Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
597/00.5TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CRIME DA VIOLAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
Data do Acordão: 07/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 250º CP
Sumário: 1. No crime de violação da obrigação de alimentos o que é essencial reter e que confere dignidade penal à conduta, permitindo ultrapassar o princípio da intervenção mínima, é o desvalor resultante da colocação em perigo de direitos fundamentais do alimentando.
2. O simples incumprimento da obrigação alimentar, em si mesmo, apenas tem conteúdo económico ou seja, é uma dívida civil.
3. Por isso, a colocação em perigo das necessidades fundamentais do alimentando é o elemento fulcral do tipo em questão.
4. Não é pelo facto de alguém se substituir ao obrigado não cumpridor na satisfação das necessidades dos alimentandos que deixa de ter existido o perigo exigido pelo tipo, não sendo necessário que o progenitor guardião ou qualquer outro terceiro se abstenha de intervir, aguardando a verificação do dano para então, se poder concluir pela verificação do perigo típico.
5. Este ocorre logo com o incumprimento da decisão provisória,
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO


No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Pombal, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, o arguido J..., divorciado, empregado de comércio, residente em Ranha de Baixo, Pombal, a quem era imputada a prática, em autoria material e concurso real, de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348º, nºs 1 e 2 do C. Penal com referência ao art. 391º do C. Processo Civil, de um crime de falsificação de estado civil, p. e p. pelo art. 248º do C. Penal, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, b) e 3 do C. Penal e de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. pelo art. 250º, nº 1 do C. Penal.

A assistente M… deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 25.700, acrescida de juros legais desde a data da notificação do pedido e até integral pagamento.

Por acórdão de 26 de Janeiro de 2009, foi o arguido absolvido da prática dos imputados crimes de falsificação de estado civil e de violação da obrigação de alimentos, e condenado, pela prática do imputado crime de desobediência qualificada, na redacção anterior à da Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, na pena de 140 dias de multa, pela prática do imputado crime de falsificação de documento, na mesma redacção, na pena de 120 dias de multa, e em cúmulo, na pena única de 200 dias de multa à taxa diária de € 10 perfazendo a multa global de € 2.000.
Foi ainda o arguido absolvido do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

*

Inconformada com o acórdão dele recorre a assistente, formulando no termo da respectiva motivação as conclusões que se transcrevem:
“ (…).
1ª. O presente recurso versa a impugnação de matéria de facto e de direito, compreendida nos poderes de cognição do tribunal ad quem e restringe-se à parte da decisão que absolveu o arguido J… da prática do crime de violação da obrigação de alimentos por que tinha sido pronunciado e ainda da absolvição do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante cível, pugnando-se pela sua revogação.
2ª. Procedendo-se a julgamento, concluiu o Colectivo de Juízes do Tribunal Judicial de Pombal pela verificação de todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo com excepção de que, com a omissão da obrigação do arguido, ter sido posta em perigo a satisfação, sem o auxílio de terceiros, das necessidades fundamentais dos titulares do direito a alimentos.
3ª. A recorrente não se conforma com este entendimento por a instância ter feito incorrecta apreciação critica dos factos submetidos a julgamento – ultrapassando, largamente, os seus incontornáveis poderes de livre convicção – e também por deficiente interpretação da norma jurídica violada (até em termos meramente conceituais) do que viria a resultar uma decisão pouco clara, desadequada e injusta.
Na realidade,
4ª. Decorre do corpo do artº 250º do Cód. Penal que o legislador não teve o propósito de incriminar toda e qualquer omissão do dever de alimentos mas apenas aquelas que, pela sua gravidade, ponham em perigo (perigo concreto) as necessidades fundamentais do alimentando. Todavia, nesta indagação, não deve ser-se particularmente exigente, aceitando-se a sua verificação sempre que a omissão comprometa ou afecte, ainda que em grau não elevado, a satisfação dessas necessidades.
5ª. A expressão "legalmente obrigado"constante do mesmo normativo, compreende não só aqueles que tenham sido condenados a pagar alimentos em resultado de uma sentença com trânsito em julgado mas também os que estejam vinculados à prestação de alimentos apenas por força da lei civil. Porém, quando existe uma condenação, haverá forçosamente um credor de alimentos necessitado e, por maioria de razão, se essa condenação tiver sido precedida de outra provisória – o que encerra um juízo de premência sobre a necessidade de satisfação dessa prestação – maior será, naturalmente, o perigo de insatisfação em caso de omissão.
6ª. Em termos conceituais, o ilícito por que o arguido foi pronunciado é um crime de perigo concreto, ou seja, o perigo é, ele próprio, um elemento do tipo, sendo necessária a sua verificação concreta para se poder dizer que ocorreu o crime. Os crimes de perigo serão, assim, também crimes de resultado, mas não de resultado de dano, mas de resultado de perigo. É a situação de perigo para um concreto bem jurídico que constitui o resultado da acção criminosa, sendo indiferente se, no caso, inexistiu dano.
E não será pelo facto de alguém se substituir ao obrigado pela satisfação das necessidades dos menores que deixa de ter existido (ou até de ainda subsistir) o perigo para a sua alimentação, saúde, habitação, educação e instrução. Muito menos será necessário que o progenitor guardião ou quaisquer outros terceiros se abstenham de intervir, aguardando pela ocorrência do dano, para só então se poder concluir pela efectiva existência de perigo para a satisfação das necessidades básicas dos menores.
7ª. O perigo cria-se no momento em que a prestação de alimentos foi omitida, uma vez que só o seu cumprimento pontual permite ao progenitor que tem a guarda programar com eficácia a satisfação dessas necessidades, perigo que será maior ou menor de acordo com as disponibilidades reais do progenitor guardião. Nem será certamente necessária a intervenção de terceiros ou desmedidos sacrifícios do progenitor a quem está acometida a guarda do menor, no sentido de obstaculizar à produção do dano, para só então se poder concluir que existe perigo de insatisfação das necessidades básicas dos alimentandos.
8ª. No caso em apreciação, o perigo de insatisfação das necessidades fundamentais dos menores X... e K... ocorreu a partir de 25/09/2000, data do vencimento da obrigação alimentar que o arguido foi condenado a satisfazer, decorrente da decisão provisória proferida no mencionado processo de regulação do exercício do poder paternal, só não tendo ocorrido dano substancial para os menores pela intervenção da avó materna que ajudou a recorrente financeiramente e com géneros alimentares, do tio paterno, que pagou ao sobrinho as explicações de matemática e, em última análise da própria mãe que foi forçada, a partir de Março de 2003, a ter duas ocupações, que lhe tiram (e tiram), no mínimo, 13 horas por dia, para proporcionar aos menores uma vida apenas normal.
9ª. Aliás, ressalvado o respeito devido, a sujeição da recorrente a um horário de trabalho desumano e absurdo, com renúncia a qualquer qualidade de vida e à companhia e acompanhamento de seus filhos – ela que, anteriormente ostentava um trem de vida médio-alto – não pode deixar de fazer presumir a iminência de insatisfação das necessidades básicas de seus filhos, o que legitimaria, na falta de outras provas definitivas – o que nem sequer é o caso – o recurso à prova por presunção, claramente admitida no processo penal, onde são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do CPP) que teria permitido ao tribunal a quo de um conjunto de factos conhecidos – todos os que obtiveram resposta positiva – afirmar um facto desconhecido.
10ª. O Colectivo de Juízes do Tribunal Judicial de Pombal não concluiu pela ocorrência de perigo de insatisfação das necessidades básicas dos menores X... e K... por ter feito errónea apreciação da prova, chegando mesmo a contrariar as regras da lógica e da experiência e a retirar relevância probatória de alguns dos factos apreciados, cometendo, neste particular, erro de julgamento.
Efectivamente,
11ª. reportando-se o início da omissão do arguido ao ano de 2000 e tendo a audiência de discussão e julgamento ocorrido apenas nos princípios de 2009, havia que apreciar esses factos atendendo à sua cronologia. Não foi o que aconteceu, fundamentando a decisão recorrida a sua tese mediante o acolhimento de um conjunto de situações fácticas que sendo embora em grande parte verdadeiras, porque desenquadradas do seu tempo real, importam conclusões distorcidas e menos verdadeiras.
12ª. Atentemos, com recurso aos factos que o tribunal a quo considerou provados, a sucessão cronológica das situações apreciadas na decisão sob recurso:
- no decurso do ano 2000, a ora recorrente propôs acção de divórcio litigioso contra o ora recorrido, vindo esse divórcio a ser convertido em divórcio por mútuo consentimento no dia 02/04/2002 (item 21 de factos provados);
- durante o período dessa pendência processual, os seus sujeitos processuais estiveram separados de facto (item 22);
- por sentença de 02/05/2002, foi ora recorrido condenado a pagar a título de alimentos para seus filhos menores a importância mensal de Esc. 50.000$00, respeitando Esc. 25.000$00 a cada filho (item 14, 11 parte);
- essa pensão alimentar, embora de montante inferior (Esc. 20.000$00 para cada filho) era devida desde 25/09/2000, em resultado de condenação provisória sentenciada no âmbito do mesmo processo de regulação do exercício do poder paternal (item 14, in fine e item 9 da decisão definitiva junta por certidão de fls. 706) ;
- muito embora se tenha dado como provado que o recorrido pagou os alimentos em dívida até Junho de 2002 (item 15), ocorreu nessa parte da decisão manifesto erro de julgamento como se explicita pormenorizadamente em sede de motivação e o documentam exuberantemente os escritos juntos com particular relevância para a sentença que graduou o crédito reclamado pela Fazenda Nacional – que era de montante superior ao depósito efectuado – antes da quantia exequenda (cfr. fls. 759), condicionalismo que o tribunal a quo não levou em linha de conta, alcançando uma conclusão errada, podendo afirmar-se com total segurança que, apesar de condenado, até hoje, o arguido nada pagou para alimentos de seus filhos;
- a partir do ano de 2003, o menor X... viveu, pelo menos um ano com o pai e a menor K... viveu com o pai quase em permanência (item 23), com o esclarecimento (obtido em sede de factos não provados), que se não provou que durante o tempo em que os menores viveram com o pai, este custeasse todas as despesas;
- após o encerramento dos talhos (o que ocorreu poucos meses depois da sua "entrega" à recorrente ordenada por sentença que transitou em julgado no dia 24/11/2002 (item 1º), a recorrente trabalhou, primeiro, como empregada de balcão ao serviço de "FB…, Lda" e, depois, como empregada de mesa num restaurante (item 26, 1ª parte); e
- em 2003, a recorrente passou a ter dupla ocupação, sendo uma delas, a tempo parcial, numa loja de roupas (item 26, 2ª parte).
13ª. Os factos com relevância criminal serão os constantes da acusação e, obviamente, ocorridos até à data em que esta foi deduzida (03/01/2005), uma vez que a instrução é a mera confirmação judicial desta, nenhuma factualidade nova encerrando e só relativamente a esses factos o arguido teve oportunidade de exercer direito de defesa.
14ª. Legítimo será assim concluir que, no caso em análise, os factos passíveis de censura criminal serão os ocorridos entre 25/09/2000 e 03/01/2005, com particular acuidade até ao início do ano de 2003 por duas ordens de razões: por um lado, é pacífico que até esta altura, com ressalva das visitas, nunca o arguido teve duradouramente os filhos consigo, não sendo, por isso, invocável qualquer atitude sua no sentido de obstar ao perigo de insatisfação das necessidades dos menores; por outro lado, nessa altura, a situação de necessidade terá atingido a dimensão de rotura, o que levou a recorrente, com renúncia ao seu bem-estar e privação da companhia e acompanhamento de seus filhos, a procurar outro emprego, sujeitando-se a um horário desumano e aberrante.
15ª. O Acórdão recorrido, extrapolando factos, nega o perigo de sobrevivência dos menores pela aparência de um padrão de vida alegadamente acima da média detectado pelo IRS entre Março e Outubro de 2001, referenciando exteriormente pela utilização dos serviços de uma "empregada pessoal" (o que no processo de regulação do poder paternal foi assumido, custeada pela avo materna dos menores) e por a recorrente, segundo informação do namorado, auferir mensalmente cerca de 1.000 euros, valor salarial reportável ao ano de 2009 (não sendo crivei que numa altura em que o salário mínimo nacional praticado era de 356,60 euros, a recorrente trabalhando como empregada de mesa ou de balcão atingisse esse nível retributivo.
16ª. Recusa-se ainda o risco de subsistência dos menores dado que as ajudas da avó materna se terem resumido a bens alimentares de cultivo próprio, ao contrário do que decorre do sentido da prova gravada (refere-se "sentido" dada a deficiente qualidade da gravação no tocante ao depoimento dessa testemunha, alcançando diverso entendimento da intervenção dos sujeitos a quem competia a instância, nomeadamente, o Sr. Procurador Adjunto e o Advogado signatário).
17ª. O Acórdão recorrido devia ter condenado o arguido como demandado cível no pedido de indemnização civil deduzido pela recorrente na medida em que ao factos constitutivos do pedido formulado configuram ilícito civil emergente de responsabilidade civil extracontratual na linha do Assento nº 7/99, de 17/06 que uniformizou jurisprudência nessa matéria.
18ª. O recorrido, pela sua personalidade e modo de estar na vida, vela-se um ser eminentemente anti-social, incapaz de acatar ou dar cumprimento a qualquer decisão judicial em tudo que lhe seja desfavorável ou implique sacrifícios; os autos dão conta da sua desobediência à decisão cautelar que lhe retirou a administração dos bens do património comum do dissolvido casal; não paga, nunca pagou quaisquer alimentos aos filhos, recusa-se a aceitar o regime de visitas estabelecido na acção de regulação do exercício do poder paternal; apesar de advertido solenemente para a eventual prática do crime de desobediência, recusou-se reiteradamente a fazer a entrega de sua filha K... à mãe. A verdade é que, pelo menos até ver, o crime tem compensado.
19ª. O Acórdão recorrido violou, entre outras, os dispositivos dos artºs 129º e 337, nº 1 do Cód Proc. Penal e 250º do Cód. Penal, pelo que deve ser revogado o substituído por outro pela prática do crime de violação da obrigação de alimentos e no pedido cível formulado, como é da mais elementar JUSTIÇA!
(…)”.
*

Respondeu ao recurso o Digno Procurador da República junto do Círculo Judicial de Pombal formulando no termo da respectiva contramotivação as conclusões que se transcrevem:
“ (…).
1 – Apesar de dos autos resultarem como verificados todos os elementos típicos constitutivos do crime de violação da obrigação de alimentos, na sua redacção actual, o mesmo não se dirá no que concerne ao âmbito da previsão legal em vigor à data da prática dos factos.
2 – Já que, para que aquele se verificasse, depara-se-nos tornar-se necessário demonstrar que a conduta do agente pusesse em causa a satisfação, sem auxílio de terceiros, das necessidades fundamentais dos titulares do direito a alimentos.
3 – Todavia, nos presentes autos, não se provou que tais necessidades não fossem garantidas apenas pelos rendimentos da pessoa à guarda de quem estavam, ou seja, da recorrente.
4 – Pelo que não se encontrarão preenchidos todos os elementos típicos constitutivos do ilícito em causa.
5 – Termos pelos quais se deverá manter incólume o acórdão recorrido, negando-se provimento ao recurso.
Todavia em alto critério de V.ªs Ex,ªs irão ponderar. Justiça.
(…)”.
*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual, acompanhando a argumentação do Ministério Público junto da 1ª instância, conclui pelo não provimento do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pela assistente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- O erro de julgamento por errónea apreciação da prova;
- O preenchimento do tipo do art. 250º, nº 1 do C. Penal;
- A condenação no pedido de indemnização civil.
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Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:

A) No acórdão foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1. Nos autos de Providência Cautelar que, com o nº 336/00, correram termos pelo 1º Juízo deste Tribunal de Pombal, por decisão transitada em julgado em 24.11.2000, nos quais o arguido era requerido e requerente sua esposa, M..., ora assistente, foi decidido "… suspende-se o requerido do exercício da administração dos bens comuns do casal, concretamente os estabelecimentos que integram o património comum até à decisão do inventário para partilha dos bens do casal, devendo, durante o mesmo período abster-se de praticar ou perturbar o normal funcionamento de tais estabelecimentos, designadamente de neles ingressar e de contactar com fornecedores e clientes para assuntos com eles relacionados, mais devendo indicar o paradeiro da camioneta Volvo de matrícula 00-00-FF afecta à gestão de tais estabelecimentos".
2. O ora arguido foi notificado de tal decisão, pessoalmente, em 13 de Novembro de 2000.
3. Apesar disso, logo no dia seguinte, 14 de Novembro de 2000, dirigiu-se a um dos dois estabelecimentos de talho do casal, sito na Rua H…, nesta cidade de Pombal, do qual retirou diversos dossiers, cujo conteúdo não foi possível apurar, que levou consigo.
4. Nesse mesmo dia 14, contactou os três empregados dos talhos.
5. Estes não chegaram a trabalhar sob as ordens da assistente por razões não concretamente apuradas.
6. Para além disso, o arguido contactou diversos clientes dos talhos e disse-lhes que tinha havido uma mudança, pelo que a partir daquela altura seria ele a fornecê-los directamente, o que fez nomeadamente com o centro de dia Dr. J…, sito em Santiago de Litém, o qual deixou de encomendar carne, a partir desse momento, quer aos talhos dirigidos pela assistente, quer ao arguido.
7. A partir de 15.11.2000, o arguido encomendou em seu nome individual, aos matadouros, a carne de que necessitava para revenda.
8. O arguido nunca indicou o paradeiro ou entregou a camioneta Volvo identificada em 1, apesar de solicitado para tal.
9. O arguido agiu da forma descrita nos pontos 3 a 5 sabendo que a gestão dos talhos havia sido atribuída à sua esposa pela decisão acima referida, e que, nos termos da mesma, deveria abster-se de perturbar o normal funcionamento dos estabelecimentos.
10. Em 14.02.2001, o arguido constituiu uma sociedade unipessoal por quotas com o objecto de "produção, importação, exportação, representação comércio de produtos alimentares", sob a firma «F. R…, Lda».
11. Na escritura de constituição dessa sociedade, celebrada no Cartório Notarial de Ansião, com vista à sua identificação pessoal, o arguido exibiu a sua carta de condução com o nº 10051688, que havia sido emitida no dia 14.07.1993, pela Direcção Geral de Viação do Centro, declarando perante a respectiva Notária ter o estado civil de divorciado.
12. Ao produzir falsa declaração quanto ao seu estado civil perante a Notária, sabendo que tal falsidade seria adequada a introduzir alterações no mundo jurídico, visava o arguido poder dispor livremente da única quota da sociedade então constituída, não permitindo que a ofendida viesse a beneficiar dos ganhos daí decorrentes por os não fazer comunicar ao património do casal.
13. O arguido sabia perfeitamente que a esse tempo era casado com a assistente, e que, sendo casado, não podia declarar o estado de divorciado que não tinha.
14. Por sentença de 2.5.2002, já transitada em julgado, proferida nos Autos de Regulação do Exercício do Poder Paternal que com o nº 10019/2000 correu termos pelo 3º Juízo deste Tribunal, o ora arguido foi condenado a pagar a título de alimentos aos seus filhos menores, X…e K…, a quantia mensal de 50.000$00, sendo 25.000$00 para cada um, a qual deveria ser entregue à mãe, a ora assistente, até ao dia oito de cada mês a que respeitasse, pensão alimentar essa devida desde 25.9.2000.
15. O arguido apenas pagou os alimentos devidos até Junho de 2002 inclusive, no âmbito da execução da sentença referida no ponto anterior, não tendo pago qualquer outra quantia vencida posteriormente, sendo que o ali decidido apenas foi alterado por sentença de 10/4/2007, que atribuiu a guarda da menor K… ao pai e manteve o menor X… à guarda da mãe, custeando cada progenitor todas as despesas com o filho que tiver à sua guarda.
16. O arguido podia ter pago a totalidade dos alimentos, uma vez que se dedicava à actividade de talhante e era titular de uma quota da herança indivisa de seu pai, da qual vendeu, em 12.7.2002 – ele e os co-herdeiros – um prédio da mesma pela quantia de 397.713 euros, quantia essa de que recebeu a sua quota parte.
17. O arguido agiu sempre livre, consciente e deliberadamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
18. O arguido sempre teve como profissão o comércio de carnes.
19. A assistente vendia roupas, era alheia ao comércio de carnes e não conhecia fornecedores, clientes e preços.
20. A assistente administrou os talhos durante alguns meses, até ao seu encerramento.
21. A ora assistente propôs a acção de divórcio litigioso em 2000, convertido em divórcio por mútuo consentimento em 2/4/2002.
22. Durante o período referido no ponto anterior o arguido e a assistente estavam separados de facto.
23. A partir de 2003, o menor X... viveu, pelo menos, um ano com o pai; e a menor K... viveu quase em permanência com o pai, até porque ela resistia a ficar com a mãe, só tendo regressado a casa desta em Novembro de 2008, permanecendo aí desde então.
24. O arguido, em 25/6/98, foi condenado pela prática de um crime de produtos avariados, em pena de multa.
25. O arguido vive com uma companheira em casa própria; trabalha num talho de que a sua companheira tem a concessão no mercado municipal; possuem um Mercedes Vito de 1999 ou 2000 e um Seat Inca de 2000; tem a 4ª classe.
26. Após o encerramento dos talhos, a assistente trabalhou como empregada comercial ao serviço de «FB…, Lda»; depois trabalhou como empregada de mesa num restaurante; mais tarde, desde 2003, passou a trabalhar, desde as 13h às 18h, na «B… B. Design», e após esta hora e até cerca das 2h, no estabelecimento «CC…» da empresa municipal «PV».
27. No âmbito do processo referido no ponto 14, a ora assistente, no dia 9/7/2001, deduziu incidente de incumprimento da obrigação de alimentos a cargo do ora arguido. Na sequência, foi realizada uma conferência de pais, no decurso da qual foi o ora arguido notificado para juntar aos autos os balancetes mensais da sociedade que constituíra.
28. No dia 27/8/2003, a ora assistente deduziu novo incidente de incumprimento, pedindo a entrega da menor K.... Por sua vez, o ora arguido pediu a retirada da guarda dos menores à mãe. Por decisão de 19/3/2004, foi mantida a atribuição da guarda de ambos os menores à mãe e determinada a imediata entrega da menor K....
29. No dia 23/4/2004 a ora assistente deduziu novo incidente de incumprimento quanto à entrega da menor K..., na sequência do qual foi a menor entregue à mãe no dia 18/5/2004.
30. No dia 30/7/2004 a ora assistente deduziu novo incidente de incumprimento quanto à entrega da menor K..., na sequência do qual foi a menor entregue à mãe no dia 13/9/2004.
31. No dia 18/10/2004 a ora assistente deduziu novo incidente de incumprimento quanto à entrega da menor K..., na sequência do qual foi designada data para uma conferência de pais, a que o ora arguido faltou. Foi então o ora arguido notificado para cumprir os termos do acordo da regulação do exercício do poder paternal homologado sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
32. No dia 3/1/2005 a ora assistente deduziu novo incidente de incumprimento quanto à entrega da menor K..., na sequência do qual foi proferida sentença a 6/1 0/2005, que decidiu a imediata entrega da menor K... a sua mãe, a levar a cabo pelo IRS; a condenação do ora arguido em 4 UCs de multa e a notificação da decisão a todos os envolvidos, sendo o ora arguido mediante contacto pessoal e com a cominação da prática de um crime de desobediência em caso de futuro incumprimento da decisão que atribuiu a guarda da menor K... à mãe.
33. A menor K... tem dificuldade no cumprimento de regras.
34. A não entrega, por parte do arguido, da menor K... à sua mãe, nas circunstâncias expostas no ponto 23, impossibilitou a assistente de acompanhar a filha nos actos mais significativos da sua vida diária, de a aconselhar, e demonstrar o amor que nutre por ela.
35. O que consta do ponto anterior provocou angústia e sofrimento na assistente.
(…)”.

B) Foram considerados não provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
- que os dossiers retirados pelo arguido do estabelecimento sito na Rua Heróis do Ultramar contivessem facturas de clientes, preçários, listagens de fornecedores, contas correntes e uma disquete do computador do estabelecimento e que isso tenha impossibilitado a assistente de gerir os estabelecimentos, uma vez que ficou sem acesso às contas dos mesmos;
- que o arguido tenha advertido os empregados do talho para não trabalharem sob as ordens da assistente;
- que o Centro de Dia Dr. Jo… tenha anulado encomendas previamente feitas ;
- que o arguido tenha actuado com o propósito, concretizado, de inviabilizar a gestão dos talhos pela esposa, que os teve de fechar passado cerca de quatro meses ;
- que o arguido, ao produzir falsa declaração quanto ao seu estado civil, visasse dificultar o conhecimento da assistente da prática de actos de comércio de que estava legalmente impedido;
- que o arguido, produzir falsa declaração quanto ao seu estado civil, tenha actuado com o propósito de defraudar a fé pública de um documento autêntico;
- que o arguido recebesse quantias nunca inferiores a 1.500 euros mensais da sua actividade de talhante;
- que a conduta do arguido tenha posto a saúde e bem estar dos seus filhos menores em causa ;
- que após o divórcio, a mãe dos menores apenas sobrevivesse como empregada de balcão por conta de outrem, auferindo vencimento mensal de 350 euros, com a qual alimentava e vestia, ela e os menores, e pagava as despesas escolares dos mesmos;
- que os menores não passam fome, andam vestidos e têm material escolar apenas porque a avó materna ajudasse financeiramente a mãe dos mesmos ;
- que o arguido tenha depositado as quantias devidas;
- que a assistente não tenha pago a fornecedores, aos empregados, a luz, água, impostos e renda ao senhorio;
- que tenha sido o arguido a pagar as dívidas do casal em processos civis propostos contra si ;
- que os documentos de contabilidade do estabelecimento se encontrassem na posse do contabilista;
- que o arguido, questionado acerca do seu estado civil, tenha respondido «ainda casado», «divórcio em curso», «casado com divórcio em tribunal» ou «viúvo»;
- que o arguido fosse uma pessoa conhecida do notário, que sabia do seu processo de divórcio;
- que com a leitura rápida da escritura o arguido não se tenha apercebido de todos os elementos;
- que o arguido pague regularmente todos os impostos ;
- que o arguido tenha pago à assistente a título de alimentos aos seus filhos, 12.469,94 euros em 6/3/2002, 1.660,99 euros em 21/3/2002, 1.660,99 euros em 5/4/2002 e 1.660,99 euros em 20/4/2002;
- que os menores X... e K..., ao longo dos anos e durante meses seguidos, viveram com o pai que custeava todas as despesas;
- que a assistente chegue a trabalhar 16 horas de trabalho por dia para poder dar uma vida digna aos seus filhos;
- que o arguido tenha progressivamente aliciado os filhos para que ficassem consigo ;
- que o arguido tenha conseguido que a menor K... se tenha tomado uma pessoa fria, distante e calculista;
- que haja dificuldades de relacionamento entre a assistente e a menor K....
(…)”.

C) E dele consta a seguinte fundamentação de facto (transcrição):
“ (…).
A convicção do Tribunal assentou na análise crítica e comparativa de toda a prova produzida. Assim:
Os pontos 1 e 2 dos factos provados basearam-se nas certidões extraídas dos autos de providência cautelar nº 336/00, juntas a fls. 43 a 51,205 e 206.
Quanto à deslocação do arguido ao estabelecimento de talho no dia 14/11/2000, a mesma resultou da conjugação das declarações do próprio, das declarações da assistente e dos depoimentos de F... – técnico de informática que havia sido chamado pela assistente para aceder ao computador do estabelecimento e que ali se encontrava quando o arguido entra – e H... – irmã da assistente, que se desloca ao dito estabelecimento depois de ter sido alertada pela testemunha anterior para a presença do arguido no local e que vê o arguido a sair com «dossiers». Porém, não foi produzida prova segura acerca do conteúdo de tais dossiers, pois a última testemunha referida desconhece-o, o arguido declarou ter ido buscar somente documentação pessoal (o que é plausível) e apenas a assistente afirmou que as pastas continham facturas e outra documentação relativa ao giro dos talhos.
Relativamente aos contactos estabelecidos pelo arguido com os empregados do talho, temos que o próprio arguido admitiu ter-lhes contado que os talhos passavam a ser geridos pela assistente, que eles fariam o que quisessem e que eles afirmaram não ir trabalhar por conta dela. Porém, as duas empregadas ouvidas – as testemunhas E... e S... – referiram ter saído por outros motivos: a primeira por problemas de saúde, sendo que já tinha avisado que se ia embora no prazo de quinze dias, tendo antecipado a saída pelo facto de a assistente lhe ter retirado a chave do estabelecimento; a segunda por ter ido trabalhar para outro local, mais próximo da sua residência.
O arguido confessou ter contactado com os clientes dos talhos, nomeadamente com o identificado no ponto 6 dos factos provados; a assistente mencionou ter-se deslocado ao centro de dia Dr. J… para fornecer carne, e não a ter vendido, sendo informada da actuação do arguido; e a testemunha B..., directora técnica do dito centro de dia, confirmou o contacto efectuado pelo arguido (que as encomendas teriam de ser feitas a ele) e afirmou que a partir de então deixaram de encomendar a ambos.
As encomendas de carne efectuadas pelo arguido resultam da conjugação das suas declarações e das facturas juntas a fls. 25 a 27, 263 a 267, 393 a 394, 396 a 401, 403 e 405 a 411.
O arguido admitiu não ter indicado o paradeiro da camioneta Volvo no processo, dado que afirmou tê-lo indicado ao seu advogado, quando não tinha advogado constituído nos autos de providência cautelar!
O ponto 9 resultou da circunstância de o arguido ter sido pessoalmente notificado da decisão proferida nos autos de providência cautelar e de ter entendido o seu conteúdo (como ressalta das suas declarações em audiência).
Os pontos 10 e 11 dos factos provados basearam-se na certidão de fls. 69 a 73 (escritura de constituição da sociedade unipessoal por quotas).
Os pontos 12 e 13 resultaram da circunstância de o arguido se ter divorciado apenas em Abril de 2002, conforme consta da certidão junta a fls. 437 a 439, ou seja, mais de um ano depois da escritura pública em questão; aliada à declaração do arguido, em audiência, de que pretendia, com a sociedade então constituída, manter os clientes do talho.
Os termos da regulação do exercício do poder paternal dos menores resultam das certidões extraídas do processo respectivo, juntas a fls. 133 a 140, e a fls. 771 e 772.
O pagamento parcial dos alimentos consta da certidão extraída da execução de sentença nº 10.019/2000-A junta a fls. 709 a 713, em articulação com o seu requerimento inicial (cuja certidão está junta a fls. 184 a 188) de onde se retira quais as prestações alimentares em execução.
Ao contrário do que o arguido invocou, os cheques cujas cópias estão juntas a fls. 502 e 503 não serviram para pagar alimentos aos seus filhos:
Em primeiro lugar, em Abril de 2004 não estavam vencidos tais montantes, que ascendem a um global de 17.452,91 euros, mas quantia substancialmente inferior, que nem sequer atingia os 5.000 euros!
Depois, resultou claro das declarações da assistente e dos depoimentos das suas mãe e irmã, em articulação com a cópia do édito do serviço de finanças de Pombal de fls. 773 e 774, que tais cheques se destinavam a pagar à assistente a sua parte nos bens comuns remidos pela mãe do arguido: repare-se que a data da venda coincide com a data do primeiro cheque e a quantia global entregue à assistente corresponde a quase metade do valor da dívida fiscal!
O ponto 16 dos factos provados resultou, quer da certidão junta a fls. 192 a 197 (escritura pública de compra e venda), quer da factual idade apurada na sentença de regulação do exercício do poder paternal – veja-se o ponto 21 de fls. 136!
As actividades a que se dedicavam o arguido e a assistente e o tempo de administração dos talhos pela assistente, foram aspectos mencionados, quer pelo arguido, quer pela assistente, quer pela testemunha H..., irmã da assistente.
Os dados relativos à acção de divórcio constam da certidão respectiva, junta a fls. 437 a 439.
O ponto 23 dos factos provados resultou da articulação das seguintes declarações e depoimentos: – da assistente (o menor X... esteve com o pai o tempo correspondente, sensivelmente, a um ano escolar e o menor K... alternava entre a casa do pai e a da mãe, mas terá passado mais tempo na companhia do pai), – da testemunha L..., patroa da assistente desde há quatro anos (o menor X... esteve com o pai durante um período inferior a um ano), – da testemunha D..., coordenadora da equipa do IRS de Pombal até 2006-2007 (a menor K... recusava-se a ir para o pé da mãe, o que motivou pelo menos duas diligências de entrega da menor, em que a testemunha participou neste Tribunal), – da testemunha H..., irmã da assistente (a menor K... não queria ficar com a mãe, embora a guarda lhe estivesse atribuída), e – da testemunha R..., companheira do arguido (em meados de 2003 o arguido veio viver para Pombal e os filhos quiseram ir viver com ele, sendo que o menor X... o fez durante cerca de 2 anos e a menor K... esteve mais tempo com o pai, até Novembro passado, altura em que passou a viver com a mãe).
A situação pessoal do arguido resultou do CRC junto aos autos, das suas declarações e do depoimento da sua companheira.
A situação laboral da assistente resultou do que a própria afirmou em audiência, bem como dos depoimentos prestados pelas suas patroas, as testemunhas L... e C....
Os diversos incidentes de incumprimento suscitados no processo de regulação do exercício do poder paternal dos menores constam da certidão extraída do processo respectivo e que se encontra a fls. 694 e ss.
O ponto 33 dos factos provados baseou-se no que afirmaram as testemunhas D..., que o constatou nas duas diligências de entrega da menor em que participou neste Tribunal; e T..., namorado da assistente desde há dois anos, sendo que tem convivido mais com a menor desde Novembro passado.
As consequências da não entrega da menor para a assistente foram relatadas por quem convive com esta: as suas patroas (testemunhas L... e C...), o seu namorado (a testemunha T...) e a sua irmã (a testemunha H...).
Quanto aos demais factos não provados, temos que não foi produzida qualquer prova de que a intenção do arguido fosse inviabilizar a gestão dos talhos por parte da assistente, pois o que declarou foi que tinha de ganhar a vida. Por outro lado, da decisão da providência cautelar não consta que ao arguido estivesse vedado o exercício do comércio.
Mais, a prova produzida nos autos não confirmou que a conduta do arguido pusesse em risco a sobrevivência dos menores e que esta só tivesse sido assegurada pela avó materna por a mãe ter uma situação económica débil:
Os relatórios sociais elaborados pelo IRS no âmbito do processo de regulação do exercício do poder paternal, em Março e Outubro de 2001 – cfr. certidão de fls. 91 a 106 –, referem que «Embora caracterize a sua situação económica como difícil, a requerida continua a usufruir de um padrão de vida acima da média, mantendo, por exemplo, empregada pessoal que cuida habitualmente da habitação e dos menores durante o seu horário laboral» e «o presente agregado familiar parece manter um estilo de vida equilibrado e capaz de facear as despesas inerentes ao mesmo o que não contraria a obrigação e o dever ao requerido prestar alimentos aos seus filhos».
A testemunha T..., namorado da assistente mencionou que esta aufere mensalmente cerca de 1.000 euros.
É certo que a assistente tem dois empregos. Porém, um deles é a tempo parcial (trabalha cinco horas numa loja de roupa), sendo que do mesmo retira mais do que o salário mínimo nacional (450 euros, acrescidos de roupa, de acordo com o depoimento da sua patroa C...)!
A mãe da assistente, a testemunha A..., mencionou que ajudava a sua filha com bens alimentares, o que é normal suceder quando os progenitores cultivam, eles próprios, tais produtos – tal como sucede com esta testemunha. Acresce que afirmou que quando a menor K... esteve a viver com o pai era ele quem a sustentava – o que significa que a assistente só teria de sustentar o menor X....
Nenhuma prova foi produzida em audiência acerca do não pagamento, pela assistente, a fornecedores, empregados, luz, água, impostos e renda; sobre o pagamento, pelo arguido, das dívidas do casal; acerca do paradeiro dos documentos de contabilidade do estabelecimento; sobre um qualquer relacionamento entre o arguido e o notário; acerca do pagamento dos impostos pelo arguido; e sobre dificuldades de relacionamento entre a assistente e a menor K....
No que toca a um aliciamento dos filhos por parte do arguido, temos que a prova produzida foi bastante vaga e essencialmente constituída por «testemunhos de ouvir dizer».
(…)”.
*
*

Do erro de julgamento por errónea apreciação da prova

1. Discorda a assistente da decisão proferida sobre a matéria de facto, relativamente à 1ª parte do ponto 15 dos factos provados, segmento «O arguido apenas pagou os alimentos devidos até Junho de 2002 inclusive (…)» porque, tendo o tribunal colectivo fundamentado nesta parte a decisão, com base “no conteúdo da certidão de sentença nº 10019/2000-A, junta a fls. 709 a 713, em articulação com o seu requerimento inicial junto por certidão a fls. 184 a 188”, em seu entender, destes documentos não pode ser extraído o facto provado pois que, não obstante o depósito autónomo de € 7.000 efectuado pelo arguido destinado ao pagamento da quantia exequenda, face à reclamação de créditos apresentada pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional, cujo quantitativo, no montante de € 8.968,64 foi graduado antes da quantia exequenda, o que determinou que, até hoje, nada recebesse a título de alimentos do pai dos menores, facto que se comprova pelos documentos de fls. 752 a 754 e 760.
E, embora não com tanta clareza de propósitos, discorda ainda a assistente da decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente ao seguinte ponto não provado: “(que) os menores não passam fome, andam vestidos e têm material escolar apenas porque a avô materna ajudasse financeiramente a mãe dos mesmos”, apontando como prova que impõe diversa decisão o depoimento da sua mãe, a testemunha A..., tendo indicado no corpo da motivação as concretas passagens em que funda a impugnação.

Como é sabido, a decisão proferida sobre a matéria de facto pode ser modificada pela Relação se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º, do C. Processo Penal (art. 431º, b), do mesmo código).
Com este recurso não se abre a porta a um novo julgamento, em que se aprecia toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o efectuado na 1ª instância não tivesse existido. Ele é apenas um instrumento de correcção dos erros de julgamento e de procedimento apontados, erros que devem ser indicados com precisão pelo sujeito processual que por eles se sente afectado, através da enunciação dos concretos pontos que considera incorrectamente julgados e da indicação precisa das provas concretas que, em seu entender, os demonstram, impondo diferente decisão.
É por isso que na impugnação ampla da matéria de facto, o nº 3 do art. 412º do C. Processo Penal impõe ao recorrente que impugne a decisão o ónus de uma tripla especificação: a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa; e a indicação das provas que devem ser renovadas, quando tal pretenda.
No que respeita a estas duas últimas especificações, dispõe o nº 4 do artigo citado que o recorrente deve fazer referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, bem como deve indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois, como bem se compreende, são elas as que serão ouvidas e/ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras que este considere relevantes (nº 6 do mesmo artigo).

Passando agora à questão de saber se a assistente deu cumprimento a tais ónus, a resposta é positiva pois que, ainda que de forma não modelar, se mostram cumpridas as exigências previstas no art. 412º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal, nada obstando portanto, ao conhecimento do recurso da matéria de facto, nos exactos termos que ficam definidos.

2. Como vimos, a assistente dissente do decidido pelo tribunal colectivo relativamente ao ponto 15 dos factos provados, em parte, e relativamente ao ponto de facto não provado, “(que) os menores não passam fome, andam vestidos e têm material escolar apenas porque a avô materna ajudasse financeiramente a mãe dos mesmos” por, em seu entender, a valoração da prova produzida impor uma outra decisão.

Na tarefa da valoração da prova para alcançar a verdade material o princípio que norteia o tribunal é o da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º, do C. Processo Penal, de acordo com o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
O juiz não pode pois, valorar as provas como lhe apetece, julgar de acordo com o humor do momento, determinado por um convencimento exclusivamente subjectivo. A livre convicção do julgador não é, nem pode ser, sinónimo de arbítrio ou decisão irracional. Pelo contrário, na tarefa de valoração da prova exige-se uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência, bem como da percepção da personalidade do depoente e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo, tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objectivável e motivável, únicas características que lhe permitem impor-se, quer dentro do processo, quer fora dele.

Mas esta tarefa não corresponde a uma ciência exacta. A convicção alcançada pelo tribunal resulta da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência dos declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento ou falta deles, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, sinais e comportamento, e a coerência do raciocínio, aqui assumindo determinante importância os princípios da imediação e da oralidade pois são eles que permitem ao julgador detectar as forças e fraquezas da prova por declarações e da prova testemunhal.
E aqui, o tribunal não está condicionado, nem pela quantidade dos depoimentos, nem pela natureza dos meios de prova, como não tem que atribuir credibilidade ou não, à totalidade de um qualquer depoimento [este pode merecer credibilidade em parte e não o merecer, noutra].

O princípio da livre apreciação da prova vigora em todas as instâncias que conhecem de facto. Mas no que respeita à valoração da prova testemunhal [e da prova por declarações], existe uma enorme diferença entre a que é feita na 1ª instância e a que pode ser efectuada pelo tribunal de recurso, com base na audição das passagens concretamente indicadas.
É que a impressão produzida no julgador pela prova testemunhal [e por declarações], que se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e análise psicológica que traçam o perfil de cada testemunha, só alcança a sua plenitude através da imediação ou seja, do contacto próximo e directo entre o tribunal e as testemunhas e outros intervenientes processuais. Por isso, quando o julgador da 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova testemunhal [ou por declarações], porque a opção tomada se funda na oralidade e na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deverá censurar quando for feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade, violando as regras da experiência comum.


A plena actuação do princípio da livre apreciação da prova e o seu controlo, pressupõe a indicação na sentença dos meios de prova e o seu exame crítico, pois só desta forma pode ser avaliado o processo lógico e racional que, eventualmente conjugado com as regras da experiência, conduziu o tribunal a uma determinada decisão de facto.
Assim o ponto de partida para sindicar a observância de tal princípio é a fundamentação da decisão de facto, e muito particularmente, os motivos de facto que fundamentam a decisão, entendidos como os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinados sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal, 228 e ss.).
Posto isto.
2.1. Relativamente ao ponto 15 dos factos provados, no segmento «O arguido apenas pagou os alimentos devidos até Junho de 2002 inclusive (…)» o tribunal colectivo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos: “O pagamento parcial dos alimentos consta da certidão extraída da execução de sentença nº 10.019/2000-A junta a fls. 709 a 713, em articulação com o seu requerimento inicial (cuja certidão está junta a fls. 184 a 188) de onde se retira quais as prestações alimentares em execução.”.
Por sua vez, entende a assistente que, de tais documentos, conjugados com os documentos de fls. 752 a 754 e 760, não se pode concluir pelo pagamento parcial dos alimentos, pois que nada recebeu do arguido, pai dos menores, a tal título.
Vejamos se assim é.

A fls. 184 a 202 dos autos encontra-se uma certidão extraída da execução sumária nº 10019-A/2000 do 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Pombal, intentada a 11 de Julho de 2002, na qual figuram como exequente e executado, a aqui assistente e o aqui arguido, respectivamente. Fls. 184 a 188 desta certidão constituem o requerimento inicial da execução no qual a assistente fixa a quantia exequenda em 1.000.000$00, a que equivalem € 4.987,98, correspondente às seguintes parcelas: a quantia de 840.000$00, a que equivalem € 4.189,90, relativa às duas pensões provisórias de 20.000$00 cada, devidas desde Outubro de 2000 a Junho de 2002; a quantia de 50.000$00, a que equivalem € 249,39, relativa às duas pensões definitivas de 25.000$00 cada, vencidas em 8 de Junho de 2002; e a quantia de 10.000$00, a que equivalem € 49,89, relativa à diferença entre o montante da pensão provisória e o montante da pensão definitiva.
A sentença que constitui o título executivo desta execução encontra-se junta, por certidão, a fls. 133 a 140, dela resultando, além do mais, que foi por decisão proferida na conferência a que alude o art. 175º da OTM que o arguido foi condenado a pagar a prestação alimentar provisória mensal de 20.000$00, a cada um dos menores seus filhos, e que na sentença foi este condenado no pagamento mensal, a título de alimentos devidos a cada um dos dois filhos, da quantia de 25.000$00, actualizados no mês de Janeiro de cada ano e de acordo com a taxa de inflação prevista para o respectivo ano, pagamento que seria feito até ao dia 8 do mês a que respeita à mãe dos menores e aqui assistente. Mais foi decidido na sentença que a pensão alimentar nela fixada é devida desde 25 de Setembro de 2000, data em que a acção foi proposta, e que, para pagamento da diferença acumulada entre o montante das prestações provisórias e o montante da prestação definitiva, e até a perfazer, seria entregue pelo arguido a quantia mensal de 10.000$00, a que equivalem € 49,89.
Do que antecede decorre desde logo que a quantia exequenda indicada pela assistente não corresponde às parcelas indicadas, já que estas apenas totalizam o montante de 900.000$00, a que equivalem € 4.489,18. Depois, mostra-se repetida, parcialmente [foi incluída a prestação provisória e a prestação definitiva], a quantia relativa ao mês de Junho de 2002.
Em todo o caso, dizendo a assistente no requerimento executivo que o arguido não pagou as prestações provisoriamente fixadas, e tendo a sentença transitado a 23 de Maio de 2002, é de aceitar, por comodidade de raciocínio, que na data em que é proposta a execução, a quantia exequenda seria a de € 4.489,18.

A fls. 694 a 772 dos autos encontra-se uma certidão extraída da referida execução sumária nº 10019-A/2000, de que fls. 709 constitui um requerimento do aqui arguido, na qualidade de executado, entrado em juízo a 10 de Outubro de 2006, juntando documento comprovativo do pagamento, por depósito, da quantia exequenda. A fls. 711 da mesma certidão encontra-se um depósito autónomo, datado de 10 de Outubro de 2006, no montante de € 7.000. A fls. 712 da mesma certidão encontra-se um despacho da Mma. Juíza, datado de 10 de Outubro de 2006, ordenando a sustação da execução e a remessa dos autos à conta, com custas a cargo do executado. E a fls. 713 da mesma certidão encontra-se a sentença, datada de 16 de Maio de 2008, julgando extinta a execução, pelo pagamento da quantia exequenda e das custas.

É certo, como diz a assistente, que o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, a 3 de Dezembro de 2004, reclamou créditos, por IVA, no montante total de € 8.968,84 (fls. 752 a 754 da mesma certidão).
É também certo que, por sentença de 3 de Fevereiro de 2006, foram tais créditos reconhecidos e graduados em primeiro lugar, relativamente à quantia exequenda, para serem pagos pelo direito penhorado e que é o direito do executado a 1/6 da herança aberta por óbito de seu pai (fls. 759 a 761 da mesma certidão).
E é igualmente certo que o Ministério Público veio, a 28 de Maio de 2008, e nos termos do art. 920º, nº 2 do C. Processo Civil, requerer o prosseguimento da execução para pagamento dos créditos reclamados e liminarmente admitidos (fls. 714 da mesma certidão), encontrando-se certificado narrativamente a fls. 694 que na execução que vimos referindo se encontrava designada para o dia 2 de Fevereiro de 2009 a abertura de propostas em carta fechada, já que os autos tinham prosseguido por impulso do Ministério Público, nos termos do art. 920º do C. Processo Civil.

Dispõe o art. 916º, nº 1 do C. Processo Civil que em qualquer estado do processo pode o executado ou qualquer outra pessoa fazer cessar a execução, pagando as custas e a dívida.
Se o requerimento respectivo for feito antes da venda ou da adjudicação de bens, serão unicamente liquidadas as custas e o que faltar do crédito do exequente (nº 1 do art. 917º do C. Processo Civil). Mas, se já tiverem sido vendidos ou adjudicados bens, a liquidação tem de abranger também os créditos reclamados para serem pagos pelo produto desses bens, conforme a graduação e até onde o produto obtido chegar (nº 2 do mesmo artigo).
A execução é julgada extinta logo que se efectue o depósito da quantia liquidada nos termos do art. 917º do C. Processo Civil (art. 919º, nº 1 deste código).
Não obstante, o credor cujo crédito esteja vencido e haja reclamado para ser pago pelo produto dos bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, nos dez dias seguintes à notificação da extinção da execução, o seu prosseguimento, para efectiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito (nº 2 do art. 920º do C. Processo Civil). Neste caso, o credor requerente assume a posição de exequente, mas a execução prossegue apenas quanto aos bens sobre que incide a garantia real por si invocada (nº 3 do mesmo artigo).

Terminado este breve excurso sobre o regime da extinção da acção executiva pelo pagamento voluntário e sua renovação, e analisados à sua luz os documentos atrás referidos e os factos que deles se extraem, fácil é agora concluir que não assiste razão à assistente relativamente ao ponto de facto impugnado.
Com efeito, tendo a execução sido declarada extinta pelo pagamento da quantia exequenda e custas, o facto de ter prosseguido, como prosseguiu, nos termos do art. 920º, nº 2 do C. Processo Civil, não tem qualquer repercussão naquele pagamento e subsequente extinção na medida em que o Ministério Público assumiu a posição de exequente, não para obter o pagamento do crédito da Fazenda Nacional reconhecido e graduado através do depósito efectuado com vista ao pagamento voluntário, mas antes através da venda do direito penhorado ou seja, do direito do arguido a 1/6 da herança aberta por óbito de seu pai. E só por este bem poderá ser satisfeito o crédito da Fazenda Nacional.
Assim, não poderia o tribunal colectivo deixar de considerar que, face à extinção da execução pelo pagamento voluntário da quantia exequenda, foram satisfeitas as prestações de alimentos devidas até Junho de 2002, já que tais prestações integravam, como vimos, a quantia exequenda.

Concluindo, mantém-se o ponto 15 dos factos provados nos exactos termos fixados no acórdão recorrido.

2.2. Relativamente ao ponto de facto não provado, “(que) os menores não passam fome, andam vestidos e têm material escolar apenas porque a avô materna ajudasse financeiramente a mãe dos mesmos”, ouvido o CD onde se encontra registado o depoimento da testemunha A... dele resulta [apesar da difícil audição do registo], em síntese, e na parte relevante:
[A instâncias do Digno Procurador]
- Levava coisas à filha para alimentar os netos; as roupas e os livros era com o dinheiro que ela, sua filha, ganhava; o pai nunca deu nada para os alimentos dos filhos; a filha viveu algum tempo com o pai; os cheques tinham a ver com uma questão de dívidas nas finanças e não com os alimentos;
[A instâncias da Mma. Juíza Presidente]
- Quando se divorciaram a filha era empregada numa loja mas não sabe o ordenado; depois ela trabalhou numa loja de roupas mas não sabe quanto ganhava;
[A instâncias de Ilustre Mandatário]
- Nas finanças, quem oferecia dinheiro pelos bens era a depoente e o arguido que tinha um papel da mãe dele; o arguido ofereceu mais; ajudou a filha, para além de ir ao mercado, também dava dinheiro para as crianças;
[A instâncias de Ilustre Advogado]
- Os cheques passados pelo arguido foram para a filha da depoente.

A credibilidade do depoimento desta testemunha não mereceu quaisquer reservas ao tribunal colectivo, como claramente resulta da fundamentação de facto e, mais concretamente, do último parágrafo de fls. 797.
Como resulta da síntese do depoimento acima efectuada, a depoente afirmou que ajudava a assistente com géneros, fossem por si produzidos, fossem comprados no mercado. E afirmou também que também dava dinheiro para os netos.
Havendo que reconhecer que este comportamento seria o normalmente esperado de uma mãe relativamente à filha, que enfrenta as consequências de um divórcio, e aos netos, dele não se pode sem mais concluir que, não fossem tais ajudas, e os netos passariam fome, andariam mal vestidos e não teriam material escolar, e foi precisamente isso o que o tribunal colectivo não considerou provado.

Concluindo, não merece também nesta parte censura, a decisão de facto proferida pelo tribunal colectivo.

2.3. Não se evidencia que o acórdão recorrido enferme de algum dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.
Assim, considera-se fixada a matéria de facto nos exactos termos em que o foi pelo tribunal colectivo.

*

Do preenchimento do tipo do art. 250º, nº 1 do C. Penal

3. Dispõe o art. 250º, nº 1 do C. Penal [na redacção anterior à da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro] que, quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, pondo em perigo a satisfação, sem auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

São pois elementos constitutivos do tipo deste crime de perigo e de omissão própria, que tutela o titular do direito a alimentos face ao perigo de não satisfação das necessidades fundamentais (Prof. Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do código Penal, Parte Especial, Tomo II, 621):
[tipo objectivo]
- Que o agente esteja legalmente obrigado a prestar alimentos;
- Que o agente tenha capacidade para cumprir tal obrigação e não a cumpra;
- Que este incumprimento ponha em perigo, sem auxílio de terceiro, as necessidades fundamentais do alimentando;
[tipo subjectivo]
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.

Aqui chegados, o que é essencial reter é que confere dignidade penal à conduta, permitindo ultrapassar o princípio da intervenção mínima, é o desvalor resultante da colocação em perigo de direitos fundamentais do alimentando. O simples incumprimento da obrigação alimentar, em si mesmo, apenas tem conteúdo económico ou seja, é uma dívida civil.
Por isso, a colocação em perigo das necessidades fundamentais do alimentando é o elemento fulcral do tipo em questão.

3.1. Pretende a assistente que o facto de se ter provado que a partir de 2003, o menor viveu com o arguido pelo menos um ano, e que a menor viveu com o arguido quase em permanência em nada afecta o incumprimento deliberado e reiterado da sentença proferida na regulação do exercício do poder paternal já que aquele estava vinculado ao nela decidido.
Depois, se existe uma condenação provisória no pagamento de alimentos a que se seguiu uma condenação definitiva, existirá necessariamente um credor de alimentos necessitado o que pressupõe uma razoável probabilidade do cometimento do crime. E o arguido não cumpriu nem uma nem outra decisão.
Finalmente, porque não é pelo facto de alguém se substituir ao obrigado não cumpridor na satisfação na satisfação das necessidades dos alimentandos que deixa de ter existido o perigo exigido pelo tipo, não sendo necessário que o progenitor guardião ou qualquer outro terceiro se abstenha de intervir, aguardando a verificação do dano para então, se poder concluir pela verificação do perigo típico. Este ocorre logo com o incumprimento da decisão provisória, não se verificando o dano, quer pela intervenção da avó materna, quer pela intervenção do tio paterno, quer pela própria assistente que, a partir de Março de 2003, se viu forçada a ter duas ocupações.
3.1.1. Que o arguido estava legalmente obrigado a prestar alimentos aos menores X... e K… não restam dúvidas. Com efeito, os menores são seus filhos como se provou, decorrendo tal obrigação do disposto no art. 1878º, nº 1 do C. Civil que, fixando o conteúdo do poder paternal, nele inclui, além do mais, o dever dos pais de prover ao sustento dos filhos menores, de velar pela sua segurança e saúde e de dirigir a sua educação ou seja, tudo o que integra a noção de alimentos definida legalmente no art. 2003º do mesmo código.

Por outro lado, ainda que tal não seja necessário para o preenchimento do tipo, provou-se igualmente que o arguido se encontrava judicialmente obrigado a satisfazer os alimentos, nos termos das duas decisões, provisória e definitiva, proferidas nos autos de regulação do exercício do poder paternal.

3.1.2. Que o arguido tinha condições para satisfazer os alimentos devidos decorre de ter sido efectuada a prova de que se dedicava à actividade de talhante isto é, do comércio de carnes, e de que era titular do direito de acção à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, herança que procedeu à venda de um bem que a integrava pelo preço de € 397.713 em Julho de 2002, tendo aquele recebido a sua quota.
Portanto, se não pagou atempadamente as prestações devidas foi porque não o pretendeu fazer.

E que não cumpriu tal obrigação resulta de se ter provado que a assistente teve que intentar uma acção executiva no âmbito da qual vieram a ser pagos os alimentos devidos até Junho de 2002 e apenas estes [e só em 10 de Outubro de 2006, data da efectivação do depósito autónomo], sendo que a sentença proferida nos autos de regulação do exercício do poder paternal que fixou a prestação alimentícia só veio a ser alterada em 10 de Abril de 2007, ficando a partir daqui, a menor à guarda do arguido, mantendo-se o menor à guarda da assistente, mas custeando cada progenitor as despesas relativas ao filho a seu cargo.

3.1.3. Assim, a questão que se coloca, verificados que estão os atrás referidos elementos do tipo objectivo do crime, é a de saber se o incumprimento da obrigação de alimentos por parte do arguido pôs em perigo [como pretende a assistente] ou não [como pretende o arguido] a satisfação, sem auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais dos menores.

Retomando os argumentos da assistente acima enunciados, começaremos por dizer que, se é certo que se alterou a situação de facto com base na qual foi proferida a sentença de regulação do exercício do poder paternal na medida em que, como se provou, a partir de 2003 a menor K... passou a viver, quase em permanência, com o arguido, enquanto o menor X... viveu com o arguido pelo menos um ano, e apenas em 10 de Abril de 2007 veio a ser alterado o regime fixado naquela sentença, a verdade é que aqui não cuidamos, primordialmente, de assegurar a realização de uma obrigação civil. O preenchimento do tipo não depende apenas do incumprimento da obrigação mas que deste resulte o perigo para a satisfação das necessidades do respectivo credor.
Por outro lado, a existência de uma condenação provisória e de uma condenação definitiva na prestação de alimentos significa efectivamente a existência de um alimentando que deles carece, mas nada mais do que isso.

Aqui chegados, ressalvado sempre o devido respeito pela opinião contrária, que é muito, entendemos ser carecida de fundamento a afirmação feita no acórdão de que «(…) para o preenchimento do tipo, a conduta do arguido teria de conduzir a que os menores não vissem as suas necessidades básicas garantidas apenas pelos rendimentos da pessoa à guarda de quem estariam.».
Pressupôs-se no acórdão que não sendo a mãe dos menores e ora assistente não é terceira e que, não se tendo provado que foi a ajuda da avó materna – este sim, terceira – que levou a que os menores não passassem fome, andassem vestidos e tivessem material escolar, não podia concluir-se que a conduta do arguido pôs em causa a satisfação, sem o auxílio de terceiros, das necessidades fundamentais daqueles.
Não parece, no entanto, que seja este o melhor entendimento do tipo. Como bem diz a assistente, não é necessário que o terceiro se abstenha de auxiliar, até que se produza o dano, para então o fazer. A verificação do tipo não pressupõe que as necessidades fundamentais sejam efectivamente prejudicadas, bastando para tanto que tenham sido postas em perigo.
Mas quando existe mais do que um co-obrigado, como acontece com os pais relativamente à obrigação de alimentos dos filhos, se um deles não cumpre a sua parte e o outro, em consequência disso, cumpre a sua parte mas de forma mais onerosa isto é, com maiores encargos devido ao incumprimento daquele, nesta parte [da maior onerosidade da prestação], o progenitor cumpridor é terceiro para efeitos de preenchimento do tipo (cfr. Prof. Damião da Cunha, Comentário, loc. cit., 632).
Assim, ainda que não se tenha provado que as necessidades fundamentais dos menores apenas eram satisfeitas devido à ajuda monetária da avó materna – este é o único auxílio referido na pronúncia, não sendo pois de considerar o alegado auxílio de um tio paterno, aliás, apenas mencionado na motivação do recurso – não deixaria a assistente, enquanto progenitora à guarda de quem se encontravam os menores, de ser considerada terceira, na exacta medida em que contribuísse para a satisfação das necessidades fundamentais dos filhos acima do que lhe competia, e para compensar, total ou parcialmente, a omissão do arguido relativamente ao contributo que lhe fora fixado para aquela satisfação. Ou seja, é necessária a demonstração de uma conexão íntima entre o auxílio prestado por terceiro e o incumprimento por parte do alimentante (Prof. Damião da Cunha, loc. cit., 631).

Mas o que sucede nos autos é que também isto não resultou provado. Com efeito, tendo-se apenas provado que a assistente vendia roupas, era alheia ao comércio de carnes, não conhecia clientes e preços, e administrou os talhos durante alguns meses até ao seu encerramento [pontos 19 e 20 dos factos provados], que a partir de 2003 o menor X... viveu pelo menos um ano com o arguido e a menor K... viveu quase em permanência com este [ponto 23 dos factos provados] e que após o encerramento dos talhos a assistente trabalhou como empregada comercial numa boutique, depois trabalhou como empregada de mesa num restaurante, a partir de 2003 trabalha numa loja e a partir do fim da tarde no estabelecimento de café de uma empresa municipal [ponto 26 dos factos provados], não se provou, por outro lado, que após o divórcio (ocorrido em 2002) a assistente sobreviveu com o vencimento mensal de € 350 como empregada de balcão, com o que se alimentava e vestia bem como aos dois filhos e suportando ainda as despesas escolares destes, e ainda que, como se referiu já, que os menores não passam fome, andam vestidos e tem material escolar apenas porque a avó materna ajudasse financeiramente a assistente.
3.2. Em síntese conclusiva do que antecede, entende-se que a matéria de facto provada que consta do acórdão recorrido não preenche todos os elementos do tipo objectivo do crime de violação da obrigação de alimentos pelo que, nesta parte, não merece a decisão censura.
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Da condenação no pedido de indemnização civil

4. Diz a assistente que a circunstância de o arguido ter sido absolvido da prática de um crime de violação da obrigação de alimentos não implica, por si só, que tenha que ser absolvido do pedido de indemnização civil nele fundado pois que, não obstante tal absolvição, nos termos do art. 377º, nº 1 do C. Processo Penal haveria lugar a tal condenação caso o pedido se viesse a revelar fundado.
Vejamos se assim é.

A 12 de Dezembro de 2006 (fls. 468 e ss.) a assistente M... veio aos autos deduzir pedido de indemnização contra o arguido, fundado apenas, como expressamente é referido no seu ponto 2, nas consequências do crime de violação da obrigação de alimentos.
No pedido, a título de danos patrimoniais, são peticionadas as prestações de alimentos que a assistente diz vencidas e não pagas desde Setembro de 2000 até Dezembro de 2006 no total de € 18.750, as prestações vincendas até à data da decisão, os juros de mora vencidos calculados anualmente e à taxa supletiva, liquidados em € 1.950, totalizando este tipo de danos a quantia de € 20.700. E a título de danos não patrimoniais por si sofridos, alega a assistente que, devido à necessidade que teve de manter mais do que um emprego, e ao menor tempo disponível para os filhos que daí resultou, o arguido aproveitou para, com as mordomias que oferecia aos filhos, assim os aliciar, levando-os a afastarem-se da mãe, incumprindo sistematicamente todas as decisões que eram tomadas nos diversos incidentes, e conseguindo que hoje a menor K... se encontre afastada da assistente impedindo-a de lhe dar afecto dadas as dificuldades de relacionamento existentes, o que lhe causa grande dor moral, quantificando os danos daqui decorrentes em € 5.000.
4.1. Dispõe o art. 129º do C. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Como é sabido, no nosso processo penal vigora o princípio da adesão segundo o qual, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art. 71º do C. Processo Penal).
Assim, o pedido de indemnização civil tem como causa de pedir os mesmos factos que constituem o pressuposto da responsabilidade criminal, sendo razões de ordem processual que determinam a conveniência do conhecimento conjunto de ambas as responsabilidades. Mas, como responsabilidade criminal e responsabilidade civil não deixam de ser autónomas, mesmo nos casos de absolvição criminal, deve o tribunal condenar o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo se revelar fundado, sem prejuízo da faculdade de remeter as partes para os meios comuns (art. 377º, nº 1 do C. Processo Penal). Significa isto que, ainda que na sentença se venha a concluir que os factos apurados não constituem crime, se os mesmos se traduzirem na violação de um direito subjectivo, na violação de norma legal destinada a proteger interesses alheios, ou numa situação de risco, deve ser conhecido o pedido de indemnização com base neles deduzido. Fica pois, apenas excluída a responsabilidade civil contratual (Assento nº 7/99, de 17 Junho, DR, I-A, de 3 de Agosto de 1999).

O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, tendo tal qualidade a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente (art. 74º, nº 1 do C. Penal).
Perante isto, podemos dizer que não são coincidentes os conceitos de ofendido e de lesado. O primeiro é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 113º, nº 1 do C. Penal). O segundo é a pessoa que, por efeito do crime, sofreu danos no seu património, independentemente de ter a qualidade de ofendido.
Posto isto.

4.2. Relativamente aos danos não patrimoniais peticionados, tal como se afirmou no acórdão recorrido, os mesmos, independentemente do que se provou, não radicam no crime de violação da obrigação de alimentos mas antes, numa conduta do arguido que, apesar de associada ao incumprimento da obrigação alimentícia, dela é autónoma e que, na data em que foi praticada, não tinha dignidade penal [tem-na hoje, face à redacção do art. 249º, nº 1, c) do C. Penal, dada pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro o que, em todo o caso, é irrelevante para a questão sub judice].

Assim, não pode proceder o pedido de indemnização relativamente aos danos não patrimoniais peticionados.

4.3. Relativamente aos danos patrimoniais, já vimos que estes consistem no montante das prestações de alimentos em falta até determinada data, acrescida de juros de mora vencidos.

Na obrigação de alimentos, quando integrada no complexo que constitui o conteúdo do poder paternal, os filhos assumem a posição de credores e os pais a posição de devedores.
No caso em apreço, os credores das prestações de alimentos peticionadas são pois os menores, X... e K..., e não a assistente, sendo certo que esta não efectuou o pedido, nesta parte, em representação de seus filhos, mas em nome próprio. E, contrariamente ao por si alegado no pedido, não é exacto que na sentença proferida nos autos de regulação do exercício do poder paternal relativos aos menores seus filhos e do arguido, este tenha sido condenado a pagar-lhe a quantia mensal de 50.000$00, a que equivalem € 250, mas antes, foi condenado a contribuir com a quantia mensal de 50.000$00 para os seus filhos, sendo 25.000$00 para cada um, a título de alimentos, «a qual será entregue à mãe, até ao dia 8 do mês a que respeitar» (cfr. certidão de fls. 133 e ss.).

Perante isto, uma vez que os únicos danos patrimoniais peticionados pela assistente dizem respeito às prestações de alimentos não pagas pelo arguido aos seus filhos, independentemente do que se provou, torna-se evidente a sua ilegitimidade para, em nome próprio – e não, em representação de seus filhos –, efectuar o pedido respectivo.

Em conclusão, ainda que por razões não coincidentes com as do acórdão recorrido, não pode proceder o pedido de indemnização relativamente aos danos patrimoniais.
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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.
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Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs. (arts. 515º, nº 1, b), do C. Processo Penal e 87º, nº 1, b), do C. Custas Judiciais).

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Coimbra, 8 de Julho de 2009


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(Heitor Vasques Osório)

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(Jorge Baptista Gonçalves)