Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4999/06.5TBSTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CASO JULGADO
LIMITES DO CASO JULGADO
PEDIDO CÍVEL
PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 02/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 494.º, AL.ª I) E 493.º, Nº 2 ; 497.º, N.º 1; 498.º, N.º 1; 673.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Estão abrangidas pelo caso julgado material todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor.

2. O regime jurídico da formação do caso julgado sobre o pedido de indemnização civil em acção penal e o que regula a formação de caso julgado nas sentenças cíveis é o mesmo.

3. Assim, transitada a decisão proferida em acção penal que julgou um pedido de indemnização, ocorre a excepção de caso julgado em posterior acção civil entre as mesmas partes, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir.

4. Tendo o réu, nessa acção penal, sido absolvido do pedido cível, no pressuposto de que era proprietário de certa quantia monetária, não pode, por obediência ao caso julgado, voltar a discutir-se, em posterior acção civil, a propriedade desse mesmo dinheiro, pelo que deve ser absolvido da instância, nos termos dos artigos 494.º , al.ª i) e 493.º, nº 2 do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A....propôs na Vara de Competência Mista de Setúbal uma acção declarativa com processo ordinário contra B...., C....e D...., alegando em síntese:

A A. é herdeira única de E...., seu pai, o qual, por seu turno, foi o sucessor universal de F...., com quem foi casado em segundas núpcias de ambos; ainda em vida deste casal, a 1ª Ré convenceu aquele a declarar perante as instituições bancárias em que tinha contas abertas que consentia que ela nelas ingressasse como co-titular; no dia imediato ao do óbito da F...., as Rés e o E.... procederam ao levantamento de Esc. 12.543.501$00/€ 62.566,72 das contas bancárias que aquela F.... e este possuíam no balcão de Fátima da Caixa Geral de Depósitos, tendo aí aberto uma nova conta, tendo como titulares E.... e as 1ª e 2ª Rés, na qual procederam ao depósito da referida importância; no dia seguinte ao do óbito do E...., as Rés B.... e C.... levantaram novamente essa quantia, e voltaram a depositá-la, desta vez numa outra conta de que eram as únicas titulares, no mesmo balcão da CGD; cerca de um mês depois, a Ré B.... levantou Esc. 1.000.000$00/ € 4.987,98, correspondente ao saldo de um outra conta, sediada nas instalações de Fátima do Banco Santander, titulada pelo casal E..../F.... e por si própria; o dinheiro existente nas referidas contas era pertença exclusiva do casal E..../F...., por ser o produto das poupanças e reformas angariadas ao longo das respectivas vidas; ao contrário do que invocaram as ora Rés no processo crime que contra elas correu com base nos factos em apreço – no qual vieram a ser absolvidas - a eventual doação do dinheiro pelos falecidos E.... e F.... é nula por ter sido verbal e não ter existido tradição da coisa doada, sendo as importâncias propriedade das heranças daqueles e, por via disso, da A..
Termina pedindo a condenação das Rés a reconhecer que as quantias levantadas pelas Rés das contas abertas pelo casal E..../F.... nos estabelecimentos bancários mencionados pertencem à herança ilíquida e indivisa do primeiro e, bem a assim, a entregar à A. tais importâncias, acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação.

Contestaram a 1ª e 2ª Rés, arguindo as excepções da incompetência territorial – fundando-se na residência das contestantes na área da comarca de Fátima - e do caso julgado. Para justificarem esta segunda excepção alegaram que no processo-crime que, com base nos mesmos factos, correu contra as ora Rés, e no qual a A. foi ofendida e assistente, o pedido cível por esta formulado foi julgado sem recurso pelo Acórdão da Relação aí proferido. Além disso, impugnaram a generalidade dos factos aduzidos na petição inicial e remataram com improcedência da acção na procedência das excepções suscitadas.

Contestou separadamente a Ré D.... em termos similares aos das restantes Rés, salvo quanto à excepção da incompetência territorial, finalizando com a improcedência da acção.

Replicando, a A. refuta o caso julgado e termina como na petição inicial.

Decidida com trânsito em julgado a procedência da excepção da incompetência relativa em razão do território, e remetido o processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, veio este - em saneador-sentença - a proferir o seguinte veredicto:
"a) Julgo improcedente, por não provada, a excepção dilatória de caso julgado invocada pelas Rés.
b) Julgo procedente por provada a excepção peremptória da autoridade do caso julgado e, em consequência, absolvo as Rés B...., C....e «D....» do pedido formulado pela Autora A....".

Inconformada, desta decisão interpôs recurso a Autora, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

*

Apesar de não autonomizados na decisão recorrida, podem enunciar-se da seguinte forma os seus pressupostos de facto:

A – No processo com intervenção do Tribunal Colectivo com o n.° 347/01.9TAVNO do 2.° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém foi deduzida acusação contra as aqui Rés B.... e C.... e contra a representante da 3ª Ré, G...., imputando-lhes (a cada uma delas) a prática de factos integradores de dois crimes de abuso de confiança p.ºs e p.ºs pelos art.ºs 205, nº 4, al.ª a) e 205, nº 4, al.ª b) do C. Penal.
B – Pela assistente e ora A. A....foi deduzido pedido de indemnização cível contra as arguidas, com base na factualidade constante da acusação e em consequentes danos para tal demandante advindos, assim peticionando a condenação das arguidas /demandadas a pagar-lhe a quantia de € 79.417,73 – correspondente a € 66.019,88 de capital e € 13.397,85 de juros moratórios respectivos, contados, à taxa de 7% ao ano, desde 28/01/2000 até à data da apresentação do pedido indemnizatório cível —, a que acrescem juros de mora vincendos até ao integral pagamento.
C – De acordo com a certidão de fls. 114 e segs., neste processo consignou-se como provada, entre outra, e para o que aqui interessa, a seguinte factualidade:
"12. – O aludido E.... procedeu então (dia 28 de Janeiro de 2000, de manhã) ao levantamento dos saldos de contas bancárias de que o mesmo e a falecida F.... eram titulares na "Caixa Geral de Depósitos no valor total de Esc. 12.543.501590 (correspondente a 62.566,72 euros)
13. — Tendo assinado os respectivos talões também a primeira arguida (B....), co-titular das contas bancárias respectivas.
14. – Após, nessa mesma manhã, o aludido E.... e as duas primeiras arguidas (B.... e C....) abriram nova conta, no mesmo balcão daquela instituição bancária, com o n.° 008392/700(361), da qual consta aquele como primeiro titular, a primeira arguida como segunda titular e a segunda arguida como terceira titular.
15. – De seguida, o aludido E.... e as duas primeiras arguidas procederam ao depósito do aludido valor de esc. 12.543.501$90 (correspondente a 62.566,72 euros) na referida conta bancária.
16. – O aludido E.... veio a ser hospitalizado nesse mesmo dia, à tarde, tendo falecido a 30 de Janeiro de 2000.
17. – No dia seguinte (31 de Janeiro de 2000), as duas primeiras/) arguidas (B.... e C....) dirigiram-se ao referido balcão da "Caixa Geral de Depósitos" e procederam ao levantamento da quantia depositada na referida conta n.° 008392/700(361), tendo a primeira arguida assinado o respectivo talão;
18. – E aberto, nesse mesmo dia e local, a conta bancária n.º 8393/500, em que ambas constavam como únicas titulares.
19. – Nessa altura, depositaram a referida quantia de esc. 12.543.501$90 (correspondente a 62.566,72 euros) nesta última conta.
20. — No dia 01 de Fevereiro de 2000, a primeira arguida dirigiu-se às instalações de Fátima do "Banco Santander", em Fátima, comarca de Ourem, e, na sua qualidade de terceira titular da respectiva conta (conta solidária), liquidou tal conta bancária, n.° 001.200439501, procedendo ao levantamento, em dinheiro, do valor existente, esc. 1.000.000$00 (correspondente a 4.987,98 euros).
21. – Valor este que foi destinado para as missões católicas por uma religiosa que então exercia as funções de ecónoma da Casa de Fátima da "Congregação das Irmãs de S. Vicente de Paulo", tendo para tal fim sido utilizado.
23. – Das operações bancárias acima referidas, levadas a cabo pelas duas primeiras arguidas (B.... e C....), foi posteriormente dado conhecimento à terceira arguida, G…., a representante legal, em Portugal, da "D…".
24. – Aquando das operações bancárias acima referidas em que teve intervenção, o aludido E.... encontrava-se consciente e lúcido, agindo na intenção de os fundos supra aludidos, existentes na "Caixa Geral de Depósitos", ficarem a pertencer à congregação religiosa de que as arguidas fazem parte.
25. — Do mesmo modo, era intenção dos aludidos E.... e mulher, F...., que a primeira arguida mantivesse a qualidade de terceira titular da conta aludida no "Banco Santander' (conta solidária, com o n.° 001.200439501), por forma a que os respectivos fundos – esc. 1.000.000$00 (correspondente a 4.987,98 euros) – ficassem a pertencer também à congregação religiosa de que as arguidas fazem parte.
D – No acórdão proferido decidiu-se a final: "D) – Pelos fundamentos atrás explanados, julgar também improcedente, por não provado, nos termos também referidos, o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante/assistente contra as arguidas/ demanadas".
E – Nessa fundamentação escreveu-se que "(...) no caso dos autos foi deduzido pedido cível com fundamento em facto ilícito criminal, vindo a ocorrer absolvição das arguidas/ demandadas. Por isso, se improcede, como exposto, a causa de pedir formulada, nos termos em que o foi, pela aqui demandante (pretendia-se indemnização com base em facto ilícito criminal e civil), fundamentos não havendo para se arbitrar qualquer indemnização por facto ilícito (responsabilidade extracontratual), também é claro, já por outro lado, e à luz da jurisprudência daquele Assento — agora a dever ser entendido como acórdão fixador de jurisprudência -, que fora de causa está agora a apreciação de quaisquer questões que se prendam com eventual responsabilidade civil contratual, designadamente questões que se reportem à validade/invalidade (nomeadamente formal) da doação dos fundos das aludidas contas bancárias".
F – Deste Acórdão interpôs a assistente - e ora A. - recurso para esta Relação, em cujas conclusões, além do mais, impetrava "que se ordene a entrega à recorrente, na sua qualidade de herdeira do falecido E...., as quantias em questão".
G – O Acórdão desta Relação que recaiu sobre a decisão da 1ª instância veio a concluir: "(...) não merece censura o acórdão recorrido quando entende que não se verificam os pressupostos objectivos (a inversão do título de posse, que pressupunha a disposição de coisa alheia) nem subjectivos do crime imputado às arguidas, nem tão-pouco quando julgou improcedente o pedido de indemnização formulado e quando determinou o levantamento da apreensão do dinheiro".
H – Este Acórdão, ao tratar a indemnização civil, entendeu, porém, dever apreciar a questão da validade da doação do dinheiro utilizado pelas arguidas - ora Rés - do modo que se segue Cfr. fls. 173-176.:
"(...) invoca a recorrente as obrigações decorrentes do contrato de depósito bancário, para daí concluir pela obrigação de restituição (a ela própria, na qualidade de filha de E.... F.).
Trazendo a terreiro uma "causa de pedir" que extravasa o estrito âmbito da acção penal.
Mas que importa apreciar, uma vez que emerge, como questão relevante, como se evidenciou, para a definição da ilicitude da conduta (elementos do tipo objectivo do crime) bem como para a decisão da questão civil, suscitada pela recorrente e cuja apreciação não foi rejeitada. (...) Aqui incidindo também a questão suscitada da doação.
Ora, ficou provado que as arguidas não actuaram "contra" a vontade ou a decisão ou estipulado por algum dos co-titulares das contas, mas em perfeita consonância com a sua vontade claramente manifestada.
Não se apropriaram ou inverteram o título de posse sobre o dinheiro depositado porque lhes fora conferida a disponibilidade sobre o mesmo, dentro da afectação às finalidades da Instituição a que pertenciam e em nome de quem actuavam, que os primitivos donos do dinheiro quiseram beneficiar com os valores depositados.
Podendo dizer-se que com o depósito do dinheiro em conta as arguidas foram autorizadas a movimentar a totalidade dos valores ali depositados, houve efectiva tradição dos valores depositados para a esfera jurídica destas – autorizadas também, pela natureza das contas, a movimentar, por si sós, todo o dinheiro ali depositado.
Ao titular os depósitos em nome das arguidas, com determinada finalidade, colocaram os respectivos valores na sua disponibilidade, havendo tradição para a sua esfera jurídica. E a doação de dinheiro, com tradição, não está sujeita a forma especial – art.º 947°, n.°2 do C. Civil (...).
Houve assim uma doação do dinheiro, em vida, reservando apenas os falecidos a co-titularidade das contas, enquanto vivos.
Doação remuneratória, prevista no art. 941° do C. Civil, a quem deles cuidou quando mais necessitaram, recompensando a Instituição a que as arguidas pertenciam com o dinheiro guardado para a velhice quando sentiam aproximar-se a hora em que dele deixariam de necessitar.
Tanto mais que se provou que era essa a vontade claramente manifestada dos primitivos donos dos valores depositados, assim recompensando a Congregação pelo amparo/carinho/sustento/lar/cuidados prestados.
Refere a assistente que não houve aceitação da doação.
Mas, nos termos do artigo 945° n.°2 do C. Civil, a tradição é havida como aceitação. Pelo que mesmo do ponto de vista estritamente contratual a actuação das arguidas se encontra materialmente legitimada, por validamente transferido o dinheiro, por título translativo, para a sua esfera jurídica.
Não podendo falar-se em inversão do título de posse e consequentemente de acto ilícito.
Assim caindo o elemento objectivo do crime e, do mesmo passo, do pedido de indemnização civil".
I – O Acórdão desta Relação aludido nas alíneas precedentes transitou em julgado.

*

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva minuta alegatória – e que vêm a delimitar o objecto do recurso, ex vi do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº1 do CPC, na redacção aplicável - a recorrente levanta basicamente duas questões:

1º - A de saber se o caso julgado formado pela decisão final do processo-crime incluiu um juízo sobre a validade e eficácia da doação impugnada nesta acção, designadamente através das premissas que conduziram à improcedência do pedido de indemnização civil ali deduzido.
2º - A de saber se mesmo a verificar-se essa autoridade de caso julgado ela é extensível à 3ª Ré, que ali não teria intervindo.

A apelada Província Portuguesa respondeu, terçando pela confirmação do saneador sentença.



Quanto à primeira questão.

A decisão ora sob censura construiu o seguinte silogismo:

"Desde já se afirma que se afigura no caso dos autos não se verificar a aludida excepção dilatória Refere-se o M.mo Juiz à excepção dilatória do caso julgado, tal com está prevista nos art.ºs 493, nº 2 e 494, al.ª i) do CPC.. (...)
Ou seja, no âmbito do pedido de indemnização civil formulado pela Autora a causa de pedir assentou na responsabilidade extra-contratual com base na prática de um facto ilícito de natureza criminal, culminando com um pedido de indemnização por danos de natureza patrimonial.
Nos presentes autos a Autora funda o seu direito na nulidade por vício de forma da doação feita pelo seu pai e madrasta às Rés, pedindo, em consequência, a reposição da situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado, ou seja, a devolução á herança de seu pai das quantias doadas.
Assim, no pedido de indemnização civil a causa de pedir consiste na apropriação abusiva do dinheiro e na presente acção na nulidade do contrato de doação.
Improcede, deste modo, a excepção dilatória de caso julgado, invocada.
Da Autoridade do Caso Julgado.
Questão distinta é a da autoridade do caso julgado, ou seja, da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos da qual aquele Tribunal afirmou, de modo expresso e claro, que a doação feita pelo pai e madrasta da Autora às aqui Rés é perfeitamente válida e eficaz (...).

Esta distinção não pode colocar-se nos termos em que o fez o M.mo Juiz recorrido.

Na verdade, Já ensinava o Professor ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pp. 92/93, que não é possível criar duas figuras distintas – o caso julgado excepção e a autoridade do caso julgado -, pelo que está errado quem entenda que «o caso julgado pode impor a sua força e autoridade, independentemente das três identidades mencionadas no art. 502°» (actual 498.°).
O que acontece, segundo a lição do eminente professor, é que «o caso julgado exerce duas funções: - a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades».

No caso vertente o M.mo Juiz estava confrontado com um pedido de indemnização civil deduzido em acção penal em que era demandante a aqui Autora e demandadas as Rés B.... e C.... e também a representante da aqui 3ª Ré, Domicilia Maria Guiomar.

Dispõe o art.º 84 do Código de Processo Penal sob a epígrafe Caso Julgado que "A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis".

Como se sabe, em processo penal vigora o princípio de adesão, por força do qual "O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei" (art.º 71 do CPP).
Procurando clarificar o âmbito da indemnização a atribuir na acção penal ao abrigo do mencionado art.º 71 do CPP, o Assento n.° 7/99 do STJ (Proc.° n.° 993/98), in DR, I série – A, de 03/08/1999, fixou a jurisprudência segundo a qual "Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377. °, n. °1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual".
Destas considerações emerge, assim, por um lado, a natureza extracontratual da indemnização a apreciar em processo penal e, por outro lado, a formação do caso julgado em termos idênticos aos regulados pela lei para "as sentenças civis".

Donde que para aquilatar da possibilidade da formação do caso julgado pela decisão daquele pedido de indemnização no processo penal – tanto da excepção - força de caso julgado como da excepção - autoridade do caso julgado – se impusesse inexoravelmente ao tribunal a prévia averiguação da tríplice identidade estabelecida no art.º 498 do CPC.
É que, de harmonia com o preceituado nos artigo 497.°, n.° l, e 498.°, n.° l, do Código de Processo Civil, a excepção do caso julgado tem como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, repetindo-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Esta excepção do caso julgado, entendida com o duplo sentido acima mencionado, ou seja, abarcando a própria autoridade do caso julgado, tem sempre como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – artigo 497.°, n.° 2, do mesmo diploma.
O esclarecimento do disposto no n.° l do artigo 498.° já citado é nos fornecido pelos n.ºs 2 a 4 da mesma norma:
"2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (...)".

O saneador sentença em crise considerou que não haveria identidade de causas de pedir entre entre os dois processos. No processo criminal a causa de pedir corresponderia à "apropriação abusiva do dinheiro" ao passo que nesta acção ela consistiria na "nulidade do contrato de doação". Com isto não podemos concordar. Se mais não fosse porque a expressão "apropriação abusiva" poderá traduzir uma realidade do foro penal, mas não reveste qualquer adequação ao direito civil, visto que não permite a especificação do direito subjectivo concretamente violado.

A causa de pedir, por virtude da teoria da substanciação que vingou no nosso direito processual civil, não é senão o título (facto jurídico) em que se baseia o direito do autor. E no nº 4 do art.º 498 do CPC diz-se expressamente que nas acções reais, ou seja, nas acções destinadas a fazer valer um direito real, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real, tal como nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido Exemplificando A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 1984,p. 693) escrevem: "na acção de reivindicação por exemplo, destinada a fazer valer o direito de propriedade do autor contra o terceiro possuidor da coisa, começa por se exigir (de acordo com o ensinamento da teoria da substanciação), além da indicação do direito cujo reconhecimento se pretende e do efeito que se quer obter, a menção do facto concreto (a compra, a doação ou a deixa testamentária, associadas à titularidade do direito do transmitente, ou a ocupação, a acessão, a usucapião, etc.) que serve de base ao pedido". .
Sucede que, diversamente do que vem sustentado na decisão impugnada, a causa de pedir desta acção é real e não obrigacional, porquanto a A. e apelante visa apenas o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o dinheiro que constava dos saldos bancários identificados, pretendendo a restituição ou entrega do mesmo pelas Rés, para quem são meras detentoras ilegítimas. As referências da petição inicial à doação e respectiva invalidade (nulidade) constituem simples antecipação relativamente à previsível defesa das demandadas, ancorada na tese sufragada pelo Acórdão penal supra transcrito em G a I dos factos provados. A Autora nega qualquer acto translativo da propriedade do dinheiro, mas, para a hipótese de ele ter existido, desde logo avança que o mesmo estaria ferido de nulidade.
Sendo então a causa de pedir o facto jurídico concreto que alicerça ou substancia o efeito pretendido, ela é integrada na presente acção pela alegação do direito de propriedade invocado, conjugada pela detenção (indevida e sem título) das Rés. Não consiste, como se assevera na decisão, na nulidade por vício de forma da doação . Aliás, se assim fosse, seria de esperar que no pedido se viesse requerer em primeira linha a declaração de nulidade desse negócio, o que, como se viu, não foi o caso.
Nesta conformidade, a causa de pedir utilizada para a vertente acção pela A. A....está totalmente contida na causa de pedir do pedido de indemnização civil a que se tem vindo a aludir.
Estribada na factualidade penal da acusação deduzida no processo-crime, esta causa de pedir assenta no exclusivo direito de propriedade da aí assistente e aqui A. sobre o dinheiro depositado nas contas bancárias em causa e, bem assim, na conduta lesiva desse direito das ali arguidas, justificativa da natureza ilegítima da respectiva posse. Foi sobre esses pressupostos que a ora A. erigiu o pedido de indemnização civil naquela acção penal. Donde que se tenha de reconhecer que há uma sobreposição perfeita de ambas as causas de pedir.
Mas – ainda ao invés do entendido na 1ª instância – também ocorre identidade dos pedidos deduzidos nas duas causas.
Definindo-se o pedido como o efeito jurídico a que tende a acção, mediante a correspondente declaração do autor na petição, há que convir que os efeitos visados nas duas causas coincidem, porque em ambos se procura obter a condenação das demandadas na reintegração do património da demandante com os mesmos valores que saíram das contas bancárias em discussão em ambos os processos.
Na verdade, "os danos de natureza patrimonial" - como são qualificados no saneador sentença - no montante de € 66,019,88 de capital – a que acrescem os juros de mora – peticionados pela assistente A....no processo-crime, correspondem praticamente à soma dos montantes dos saldos levantados pelas Rés Explicando-se a pequena discrepância entre os capitais pedidos dado no processo-crime apenas ter sido apreendida às arguidas a importância de € 61.031,90, saldo da conta nº 8393/500, titulada em nome das 1ª e 2ª Rés, conforme o facto aí provado em 26., a cuja propriedade a ora A. se arroga nos presentes autos.
Verifica-se, deste modo, a identidade dos pedidos.
Por último, também não se nos afigura que haja diferenciação, do ponto de vista da qualidade jurídico-substantiva, entre as partes em ambos os processos.
No que concerne à A. e às Rés B…. e C....a identidade física e jurídica é absolutamente indiscutível.
E no que diz respeito à aqui Ré D…… ?
Há que admitir que – conforme resulta da certidão de fls. 114 e seguintes - quem foi efectivamente demandada no processo comum colectivo nº 347/01.9TBAVNO de Ourém foi a aí arguida G.... e não a aqui Ré D…... Mas deflui da mesma certidão que a demanda desta como parte civil se direccionou para o seu estatuto de representante legal da dita D…., sendo certo que apenas se veio a provar a intervenção da mesma nos factos nessa precisa qualidade jurídica. Com efeito, é isso que emerge do acervo fáctico apurado:"23. — Das operações bancárias acima referidas, levadas a cabo pelas duas primeiras arguidas (Olema e Lucinda), foi posteriormente dado conhecimento à terceira arguida, Domicília Maria Guiomar, a representante legal, em Portugal da Província Portuguesa das Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo". 27. – As arguidas Olema e Lucinda agiram na convicção de que era vontade dos aludidos Francisco Fernandes e mulher Joaquina do Carmo Fernandes, que os fundos de contas bancárias supra aludidos ficassem a pertencer à congregação religiosa de que as arguidas fazem parte, já que aqueles manifestavam verbalmente ser essa a sua intenção por tal congregação os ter acolhido e deles cuidar gratuitamente até à respectiva morte.28.- Disso deram as arguidas Olema e Lucinda conhecimento à terceira arguida, Domicília Maria Guiomar, nos termos aludidos supra em 23". Ora, nos termos do art.º 498, nº 2 do CPC, a identidade das partes afere-se tendo em conta a sua qualidade jurídica. A apreciação da actuação da demandada G....só foi invocada por esta ser a representante da ora Ré Província, pelo que também a sua defesa correspondeu a essa situação jurídica. Daí que haja risco real de se incorrer no desprestígio de contradizer a anterior decisão, caso se consinta um novo veredicto em nova causa instaurada contra a pessoa colectiva D…., agora representada pela mesma G…. .
Daí que seja de concluir que in casu está presente a tríplice identidade que é requisito do caso julgado e da respectiva autoridade.

Como se deixou expresso o acento tónico do recurso é posto pela apelante nos limites objectivos da autoridade de caso julgado produzido pelo Acórdão desta Relação sobre o pedido de indemnização civil aludido nos factos provados.
Para o M.mo Juiz a quo "apesar de o teor dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra consistir na manutenção integral da decisão da primeira instância, o certo é que, nos seus fundamentos deu resposta à questão aqui suscitada pela Autora, e que foi por si colocada em sede do processo de natureza criminal aquando das suas alegações recursivas". Sufragando a tese de que goza da autoridade do caso julgado a "decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado", o mesmo Magistrado considerou dessa maneira decidida a questão da validade /invalidade formal da doação do dinheiro depositado nas contas de E.... e F.....

Dissentindo da amplitude da autoridade do caso julgado que foi conferida no saneador sentença ao mencionado Acórdão desta Relação, a apelante obstaculiza que a questão da doação não foi antecedente ou premissa da decisão de improcedência da indemnização, limitando-se o mesmo aresto a confirmar o teor do Acórdão da 1ª instância.
Mas, segundo cremos, esta visão não tem respaldo nos factos, como não respeita a configuração dos limites objectivos do caso julgado.
Sem respaldo diante da materialidade fáctica, porquanto se vê do facto da alínea H – cfr. fls. 173 dos autos – que, em clara divergência da posição assumida pelo recorrido Acórdão da 1ª instância, a Relação entendeu necessária para a análise da questão civil a incursão na questão atinente às obrigações do contrato de depósito bancário e, posteriormente, na respeitante à validade e efeitos da doação do dinheiro. E tratando esta última havia até de concluir que a mesma foi válida do ponto de vista substantivo e formal, assim caindo o elemento objectivo do crime e, do mesmo passo, do pedido de indemnização civil – cfr. o excerto da fundamentação ínsito no facto provado em H.
Mas ainda sem fidelidade à extensão do julgamento efectivamente produzido.
Das precedentes considerações deflui que, não apenas a questão da doação do dinheiro, como sobretudo da translação da respectiva propriedade do património dos falecidos E.... e F...., de quem agora a A. se arroga herdeira universal, foi largamente dilucidada pela Relação, tendo em vista a fundamentação do veredicto sobre a improcedência do pedido de indemnização.
O que, corroborando a tese do saneador sentença de que a questão da doação do dinheiro foi tratada no processo criminal, também evidencia que o foi a questão mais abrangente da actual propriedade do dinheiro - partindo dos falecidos titulares das contas acima identificadas – ambos os temas abordados e decididos como antecedentes lógicos do silogismo judiciário que se fechou na improcedência do pedido de indemnização.
Subscrevemos aqui a concepção mais ampla dos limites objectivos do caso julgado – e da respectiva autoridade – que foi também a perfilhada no saneador sentença recorrido, pelas razões que a seguir se expendem.
As sentenças (e os acórdãos, bem com as demais decisões judiciais de fundo) constituem caso julgado nos precisos limites e termos em que julgam – artigo 673.° do Código de Processo Civil. Não faltou quem entendesse que o caso julgado se formava "directamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu, através da reconvenção)" sendo a "resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força do caso julgado". E que essa força "cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta" ANTUNES VARELA, J. M. BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Lições de Processo Civil, 2.a ed., Coimbra, 1985, p. 712. .
Mas já Rodrigues Bastos alertava Notas ao Código Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 1972, p. 253. - sobre a extensão objectiva do caso julgado - para a circunstância de a posição predominante se revelar favorável a uma mitigação do conceito, devida à influência de um parte da doutrina italiana, no sentido de, considerando embora o caso julgado restrito à parte dispositiva da sentença, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de decidir como premissas da conclusão firmada Concepção alargada que viria a ser adoptada por MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, p. 317, VAZ SERRA, RLJ, ano 110.°, p. 232, TEIXEIRA DE SOUSA, Rev. Dir. Est. Sociais, 1977, pp. 309/316 e pelos Ac.s do STJ de 29.9.76, BMJ n.° 258, p. 220, de 24.11.77, RLJ, ano 111.°, p. 198, de 20.6.78, BMJ n.° 278, p. 149, de 21.2.80, BMJ nº294, p. 258, de 9.6.89, BMJ n.° 388, p. 377, entre outros..
Esta concepção veio a ser lapidarmente sintetizada no Ac. do STJ de 5/05/2005, no proc. N.° 05B602, inserto em www.dgsi.pt , com a doutrina de que ""todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, estão compreendidas na expressão precisos termos em que julga, contida no art. 673.°, do Cód. Proc. Civil, ao definir o alcance do caso julgado material, pelo que também se incluem neste."
Por conseguinte são de rejeitar as conclusões da apelação quanto a esta questão.




Relativamente à questão da inoponibilidade do julgado na acção penal à 3ª Ré.

Esta questão já mereceu adequada abordagem a propósito da verificação da presença da identidade dos sujeitos, sob o ponto de vista substancial, nas duas decisões em confronto. Tendo sido aí considerado que esta Ré foi adequadamente representada no processo de natureza criminal através da demandada G…., há que inferir que o julgado nesse processo, por ter sido efectivamente dirigido a essa demandada como sua representante, vale também quanto a ela, que se pode aproveitar dos respectivos efeitos.
Pelo que também não são de acolher as conclusões que se reportam a esta questão.


Por último, a decisão recorrida qualificou a excepção como excepção peremptória da autoridade de caso julgado.
Ora o Código não distingue entre o efeito dilatório e peremptório do caso julgado, que, como se viu, é uma única figura com duas funções.
Daí que face ao teor dos art.ºs 494 e al.ª i) do art.º 493, nº 2 do CPC, não se veja outra solução que não a da absolvição das Rés da instância.

Pelo exposto, julgam apelação parcialmente procedente, e, em função disso, revogam o saneador sentença, nos termos explanados, julgando procedente a excepção dilatória do caso julgado e, em consequência, nos termos dos art.ºs 494, al.ª i) e 493, nº 2 do CPC, absolvem as Rés da instância.
Sem custas, uma vez nenhuma das partes deu causa à parcial procedência da apelação.