Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1445/21.8T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PIRES ROBALO
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO.
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ, COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 72-A, DO CPC; 8.º, N.º 1, DA CRP E REGULAMENTO 650/12, DE 4/7/12 DO PARLAMENTO EUROPEU
Sumário: I. Nos termos do disposto no Regulamento EU 650/12, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4/7/12, impõe-se averiguar as circunstâncias concretas da ida do falecido nos anos anteriores ao óbito, a fim de determinar a residência habitual do mesmo, nos termos e para os efeitos do citado Regulamento.

II. Se tais elementos estiverem controvertidos, deve proceder-se à respectiva produção de prova.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

                                         Proc.º n.º 1445/21.8T8CVL.C1

                                                           1.- Relatório

1.1.- Nos presentes autos veio AA, solteira, maior, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ... ..., requerer nos termos do art.º 1099, do C.P.C., inventário, por óbito do seu avô, BB, falecido em .../.../2019, natural do concelho da ... e residia na rua ..., ... – ... ..., quando se encontrava em Portugal, vindo, no entanto, a falecer em França, ..., Rue, ....

Para tanto refere que o falecido deixou como herdeiros:

CC, viúva, residente em ..., Rue, ... – França e acidentalmente na rua ..., ..., ... ..., seu cônjuge.

e dois filhos:

DD, solteiro, maior, residente em ..., Rue, ... – França e acidentalmente na rua ..., ..., ... ..., e.

 EE, que repudiou a herança de seu pai, sucedendo-lhe a aqui requerente sua filha AA.

Para cabeça de casal indicou a viúva, CC.

                                                    ***

1.2. – Em 31/3/2022 CC, indicada para exercer o cargo de cabeça de casal, veio, nos termos do n.º 2, do art.º 1103 do Código de Processo Civil (CPC), suscitar INCIDENTE DE ESCUSA

                                                     ***

            1.3.- Em 4/5/2022 foi proferido despacho do seguinte teor:

“ Compulsados os autos, analisando o assento de óbito do BB, constata-se que, não obstante seja referido na petição inicial que o mesmo residia na Rua ..., ..., ... ..., consta daquele documento que a sua residência habitual se situava em ..., Rue, ..., França.

Destarte, antes do mais, notifique-se a Requerente e a Cabeça-de-casal para virem aos autos informar qual a residência habitual do de cuius aquando do seu falecimento, juntando documentos comprovativos do alegado.

“Para o efeito, concede-se o prazo de 10 (dez) dias”.

                                                           ***

1.4. –  Por requerimento de 17/5/2022, CC, a indicada para cabeça de casal, notificada do teor aludido no ponto 1.3., apresentou requerimento do seguinte teor:

notificada para vir informar os presentes autos sobre a última morada habitual do BB e bem assim juntar documento comprovativo da mesma, diz:

A última residência habitual do inventariado foi no nº ..., Rue, ..., República Francesa.

Como prova do alegado, junta-se cópia do recibo de arrendamento do qual era titular na residência onde habitava”.

                                                           ***

1.5. – Em de 31/5/2022 foi proferido despacho do seguinte teor:

“ Compulsados os autos, constata-se que o Inventariado teve a última residência habitual em França.

Destarte, antes do mais, notifique-se a Requerente e a cabeça de casal já nomeada para virem aos autos, querendo, se pronunciarem quanto à eventual verificação da exceção de incompetência absoluta deste Tribunal (cf. artigo 4.º, do Regulamento (UE) N.o 650/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 4 de julho de 2012).

Para o efeito, concede-se o prazo de 10 (dez) dias”.

                                                           ***

1.6. – Em 3/6/2022 a requerente AA, apresentou requerimento do seguinte teor:

Notificada, para se pronunciar sobre o a eventual verificação da exceção de

incompetência do tribunal, vem dizer o seguinte:

A alegação feita pelo tribunal, sobre a sua possível incompetência, encontra-se

enquadrada no artº 4 do regulamento 650/2012 do Parlamento Europeu e do conselho.

Ora, de tal normativo resulta que, o tribunal competente será aquele, onde o falecido tinha a sua residência habitual.

Contudo tal conceito (residência habitual), à luz do direito europeu não pode ser interpretado de forma simplista, pois não existe nenhum preceito que defina o que é a residência habitual.

Efetivamente, a residência habitual é mais do que a mera permanência no território de um estado, (como neste caso concreto), é sim uma relação estreita e estável com um estado.

Deve assim, o tribunal proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido (a sua residência, o seu local de trabalho, a localização do seu património, a sua nacionalidade, o seu domicílio fiscal, a sua ligação afetiva com o país, a compra de património, a presença de familiares, as relações administrativas com as autoridades do estado e por último e mais importante a sua vontade).

Para poder fazer a integração do conceito de residência habitual.

Ora,

Este tribunal encontra-se apenas habilitado com os elementos, que referem que o falecido teve a sua residência em França, onde veio a falecer e não mais do que isso.

Importa assim, habilitar o tribunal de outros elementos, para poder tomar a decisão sobre a sua competência ou não!

A requerente entende que o tribunal competente é o Tribunal ..., porquanto:

Além dos considerandos supra referidos, quanto ao conceito de residência habitual.

O falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com Portugal, pois,

- Sempre manteve a sua nacionalidade portuguesa e estava inscrito no consulado português.

- Todo o seu património se encontra localizado em Portugal.

- Tem residência/domicilio em Portugal (Rua ..., ... ...)

- Tem domicílio fiscal em Portugal.

- Sempre manifestou vontade e orgulho de ser português.

- Quis ser enterrado em Portugal.

- Sempre manifestou vontade que fosse a lei portuguesa a regular a sua sucessão.

Logo, mesmo que se entenda que o conceito de residência habitual, nos leva a que a sucessão seja regulada pela França,

Atentas as razões aduzidas, estamos perante uma exceção que se enquadra no artº 21º nº 2 do regulamento 650/2012 do Parlamento europeu.

Pois duvidas não restam que, o conjunto das circunstâncias elencadas, resulta

claramente que no momento do óbito, o falecido tinha uma relação mais estreita com o

estado Português.

Daí ser, o tribunal competente, o Tribunal ..., tudo de acordo com o artº 21º nº 2 do regulamento 650/2012 do Parlamento Europeu e do conselho.

Termos em que, deve este tribunal declara-se competente e processo prosseguir, tudo com as legais consequências.

Caso o tribunal entenda que se deve produzir prova sobre os factos alegados, quanto a mais estreita ligação com o estado português, indica-se desde já, a seguinte prova testemunhal:

- A irmã do falecido FF, a apresentar.

- A sua filha EE, a apresentar”.

                                                           ***

1.7. – Face ao teor do requerimento que antecede, em 25/6/2022 foi proferido despacho do seguinte teor:

Antes do mais, com vista a aquilatar da residência habitual do de cuius e em face do teor do requerimento mencionado em epígrafe, notifique-se a Requerente e a cabeça de casal para virem aos autos esclarecer quanto tempo esteve o Inventariado em Portugal nos anos de 2018 e 2019 e bem assim há quanto tempo se encontrava em França aquando do seu óbito.

Para o efeito, concede-se o prazo de 10 (dez) dias.

                                                           ***

1.8. – Face ao teor do despacho aludido no ponto 1.7., veio a requerente AA, apresentar requerimento do seguinte teor:

“O falecido no ano de 2019 (dois meses) esteve em França nomeadamente para receber tratamento médico, antes do seu falecimento, que aconteceu em .../.../2019.

Quanto ao ano de 2018, o falecido esteve a maior parte do ano em Portugal, ou seja passou mais tempo em Portugal do que na França”.

                                                           ***

1.9. – Por sua vez a cabeça de casal, face ao despacho referido em 1.7. veio apresentar requerimento do seguinte teor:

CC, notificada para vir informar os presentes autos sobre a última morada habitual do BB e ainda esclarecer quanto tempo esteve em Portugal nos anos de 2018 e 2019 e bem assim há quanto tempo se encontrava em França aquando do seu óbito, diz:

O inventariado esteve em Portugal pela última vez no ano de 2017 durante o mês de Agosto a gozar férias de Verão, não mais tendo voltado em consequência do agravamento das suas condições de saúde que o obrigaram a ficar em França em tratamentos até ao infausto desenlace do seu falecimento”.

                                                           ***

1.10. – Em 16/9/2022 foi proferida decisão do seguinte teor:

 “Da (in)competência do Tribunal

A Interessada AA veio intentar a presente ação especial de inventário, para partilha da herança aberta por óbito de BB.

Juntou para o efeito, assento de óbito do de cuius, no qual consta como residência habitual do mesmo “..., Rue, ..., França”, bem como que o mesmo faleceu em .../.../2019, em ..., República Francesa (cf. documento n.o ... junto com o requerimento inicial).

Por despacho proferido em 04.05.2022 (cf. referência ...76), foi determinada a notificação da Requerente e da cabeça-de-casal para virem aos autos informar qual a residência habitual do de cuius aquando do seu falecimento, juntando documento comprovativos do alegado.

A Requerente nada disse ou requereu.

A cabeça de casal veio aos autos juntar o requerimento com a referência ...78, no qual esclarece e que a última residência habitual do Inventariado foi em ..., Rue, ..., República Francesa” e bem assim junta cópia de recibo de arrendamento do qual era titular na residência onde habitava.

Nessa sequência, foi determinada a notificação da Requerente e da cabeça de casal já nomeada para virem aos autos se pronunciarem quanto à eventual verificação da exceção de incompetência absoluta deste Tribunal (cf. referência ...98).

Veio a Requerente apresentar o requerimento com a referência ...12, pugnando pela competência deste Tribunal para apreciar a presente ação.

*

Cotejados estes elementos, cumpre apreciar e decidir.

Com relevância para a presente decisão, encontram-se assentes os seguintes factos:

1. BB faleceu em .../.../2019, em ..., República Francesa (cf. assento de óbito, junto como documento n.o ..., com o requerimento inicial).

2. Consta no assento de óbito de BB que a sua última residência habitual se situa em “..., Rue, ..., França” (cf. assento de óbito, junto como documento n.o ..., com o requerimento inicial).

3. BB esteve em França desde, pelo menos, 01.01.2019 (facto admitido por acordo).

4. BB recebia tratamento médico em França (facto admitido pela Requerente).

Ora, no que tange à competência internacional do tribunal, no seio da União Europeia, para conhecer de questões relativas à sucessão mortis causa de uma pessoa, importa atender, desde logo, ao Regulamento (UE) n.o 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 04 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.

Ora, tendo o óbito do Inventariado ocorrido após 17.08.2015 (cf. artigo 83.o, do Regulamento (UE) n.o 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 04 de julho de 2012), deverão aplicar-se as regras previstas no aludido regulamento.

Estatui o artigo 4.o, deste diploma, com a epígrafe “competência geral”, que são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.

Por sua vez, os artigos 5.º a 11.º, estabelecem regras especiais quanto à competência dos tribunais.

No caso sub judice, não se encontra preenchida nenhuma regra especial aludida no que tange à competência internacional do Tribunal, pelo que deverá aplicar-se a regra geral, devendo ser competência para o processo de inventário os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.

Note-se aliás que, não vem invocado nem demonstrado que o de cuius tenha feito alguma declaração de escolha da lei da nacionalidade para regular a sua sucessão.

Por outro lado, cumpre salientar e que, as regras que atribuem competência para decidir a questão, mormente em matéria sucessória, distinguem-se das regras relativas à lei aplicável, neste caso os artigos 20.o e seguintes do Regulamento (UE) n.o 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 04 de julho de 2012.

No caso em dissídio, é evidente a existência de diferentes elementos de conexão que se relacionam quer com Portugal, quer com França.

Todavia, não se pode olvidar, conforme foi esclarecido pela cabeça de casal, que o de cuius, à data do seu decesso, tinha residência habitual em França. Tal resulta não só do assento de óbito do mesmo, mas, outrossim, do facto deste se encontrar em França nos meses que antecederam o seu falecimento, local onde inclusive efetuava o seu tratamento médico.

Nesta conformidade, a competência para julgar a sucessão do de cuius será dos órgãos jurisdicionais franceses e não deste Tribunal.

Veja-se a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.01.2022, processo n.o 511/21.4T8FAF.G1, relatora SANDRA MELO, consultável in www.dgsi.pt “1- Atento o primado do direito comunitário sobre o direito nacional (no 4 do artigo 8o da Constituição da República Portuguesa) e o disposto no artigo 4o no 1 do Regulamento (UE) no 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, há que atribuir aos órgãos jurisdicionais franceses a competência internacional para decidir da sucessão de nacional português com última residência habitual em França e falecido após 17 de agosto de 2015, mesmo que todos os bens a partilhar se situem em Portugal. 2- Critério este que, aliás, é o que se segue para determinar a própria lei a aplicar ao conjunto da sucessão, nos termos do artigo 21o do Regulamento”.

Ora, a infração das regras de competência internacional do Tribunal – como sucede no caso sub judice – importa a incompetência absoluta, a qual deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa e implica absolvição do réu da instância ou indeferimento liminar, quando o processo o comportar (cf. artigos 96.o, alínea a), 97.o, n.o 1, 98.o e 99.o, todos do Código de Processo Civil).

Mais estatui o artigo 15.o, do Regulamento acima mencionado, que o órgão jurisdicional de um Estado Membro perante o qual tenha sido intentada uma ação em matéria sucessória para o qual não seja competente por força do presente regulamento declara oficiosamente não ter competência.

*

Ante o exposto, declara-se a incompetência absoluta deste Tribunal, em face das regras de competência internacional, para julgar a presente ação e, em consequência, absolve-se os Interessados da Instância.

Condena-se a Requerente no pagamento das custas processuais, nos termos do artigo 527.o, do Código de Processo Civil.

Fixa-se à presente causa, o valor de 1.500,00EUR (mil e quinhentos euros), nos termos dos artigos 296.o, 297.o e 302.o, n.o 3, do Código de Processo Civil.

Registe e notifique”.

                                                           ***

1.11. - Inconformado com tal decisão dela recorreu a requerente - AA -, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“Dúvidas não restam a ora apelante da sua legítima pretensão, atento os factos supra referidos, bem como a normas jurídicas violada, a saber:

 A sentença ora recorrida violou os artigos 2o,4o e 21o do regulamento (EU)no 650/2012 do parlamento europeu e do conselho de 4 de julho, pois não considerou a exceção que afasta o conceito simplista de residência habitual.

 A sentença ora recorrido violou os artigos 62o e 72-A do CPC, na medida que o direito português pode e deve ser aplicável a este caso concreto.

 A sentença ora recorrida omitiu/não ouviu as testemunhas arroladas pela recorrente para fazer prova da sua posição.

Nestes termos e sobretudo no que serão objeto do douto suprimento de V.Ex.as, deve ser concedido provimento ao presente recurso e a final ser revogada a sentença que declarou a incompetência absoluta do Tribunal ....

tudo com as legais consequências”.

                                                           ***

1.12. - Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C. respondeu CC, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

1. De acordo com o artigo 638.o do CPC: ”O prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.o 2 do artigo 644.o e no artigo 677.o.”

2. Neste sentido, o n.o 2 do artigo 644.o, estabelece: “Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1a instância: b) Da decisão que aprecia a competência absoluta do tribunal.”

3. Sendo assim o prazo para interposição de Recurso da Sentença do tribunal a quo que apreciou a competência absoluta do tribunal, vindo a declarar-se incompetente, era de 15 dias.

4. A sentença objeto do recurso foi remetida às partes via CITIUS no dia 16 de Setembro (16/09/2022), pelo que operou no primeiro dia útil seguinte, sendo esse dia 19 de setembro (19/09/2022), de acordo com o n.o1 do artigo 248.o do CPC.

5. O prazo de recurso terminaria no dia 04 de outubro de 2022 (4/10/2022), ou no dia 07 de outubro (07/10/2022) mediante o pagamento de multa de acordo com o art.o 139.o, n.o5 do CPC.

6. Sucede que o Recurso foi apresentado no dia 17 de outubro (17/10/2022), fora do prazo legal para o efeito.

7. Assim, o recurso é extemporâneo, não podendo o mesmo ser admitido nem dele conhecer-se.

Mesmo que assim não se entenda, sem prescindir:

8. Sendo a ação respeitante a sucessão mortis causa, tem aplicação o Regulamento (EU) n.o 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 04 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessão e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.

9. O artigo 4.o do Regulamento 650/2012 determina a competência geral e estabelece que: ”São competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito”. (sublinhado nosso)

10. Por outro lado, o artigo 21.o estabelece a regra geral relativamente à lei aplicável, estabelecendo assim que: “Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito.” (sublinhado nosso)

11. O n.o 2 do artigo 21.o determina: “Caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação, manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n. o1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.”

12.As regras que atribuem competência para decidir a questão, mormente em matéria sucessória, distinguem-se das regras relativas à lei aplicável, neste caso os artigos 20.o e seguintes do Regulamento (EU) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 04 de julho de 2012.

13.Assim, o invocado pela Recorrente, apenas diz respeito à lei aplicável e não à competência internacional dos órgãos jurisdicionais, ou seja, mesmo que se considerasse que o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com Portugal, tendo residência habitual em França- o que não se verifica – tal apenas determinaria que fosse aplicável à sucessão a lei portuguesa e não que os órgãos jurisdicionais portugueses tivessem competência para o processo de inventário.

Ainda assim,

14.Apesar de os bens do falecido se situarem em Portugal, este residia em França onde recebia tratamento médico e onde veio a falecer. Ademais, o seu cônjuge residia consigo em França juntamente com o seu Filho, sendo assim em França que mantinha a sua vida social e familiar.

15.Parece assim claro que, os elementos dos quais a Recorrente se faz valer para arguir a relação mais estreita com Portugal, nada mais são que um conjunto de meros elementos de conexão, não sendo os mesmos suficientes para se estabelecer uma conexão muito superior ou sequer manifestamente mais estreita, à que resulta da residência.

16.O falecido não procedeu à escolha da lei da nacionalidade para regular a sucessão.

17.Assim, in casu, também a lei aplicável, deverá ser a da residência habitual.

18.Reforça-se que mesmo que o falecido tivesse procedido a esta escolha, continuariam a ter competência os órgãos jurisdicionais franceses, pois em caso de escolha da lei da nacionalidade, os herdeiros têm de acordar que os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro da lei escolhida sejam os competentes para apreciar tal matéria, de acordo com os artigos 5.o e 7.o do Regulamento em questão.

19.Assim, é inequívoco que os órgãos jurisdicionais competentes são os franceses e acrescenta-se ainda que a lei aplicada ao inventário deve, de igual forma, ser a francesa.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, deve ser:

a) Considerado extemporâneo o recurso apresentado pela Recorrente, não sendo o mesmo admito.

Caso assim não se entenda,

b) Deverá o Recurso de apelação ser considerado totalmente improcedente e em consequência deverá manter-se a decisão recorrida.

POIS SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA!

                                               ***

1.13. – Em 7/11/2022 foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:

Consigna-se que tendo em consideração que a sentença proferida declarou a incompetência absoluta deste Tribunal para conhecer do processo, indeferindo-se a petição inicial, considera-se que, salvo melhor opinião, o prazo para interposição do recurso é de 30 dias, porquanto cai no âmbito de aplicação do artigo 644.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Civil (vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2018, processo n.o 2834/16.5T8GMR-A.G1.S1, relator TOMÉ GOMES, consultável in www.dgsi.pt).

*

Por legalmente admissível (cf. artigo 627.o e 629.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Civil), tempestivo (cf. artigo 638.o, do Código de Processo Civil), interposto por quem para tal tem legitimidade (cf. artigo 631.o, n.os 1, do Código de Processo Civil), a decisão ser disso suscetível, admite-se o recurso interposto pela Requerente AA, o qual é de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. artigos 644.o, n.o 1, alínea a), 645.o, n.o 1, alínea a) e 647.o, todos do Código de Processo Civil).

Mais se consigna que inexiste qualquer nulidade que cumpra sanar (cf. artigo 641.o, n.o 1, do Código de Processo Civil).

*

Notifique.

*

Oportunamente, subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

                                                           ***

1.14.- Com dispensa de vistos cumpre decidir.

                                                           ***

                                               2. Fundamentação

Refere-se no ponto 1.10. que com relevância para a presente decisão, encontram-se assentes os seguintes factos:

1. BB faleceu em .../.../2019, em ..., República Francesa (cf. assento de óbito, junto como documento n.o ..., com o requerimento inicial).

2. Consta no assento de óbito de BB que a sua última residência habitual se situa em “..., Rue, ..., França” (cf. assento de óbito, junto como documento n.o ..., com o requerimento inicial).

3. BB esteve em França desde, pelo menos, 01.01.2019 (facto admitido por acordo).

4. BB recebia tratamento médico em França (facto admitido pela Requerente).

                                                           ***

                                                  3. Motivação

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Constitui ainda communis opinio, de que o conceito de questões de que tribunal deve tomar conhecimento, para além de estar delimitado pelas conclusões das alegações de recurso e/ou contra-alegações às mesmas (em caso de ampliação do objeto do recurso), deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes, bem como matéria nova antes submetida apreciação do tribunal a quo – a não que sejam de conhecimento oficioso - (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.

Calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verificamos que a questão a decidir consiste em saber: -se deve ser proferido acórdão que revogue a sentença que declarou a incompetência absoluta do Tribunal ....

A recorrente alicerça o seu ponto de vista no facto de em seu entender, a residência habitual, ser mais do que a mera permanência no território de um estado, (como neste caso concreto), é sim uma relação estreita e estável com um estado, pelo que, deveria, em seu entender, o tribunal ter procedido a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido (a sua residência, o seu local de trabalho, a localização do seu património, a sua nacionalidade, o seu domicílio fiscal, a sua ligação afetiva com o país, a compra de património, a presença de familiares, as relações administrativas com as autoridades do estado e por último e mais importante a sua vontade).

Para assim estar habilitado e consequentemente, fazer a integração do conceito de residência habitual.

Deveria ter ouvido as testemunhas, por si, arroladas, para se inteirar onde o mesmo tinha a residência perante, até por força do art.º 22.º, n.º 2, do regulamento 650/2012 do Parlamento europeu.

Por outro lado, refere que deveria ter-se aplicado o art.º 72.º-A, do C.P.C., e por consequência ser declarado competente o Tribunal ....

Opinião oposta tem a recorrida que pugna pela manutenção da sentença recorrida, até porque, o n.º 2, do art.º 22.º, do regulamento Europeu não se aplica à questão da competência.

Vejamos.

Foi publicado no jornal Oficial da União Europeia, de 27 de julho de 2012, o Regulamento n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.

A publicação deste Regulamento é o culminar de um trabalho intenso desenvolvido sobretudo ao longo dos últimos 4 anos cujos objetivos, sintetizados nos considerandos 7 e 8, se prendiam com a elaboração de um regime jurídico que contribuísse para minimizar os entraves à livre circulação de pessoas que se defrontem com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça, facilitar a organização antecipada da sucessão e garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legatários, das outras pessoas próximas do falecido, bem como dos credores da sucessão.

O n.º 1 do art.º 8º da Constituição da República Portuguesa estabelece um regime de recepção automática das normas e princípios de direito internacional geral, que fazem parte integrante do direito português.

O n.º 4 do referido preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24-07 (Sexta Revisão Constitucional) estatui que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”

Assim, tal normativo constitucional reflecte o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-11-2018, relator Cabral Tavares, processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1:

“No quadro da assinatura do Tratado de Lisboa, na declaração nº 17 anexa à ata final, sobre o primado do direito comunitário, «A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência».
            Primado do direito comunitário sobre o direito nacional reconhecido no nº 4 do art. 8º da Constituição: uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em
«afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2014, anotação XXIII ao art. 8º, pág. 271; realce acresc.).”

Geraldo Rocha Ribeiro refere a revisão dos Tratados da União Europeia, designadamente através do Tratado de Amesterdão, como um marco decisivo para a evolução da “comunitarização do direito internacional privado e do direito processual privado”, sendo por via dessa revisão que a União Europeia assumiu competência para regulação das questões de direito internacional privado para assegurar a liberdade de circulação dentro do espaço comunitário, o que foi reforçado com o Tratado de Lisboa. Mais refere que “Estas mudanças introduzidas pelo alargamento da competência da EU acabou por desagregar e fraccionar o sistema de Direito Internacional Privado (DIP) português. Agora fala-se em três níveis de regulamentação: nível de integração e espaço comunitário, nível de cooperação internacional (a relação do espaço comunitário com estados terceiros, particularmente visível com o reconhecimento da UE como membro de pleno direito da Conferência de Direito Internacional Privado da Haia) e nível interno (espaço cada vez mais residual de aplicação do direito nacional internacional privado)” – cf. A Europeização do Direito Internacional Privado e Direito Processual Internacional: Algumas Notas sobre o Problema da Interpretação do âmbito Objectivo dos Regulamentos Comunitários, in Revista Julgar 23, Maio-Agosto, 2014, pág. 266.

No âmbito do fenómeno sucessório, foi aprovado o Regulamento (EU) n°. 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4/07/2012, publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 27/07/2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, tendo entrado em vigor em 16-08-2012, no vigésimo dia seguinte à sua publicação (artigo 84.º, 1.º parágrafo).

Este Regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros da União Europeia, com excepção do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca, mas apenas rege as sucessões abertas a partir de 17 de Agosto de 2015 (cf. artigo 83.°), com salvaguarda transitória da escolha de lei feita pelo de cujus ou da validade formal e material de disposições por morte feitas antes dessa data.

Portugal é um Estado-Membro da União Europeia, e, como tal, vinculado ao Direito da União, cujos Regulamentos, nos termos do paragrafo 2º do artigo 288º do Tratado de Funcionamento (TFUE), gozam de caráter geral – vinculam diretamente, quer os Estados da União, quer as pessoas (singulares e coletivas), obrigatoriamente e em todos os seus elementos, sem que os Estados os possam adaptar e sem necessidade de qualquer mecanismo de receção.

A União Europeia tem elaborado um conjunto de regulamentos, entre eles, por mais relevantes, neste campo, o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.; o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial; o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental; o Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais; Regulamento (CE) n.º 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais; Regulamento (UE) n.º 1259/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010, que cria uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial; Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares, que visam “facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos” no âmbito de relações privada, mas conexionadas com mais do que um país, como se escreveu no Regulamento em discussão nestes autos (Considerando 7, do Regulamento 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de julho de 2012 “ é conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça”)

Neste sentido, estabelece o artigo 81.º, n.º 2, c), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) que «o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, adotam, nomeadamente quando tal seja necessário para o bom funcionamento do mercado interno, medidas destinadas a assegurar […] a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição.»

Tendo em conta os objetivos da União Europeia e considerando que a diversidade de regras materiais e processuais dos seus Estados-Membros dificultava a vida dos herdeiros nos casos em que a sucessão tinha fatores de conexão com diversos países, bem como daqueles que queriam planear antecipadamente a sua sucessão, se composta por bens em mais do que um Estado ou tencionassem reformar-se e mudar de residência para outro país para aí viverem os últimos anos das suas vidas, sujeitando-os a insegurança jurídica, esta resolveu criar um quadro jurídico conflitual e adjetivo comum para estas matérias, entre eles o Regulamento Europeu n.º 650/2012, de 4 de julho, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, como já acima referido.

Aqui chegados cabe apreciar o caso sub em apreço.

Portugal tal como a França, encontram-se abrangidos pelo campo territorial do Regulamento, desde logo por serem Estados-Membro da União Europeia. O regulamento em causa 650/2012, de 4 de julho, por força do art.º 83.º, é aplicável às sucessões das pessoas falecidas a partir do dia 17 de agosto de 2015, inclusive, logo aplicável ao caso em apreço, dado que, o óbito do autor da herança, ocorreu em 11/3/2019 (cfr. ponto 1dos factos provados), encontrando-se, por isso, preenchido este requisito temporal.

No que toca à matéria em causa, o art.º 1º do Regulamento define-o como sendo aplicável às sucessões por morte , com exclusão das matérias fiscais, aduaneiras e administrativas, pretendendo regular todos os aspetos da sucessão, tirando algumas exceções (entre as quais, nãos exaustivamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas, o estado das pessoas singulares, relações familiares e comparáveis a estas, capacidade jurídica das pessoas singulares), definindo a sucessão por morte como “abrangendo qualquer forma de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, quer se trate de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, quer de uma transferência por sucessão sem testamento”, mas apenas do caso de terem alguma conexão com outras ordens jurídicas.

Assim, o Regulamento abarca as questões de direito internacional privado em matéria sucessória, como a competência internacional das jurisdições para determinar a sucessão e a lei que lhe é aplicável, mas não regula o direito sucessório material, que continua a caber inteiramente aos Estados-Membros.

As regras relativas à competência no que diz respeito a sucessões com conexões no estrangeiro substituem-se inteiramente, nas matérias por elas regidas, às regras de competência em vigor nos Estados-Membros, com a ressalva das convenções internacionais em vigor, como prevê o artigo 75.º. Ao concretizar as exceções ao principal princípio que regula a determinação da competência, são aplicáveis mesmo que o fator de conexão ocorra com Estados não membros (cfr. É aplicável a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado-Membro. O mesmo acontece com as regras relativas à competência. Se é certo que não regulam a competência jurisdicional dos Estados terceiros, estão destinadas a substituir-se inteiramente, nas matérias por elas regidas, às regras de competência em vigor nos Estados-Membros, com ressalva das convenções internacionais em vigor (artigo 75.º)” in “Reflexos do REGULAMENTO (UE) n.º 650/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 4 de julho de 2012, na titulação em matéria sucessória” in https://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2015/45-cc-2015)

Atendendo ao objecto dos presentes autos – um inventário por óbito -, não restam dúvidas que se discute matéria objeto do Regulamento citado.

Dito, isto, voltemos ao caso que temos “entre mãos”, a de saber se o tribunal português é competente para julgar esta questão, face ao Regulamento.

Como se sabe, no campo da determinação da competência dos tribunais visou-se evitar conflitos negativos e positivos de competência, sendo mais do que um os tribunais a considerarem-se competentes para conhecer da sucessão, ou o inverso, em que nenhuma autoridade com competências jurisdicionais se considere competente decidir da situação.

O critério geral definido pelo Regulamento para decidir da questão competência internacional dos órgãos jurisdicionais foi o da residência habitual do falecido (cfr. art.º 4, do Regulamento, onde se refere “são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito”. (cfr. o considerando 23º do Regulamento “Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito”).

Este também é o critério que se segue para determinar a própria lei a aplicar ao conjunto da sucessão, nos termos do artigo 21º do Regulamento.

É certo que este critério apresenta grande inconveniente para os Estados Membros que, como Portugal, têm uma grande comunidade de emigrantes, por implicar a preterição do estatuto pessoal baseado na nacionalidade a que estão habituados, vendo como competentes órgãos jurisdicionais estrangeiros (a tradição nos países com comunidades emigrante é estabelecer o estatuto pessoal com base na nacionalidade, sendo esta que define a lei competente para a sucessão, e bem assim a jurisdição competente), pondo em causa profundas expetativas dos cidadãos destes países. (cfr. As linhas gerais do Regulamento Europeu sobre Sucessões,  Anabela Susana de Sousa GONÇALVES). (cfr. Ac. Rel. de Guimarães de 25/6/2022, proc.º n.º 511/21.4T8FAF.G1, relatado por Sandra Melo).

 Porém, são muito pouco abrangentes as exceções ao critério da residência habitual, a não que a pessoa falecida tenha escolhido a lei da nacionalidade para regular toda a sua sucessão, por declaração que revista a forma de uma disposição por morte ou resulte dos termos dessa disposição (artigo 22º do Regulamento).

Nesta fase, importará, para proteger as legítimas expetativas dos autores da sucessão originários de países que privilegiavam a lei nacional nesta matéria, divulgar as alterações produzidas com este Regulamento, dando conhecimento a todos os interessados em que o seu estatuto pessoal em matéria sucessória siga o regime da sua nacionalidade que deverão declará-lo, pela forma prevista naquele, ao efetuar uma mudança de residência para fora do seu país de origem.

No caso em apreço, a requerente do inventário, refere, entre o mais que - O falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com Portugal, pois; - Sempre manteve a sua nacionalidade portuguesa e estava inscrito no consulado português;-Todo o seu património se encontra localizado em Portugal;- Tem residência/domicilio em Portugal (Rua ..., ... ...); - Tem domicílio fiscal em Portugal; - Sempre manifestou vontade e orgulho de ser português; - Quis ser enterrado em Portugal; - Sempre manifestou vontade que fosse a lei portuguesa a regular a sua sucessão (cfr. ponto 1.6.), indicando prava sobre tal matéria.

No que concerne à definição do que se deve considerar residência habitual do falecido existe algum âmbito de liberdade, desde logo, no considerando 23 esclarece-se que “a fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.”, sendo que no considerando 24 se assume que esta determinação pode ser complexa, aceitando-se que um falecido que, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem possa não ter perdido a residência habitual no seu estado de origem, “no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social”.

Nos presentes autos, foi proferido despacho datado de 25/6/2022, a ordenar a notificação da requerente e da cabeça de casal, para virem aos autos esclarecer quanto tempo esteve o Inventariado em Portugal nos anos de 2018 e 2019 e bem assim há quanto tempo se encontrava em França aquando do seu óbito (cfr. ponto 1.7).

Em resposta referiu a requerente que, o falecido no ano de 2019 (dois meses) esteve em França nomeadamente para receber tratamento médico, antes do seu falecimento, que aconteceu em .../.../2019 e quanto ao ano de 2018, o falecido esteve a maior parte do ano em Portugal, ou seja passou mais tempo em Portugal do que na França”, (cfr. ponto 1.8), tendo, por sua vez, a cabeça de casal referido que o inventariado esteve em Portugal pela última vez no ano de 2017 durante o mês de Agosto a gozar férias de Verão, não mais tendo voltado em consequência do agravamento das suas condições de saúde que o obrigaram a ficar em França em tratamentos até ao infausto desenlace do seu falecimento (cfr. ponto 1.9).

Tendo presente ao exposto, mormente ao referido nos pontos 1.6., 1.7, 1.8 e 1.9, e ao que se deve aquilatar, para se estabelecer a residência habitual, como supra referido e plasmado no considerando 24, temos para nós, até para que o Tribunal possa decidir segundo as várias soluções plausíveis de direito, deveria ter procedido à audição das testemunhas, indicadas, podendo, inclusivamente se assim o entendesse fazer diligências, para aquilatar da residência habitual do falecido   BB.

Assim, face ao exposto, revoga-se o despacho recorrido e por acórdão, decide-se, remeter os autos à 1.ª instância, a fim de proceder à audição das testemunhas indicadas, e fazer outras diligências que entenda pertinentes, para aquilatar da residência habitual do falecido BB.

                                                           ***

                                                    4. Decisão

Nos termos expostos, decide-se por acórdão revogar a decisão recorrida, e decide-se:

i)- Remeter os autos à 1.ª instância, para proceder à audição das testemunhas, a fim de aquilatar da residência habitual do falecido BB, podendo, se assim, lhe afigurar fazer outras diligências, que entenda pertinente, para aquilatar da residência habitual do falecido BB.

ii)- Custas a final a cargo da parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito (art.º 527.º, n.º 1, do C.P.C.)

Coimbra, 10/1/2023

Pires Robalo (relator)

Sílvia Pires (adjunta)

Henrique Antunes (adjunto)