revista excepcional depende da verificação dos pressupostos enunciados nas várias alíneas do n.º 1 do art. 672.º do CPC (que devem ser alegados pelo recorrente), bem como do preenchimento dos requisitos gerais de recorribilidade exigidos pelo art. 629.º, n.º 1, do mesmo Código, i.e., ter a causa um valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada ser desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

III - Da decisão proferida no âmbito de embargos de executado com o valor de € 5 432,93 não é admissível recurso de revista excepcional, posto que, situando-se a alçada da Relação, em matéria cível, no valor de €30 000,00 (art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08, que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário), faltam os referidos pressupostos gerais de recorribilidade: valor da causa e sucumbência» (Sumário).

E, mais recentemente, o acórdão do Supremo Tribunal e Justiça de 14 de julho de 201, no processo n.º 2498/03.6TTPRT-D.P1.S1:

«I- Segundo jurisprudência pacífica deste STJ “o recurso de revista excepcional não constitui uma modalidade extraordinária de recurso, mas antes um recurso ordinário de revista criado pelo legislador, na reforma operada ao Código de Processo Civil, com vista a permitir o recurso nos casos em que o mesmo não seria admissível em face da dupla conformidade de julgados, nos termos do artº 671º, nº 3, do CPC, e desde que se verifique um dos requisitos consagrados no artº 672º, nº 1, do mesmo Código. Por conseguinte a sua admissibilidade está igualmente dependente da verificação das condições gerais de admissão do recurso de revista, como sejam o valor da causa e o da sucumbência, enunciados pelo nº 1, do artº 629º, do CPC” (…)» - (Sumário), ambos consultáveis em www.dgsi.pt.

Ora, no presente caso, não pode ser admitido o recurso com fundamento na verificação dos requisitos da revista excecional porque, a revista excecional para ser admissível, além dos requisitos específicos, também tem de cumprir os requisitos gerais mencionados no artigo 629º do Código de Processo Civil, entre os quais o do valor, mas, como já ficou atrás explicito, tal requisito não se verifica no caso dos autos.

Improcede, pelo exposto, a Reclamação.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se a Reclamação improcedente

Custas pelos Reclamantes


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Coimbra, …