Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1004/11.3TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: REPARAÇÃO DOS DANOS POR ACIDENTE DE TRABALHO
BENEFICIÁRIOS
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DO TRABALHO DE COIMBRA- JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 2º DA LAT/2009.
Sumário: I – Relativamente ao âmbito pessoal de aplicação da LAT/2009, que é aplicável considerando a data em que ocorreu o evento, dispõe o art. 2.º desta lei que os beneficiários do direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos da referida lei são “o trabalhador e seus familiares”.

II - Tal conceito de “trabalhador” é densificado no art. 3º, n.º 1, que estipula que se trata do trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade seja ou não explorada com fins lucrativos.

III - O regime de reparação e acidentes de trabalho e doenças profissionais abrange os profissionais prestadores de serviços, sempre que estes se encontrem na dependência económica da entidade a quem tais serviços são prestados, e que tal dependência económica se presume.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – J..., instaurou a presente acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, contra COMPANHIA DE SEGUROS T..., S.A. pedindo que a Ré seja condenada:

1. A reconhecer como de trabalho o acidente em causa e, em consequência;

2. A pagar-lhe as seguintes prestações:

a) O montante de €100,00, de transportes para deslocações ao Tribunal e ao Instituto de Medicina Legal;

b) O montante de €4.560,00 de gastos em assistência médica e medicamentosa calculados desde a data do acidente até esta data (28.6.2016), a que acrescerão as despesas que terá necessidade de efectuar após esta data (28.6.2016) e até se mostrar necessário;

c) O montante de €1.500, em transportes para receber cuidados médicos, a que acrescerão as despesas que terá de efectuar após esta data;

d) De indemnização por incapacidade temporária o montante de €8.216,71, relativa aos primeiros 365 dias (70%), acrescido de €33.550,23, reportada aos restantes 1.391 dias (75%);

e) De pensão anual e vitalícia no valor de €7.792,26, com início a 28.11.2014, actualizável de acordo com a Lei;

f) de subsídio de elevada incapacidade no valor de €5.233,56;

e) De prestação suplementar para assistência de terceira pessoa no montante mensal de €461,14, em 14 meses por ano, a partir do dia 06.02.2010 e enquanto se mantiver a situação de dependência de terceira pessoa;

f) De prestações em espécie adequadas à sua reabilitação para manutenção do seu potencial funcional;

g) Juros de mora, nos termos legais.

Para tanto alega, em síntese, que no dia 06.02.2010, cerca das 11h 30m, sofreu um acidente quando se deslocava na sua própria viatura, da sua residência em (...) , para (...) , pela estrada nº 633, para ir visitar uma obra, no exercício das suas obrigações contratuais de estagiária e com o conhecimento e autorização da sua empregadora A..., Ldª,

Do acidente, que deve ser caracterizado como trabalho, resultaram-lhe lesões e sequelas por cuja reparação é responsável a ré para a qual havia sido transferida a responsabilidade infortunística.


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Contestou a Ré alegando, em síntese, que não obstante aceitar a existência de apólice, que cobria os riscos de acidente de trabalho da Autora, até ao valor do salário anual de €838,44x14, declinou a sua responsabilidade pela reparação do acidente por entender que, no caso, não existia qualquer contrato de trabalho da Autora com a tomadora do aludido seguro, pelo que esta, não podia transferir uma responsabilidade que não lhe cabia.

Acrescentou que ainda que se considerasse a existência de um vínculo de subordinação laboral, ainda assim o acidente não poderia ser considerado como acidente de trabalho, porquanto não ocorreu no local nem no tempo de trabalho.


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Na sequência do alegado pela Ré Seguradora, de que o salário para si transferido não contempla o subsídio de almoço, nos termos do disposto no artigo 127º nº1, do Código de Processo de Trabalho, foi determinada a intervenção, no âmbito dos presentes autos, da entidade empregadora, a qual, por se encontrar em processo de insolvência, foi citada na pessoa da Srª administradora judicial, nomeada no respectivo processo, que deduziu contestação que veio a ser desentranhada.

+

O Centro de Medicina de Reabilitação da (...) , deduziu intervenção principal espontânea contra a Seguradora peticionando o reembolso, do montante de €111.161,95, acrescido dos juros de mora pela prestação de assistência à sinistrada.

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A Ré Seguradora, deduziu contestação ao pedido de reembolso supra aludido, no âmbito da qual e para além do mais arguiu a prescrição do direito invocado, e ainda, por mera cautela impugnou os factos alegados e pugnou, pela improcedência do pedido com a sua consequente absolvição.

II – No despacho saneador decidiu-se “que o pedido de reembolso aqui formulado e ora em crise, não padece da arguida prescrição, até ao montante de €111.130,95, improcedendo assim, nessa parte, a excepção arguida pela Ré Seguradora (…) Quanto ao mais e designadamente ao valor de €31,00, relativo à factura nº (...) forçoso se torna concluir, estar efectivamente prescrito o direito ao seu reembolso, (…), assistindo razão à Ré Seguradora, procedendo nesta parte a invocada prescrição”.

Após selecção da matéria de facto assente e da matéria controvertida, prosseguiram os autos a sua normal tramitação com prolação de sentença, constando do seu dispositivo o seguinte:

“- Condeno a entidade responsável, Seguradora ..., S.A., a pagar à referida sinistrada, o seguinte:

a) Uma pensão anual e vitalícia, no montante de €7.792,26 – sete mil, setecentos e noventa e dois euros e vinte e seis cêntimos – reportada a 28/11/14 - dia seguinte ao da alta a calcular de acordo com a base técnica de cálculo de remição das pensões de acidente de trabalho, anexa à Portaria nº 11/2000, de 13 de Janeiro, actualizada para, €7.823,43 - sete mil, oitocentos e vinte e três euros e quarenta e três cêntimos, desde 01/01/16 (Portaria 162/16 de 09/06 - 0,4), e para €7.802,55 – sete mil, oitocentos e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos -, desde 01/01/17 (Portaria 97/17 de 07/03 - 0,5) e para €8.004,07 - oito mil e quatro euros e sete cêntimos - (Portaria 22/18 de 18/01 - 0,18);

b) A quantia de €41.766,94 – quarenta e um mil, setecentos e sessenta e seis euros e noventa e quatro cêntimos -, a título de Incapacidades Temporárias;

c) A quantia de €184,46 - cento e oitenta e quatro euros e quarenta e seis cêntimos – a título de prestação suplementar por dependência a 40%, de 3ª pessoa, desde 28/11/14, paga 14 vezes ao ano, actualizada para €185,38 - cento e oitenta e cinco euros e trinta e oito cêntimos - desde 01/01/17 e para, €188,72 - cento e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos - desde 01/01/18;

d) A quantia de €5.233,56 – cinco mil, duzentos e trinta e três euros e cinquenta e seis cêntimos - a título de subsídio de elevada incapacidade;

e) A quantia de €53,57- cinquenta e três euros e cinquenta e sete cêntimos - a título de despesas de deslocação.


***

Condeno ainda a entidade responsável, Seguradora... S.A., a pagar à sinistrada os juros de mora, à taxa legal, sobre cada uma das prestações, desde o respectivo vencimento, até integral pagamento;

***

Mais condeno a entidade responsável, Seguradora..., S.A., a reembolsar o Centro de Medicina de Reabilitação da (...) – no montante de €111.130,95 – cento e onze mil, cento e trinta euros e noventa e cinco cêntimos – relativa a despesas de internamento da aqui sinistrada e outras, no período de 31/05/10 a 25/02/11, acrescido dos juros de mora legais, desde a data da notificação do pedido de reembolso e até efectivo e integral e efectivo pagamento.

***

Absolvo a Ré seguradora, do demais peticionado pela Autora e pelo Centro (...) ”.

III – Inconformada, arguindo a nulidade da sentença, veio a seguradora apelar, alegando e concluindo:

...

Contra alegou a autora rematando a sua peça com a seguintes conclusões:

...

A autora veio arguir (expressa e separadamente) a NULIDADE DA SENTENÇA bem como veio recorrer SUBORDINADAMENTE, rematando com as seguintes conclusões:

...


+

Nesta Relação, o Exmº PGA emitiu parecer no sentido da confirmação da sentença impugnada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

IV – Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

...

V - Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões a questão a decidir passa por saber se:

1. Se a sentença é nula:

2. Há lugar à alteração da matéria de facto.

3. Se o acidente pode ou deve ser caracterizado como de trabalho.

4. Na afirmativa, se a seguradora é responsável pela reparação infortunística.

5. Se prescreveu o crédito reclamado pelo interveniente Centro (...) .

1. Da nulidade da sentença:

Alega a recorrente seguradora que a sentença é completamente omissa quanto à fundamentação dada à matéria de facto, não tendo realizado uma análise crítica da prova pelo que a sentença é nula (al.s b), c) e d) do nº 1 do artº 615º do CPC).

Independentemente[1] de se saber se a sentença padece na invocada nulidade, há a assinalar que no processo laboral o regime de arguição de nulidades da sentença diverge do regime geral adoptado nos recursos cíveis.

No ordenamento processual-laboral existe uma norma específica que exige que a arguição de nulidades seja feita expressa e separadamente no requerimento de recurso (cfr. artigo 77º, nº1 do Código de Processo do Trabalho).

Na base de tal dispositivo legal estão os princípios de economia e celeridade processuais subjacentes às leis reguladoras do processo de trabalho. Visa-se dar ao tribunal que proferiu a sentença a possibilidade de suprir as nulidades de que a mesma eventualmente enferme antes de mandar subir o recurso. Para que tal faculdade possa ser exercida, é necessário que a arguição da nulidade seja feita na parte do requerimento que é dirigido ao juiz do tribunal onde a decisão foi proferida.

Nos casos em que o recorrente não respeita o formalismo exigido pelo artigo 77º, nº1 do Código de Processo do Trabalho, a jurisprudência dos tribunais superiores, tem entendido que a arguição da nulidade se mostra intempestiva ou extemporânea, pelo que o tribunal ad quem não deve conhecer de tal nulidade. Veja-se a título de exemplo: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/9/2006, P.06S574; de 5/7/2007, P. 06S4283; de 10/10/2007, P. 07S048, todos disponíveis em www.dgsi.pt.e Ac. do Tribunal Constitucional nº 304/2005, DR, II Série, de 05.08.2005

Este tem sido, igualmente, o entendimento adoptado por este tribunal.

Apreciando agora, em concreto, o requerimento de interposição do recurso, verificamos que, no mesmo, não foi observado o estatuído pelo artigo 77º, nº1 do Código de Processo de Trabalho, havendo a considerar que a suscitada nulidade foi arguida intempestivamente, pelo que não se apreciará a mesma.


+

Também a sinistrada/recorrida veio (expressa e separadamente) arguir a nulidade da sentença, por oposição dos fundamentos com a decisão, por força do disposto na al. c) do nº 1 do art.º 615º do novo CPC.

A Srª juíza a quo entendeu não se verificar a invocada nulidade porquanto, para além do mais “dispõe o citado artigo na sua alínea c) que: que “É nula a sentença quando, os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Do alegado artigo 51º da petição inicial consta que “ A Autora tem direito ainda, nos termos do disposto nos artigos 25º e seguintes da citada LAT, a todas as prestações, em espécie, isto é, de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica e hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, necessária e adequadas à reabilitação da Autora, para a manutenção do sue potencial funcional”, sendo que no nº 8 do pedido consta “seja a Ré condenada no pagamento de, prestações em espécie adequadas à sua reabilitação para manutenção do seu potencial funcional”.

Vejamos então:

Efectivamente, no artigo 27 dos factos que considerámos provados, consta “bem como a necessidade de manter regularmente um programa de reabilitação, para manutenção do potencial funcional”.

Porém e com o devido respeito por opinião contrária, não se nos afigura verificada a alegada contradição, porquanto, se por um lado, não lhe está adstrito, qualquer valor concreto, (já que não resultou provada, em concreto, nenhuma despesa a tal título, na audiência de julgamento), por outro lado, o considerar-se provado que a Autora tem aquela necessidade de manter regularmente um programa de reabilitação (…), não obriga a que na decisão conste, condenação da Ré, “no pagamento das prestações em espécie adequadas à reabilitação da Autora para manutenção do seu potencial funcional” dada a abstracção e generalidade da mesma, o que não impede, antes pelo contrário, que em função desse facto provado, Autora e Ré, gizem os termos desse programa de reabilitação e venha a Ré, a proceder ao seu pagamento, em função dos comprovativos que oportunamente lhe venham a ser apresentados, sem embargo de a sinistrada, caso a Seguradora assim não proceda, poder então apelar ao Tribunal, para solucionar eventuais divergências (…)..

Decidindo:

Na Constituição da República Portuguesa consagra-se no artigo 205º a obrigação de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente.

A fundamentação legalmente exigida visa dar a conhecer as razões de facto e de direito que o tribunal considerou e que originaram uma determinada conclusão que subjaz à decisão.

Daí que os fundamentos constituam as proposições em que assenta o silogismo da decisão.

Por isso, a sentença que enferma de vício lógico que a compromete é nula.

Todavia, este vício não é de frequente verificação. O mesmo só ocorre em situações em que se mostre claro que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág. 141).

Dito de outro modo, para que se verifique tal vício tem de existir uma contradição lógica entre os fundamentos e a decisão tomada. Aqueles apontam num sentido e a decisão é tomada em sentido diverso ou divergente.

Por outro lado, conforme se assinala no Manual de Processo Civil de A. Varela e outros. 2ª edição, págªs 686 a 691 “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”

A al. c) do nº 1 do artº 615º refere-se “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão” (…) “a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos direcção diferente”- A. Varela e outros, ob.cit., 689 e 690.

No caso em análise é verdade que, para além do mais, a autora/sinistrada peticionou a condenação da Ré no pagamento de prestações em espécie adequadas à sua reabilitação para manutenção do seu potencial funcional e que a sentença recorrida absolveu a Ré de tal pedido, pese embora dê como provada a matéria do ponto 27 dos factos provados (As sequelas sofridas pela Autora, em consequência do acidente, determinam a necessidade de manter regularmente um programa de reabilitação, para manutenção do potencial funcional).

Todavia, tendo em conta os contornos da nulidade em questão, a omissão consubstanciada na não condenação da ré no pagamento de prestações em espécie adequadas à reabilitação para manutenção do potencial funcional da sinistrada, não se configura como causa de nulidade de sentença.

Tal omissão configura-se- à antes como erro de julgamento derivada de uma errada subsunção dos factos ao direito.

Consequentemente, julga-se  por não verificada a invocada nulidade.

2. Da alteração da matéria de facto:

...

Da caracterização do acidente:

Relativamente ao âmbito pessoal de aplicação da da LAT/2009, que é aplicável considerando a data em que ocorreu o evento, dispõe o art. 2.º desta lei que os beneficiários do direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos da referida lei são “o trabalhador e seus familiares”.

Tal conceito de “trabalhador” é densificado no art. 3º, n.º 1, que estipula que se trata do trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade seja ou não explorada com fins lucrativos.

Esta norma interpretativa parece, à primeira vista, reportar-se apenas ao trabalhador subordinado, ou seja àquele que presta trabalho a outrem no âmbito de contrato de trabalho.

Na verdade, a lei não define o que entende por contrato de trabalho, portanto há que atender à noção do artigo 11.º do CT, mesmo que o contrato seja inválido, atento o disposto no artigo 115.º do CT.

Porém o n.º 2 do mesmo preceito dispõe que “quando a presente lei não impuser entendimento diferente presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços”.

Esta disposição legal deve interpretar-se com conjugação com o disposto no art. 4.º, nº 1, al. c) da lei preambular do CT (Lei 7/2009 de 12/02), a qual estabelece que “o regime relativo a acidentes de trabalho e doenças profissionais, previsto nos artigos 283.º e 284.º do Código do Trabalho” se aplica “com as necessárias adaptações” “a prestador de trabalho, sem subordinação jurídica, que desenvolve a sua actividade na dependência económica, nos termos do artigo 10.º do Código do Trabalho”.

Daqui decorre que o regime de reparação e acidentes de trabalho e doenças profissionais abrange os profissionais prestadores de serviços, sempre que estes se encontrem na dependência económica da entidade a quem tais serviços são prestados, e que tal dependência económica se presume.

E porque assim é, a menos que essa entidade ilida a presunção, ficará obrigada a reparar os danos decorrentes do acidente de trabalho ou doença profissional, nos exactos termos em que responderia se estivesse vinculada ao profissional por contrato de trabalho.

Finalmente, o n.º 3 do mesmo preceito estende aquele regime tutelar aos praticantes, aprendizes, estagiários, e todos aqueles que se encontrem em situação de formação profissional, entendida esta como a actividade “que tem por finalidade a preparação, promoção, e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”.

Por outro lado, a al. b) do mesmo art. 4º da Lei 7/2009 estende o mesmo regime tutelar ao administrador, director, gerente ou equiparado, sem contrato de trabalho, que seja remunerado por essa actividade. Acresce que o mesmo regime se aplica aos trabalhadores abrangidos por contratos de trabalho com regime especial, como por exemplo o contrato de trabalho doméstico (vd. art. 26º, n.º 3 do DL n.º 235/92, de 24/40), o contrato de trabalho do praticante desportivo (cfr. art. 1º da Lei n.º 27/2011, de 16/06), ou o contrato de trabalho a bordo (vd. art. 17º, al. f) do regime jurídico aprovado pelo DL n.º 74/73, de 01/03).

Ora, no caso concreto, prestando a estagiária J... serviços para a A..., Ldª, embora no âmbito de um programa de formação profissional onde auferia mensalmente, como bolsa de estágio, a quantia de €838,44 (cfr. facto 2 e al. b) da Clª 3ª “Contrato de Formação em Posto de Trabalho”), não tendo a ré seguradora ilidido, como lhe competia, a presunção de que aquela estava na sua dependência económica, é de concluir que o acidente se encontra abrangido pela legislação infortunística, pelo que o acidente se insere no âmbito de aplicação da respectiva legislação, sem necessidade de existir um contrato de trabalho subordinado.

Falece, pois, toda a argumentação expendida pela recorrente no sentido da sinistrada não estar abrangida pela legislação infortunística.

Mantendo-se inalterada a matéria de facto, acompanhamos a sentença na parte em que nela se lê que: “…de acordo com o art.º 8.º da NLAT é acidente de trabalho “aquele que se verifique no local e tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte”.

Nos termos do disposto no artigo 9º, nº1, do mesmo diploma legal, “Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:

a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;

nº2 “A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:

(…)

b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.

(…)

Vejamos então se o acidente aqui em apreço, ocorreu no local e tempo de trabalho.

No caso dos autos e de acordo com a matéria provada, o horário da Autora e de acordo com a cláusula 2ª do seu contrato de Formação em Posto de Trabalho, era estabelecido de acordo com os horários praticados na actividade e referentes aos outros trabalhadores, não podendo ser inferior a 30 horas semanais.

Mais resultou provado que, no dia em causa, a Autora se ia encontrar com o Engº ..., (que exercia funções na empresa Formadora a Autora) Director de Obra, para ir visitar, no exercício da sua actividade de estagiária e com o conhecimento e autorização da gerência, obtido em reunião ocorrida na véspera, uma obra que a empresa tinha em construção, em (...) .

Consta ainda da matéria provada que a Autora, nas suas deslocações entre a sua residência, em (...) e as instalações da Formadora em (...) e vice-versa, utilizava a sua própria viatura e que no dia do acidente, seguia o seu trajecto normal e habitual, da sua residência para (...) , onde se encontraria com o Engº ..., com quem e num dos carros da empresa, se deslocaria à referida obra.

Assim face à matéria dada por provada, dúvidas não subsistem, de que estamos perante acidente de trabalho “in itinere”, que se enquadra, no supra citado artigo 9º, nºs 1 e 2 Lei n.º 98/2009, de 04/09”.

Ou seja, o acidente dos autos é um típico e indemnizável acidente de trabalho.

Da responsabilidade pela reparação infortunística:

A seguradora entende que não tem obrigação de proceder à reparação infortunística com base na argumentação que expende nas conclusões 43ª a 65ª.

Ora, estando a sinistrada abrangida pela normas que regem os acidentes de trabalho (como se viu, no âmbito da legislação infortunística, ao contrário do alegado pela seguradora, não cabem apenas os trabalhadores subordinados), havia a obrigação legal de, sob pena até de cometimento de uma infracção contraordenacional (artºs 79º e 171º da LAT), se proceder à transferência da responsabilidade emergente de acidentes de trabalho para uma entidade autorizada a realizar o seguro, o que a empresa A..., Ldª fez através da celebração de um contrato de seguro de prémio fixo com a ré, titulado pela com a apólice ...

Ora este contrato, não tendo sido declarado nulo ou anulado é válido produzindo regularmente os seus efeitos.

Na verdade, não foi invocada a sua anulabilidade, nem tão pouco vemos onde possa ter ocorrido qualquer vício de gere a sua nulidade que, como se sabe, é de conhecimento oficioso.

Por outros lado, “é preciso ter em devida conta que o contrato de seguro de acidentes de trabalho é obrigatório e reveste a natureza de contrato a favor de terceiro. Como tal, o contrato de seguro está sujeito à disciplina do art. 449º do CC, nos termos do qual “São oponíves a terceiro, por parte do promitente, todos os meios de defesa derivados do contrato, mas não aqueles que advenham de uma relação entre promitente e promissário.” - neste sentido, acórdãos do STJ de 30/3/89 (BMJ 385, p. 563), da Relação de Coimbra de 12/2/98 (CJ, tomo I, p. 64), da Relação de Évora, de 9/4/03 (CJ, tomo II, p. 264).

Dada a sua fisionomia de contrato a favor de terceiro, ao celebrar o contrato de seguro de responsabilidade civil o segurador obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida ao segurado, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora.

As excepções que o segurador tenha contra o segurado são do domínio exclusivo da relação entre eles, só sendo relevantes nas relações imediatas ou internas entre ambos.

Assim, estando vedado à seguradora opor à sinistrada as excepções que eventualmente pudesse ter contra a tomadora, sempre aquela seria responsável pela reparação do acidente até ao limite da responsabilidade transferida.

Mas ainda que, no caso, sem conceder, o contrato de seguro a celebrar não fosse no ramo de acidentes de trabalho, nem por isso a seguradora se podia eximir à reparação infortunística.

No domínio da liberdade contratual, nada impedia que a seguradora e o tomador tivessem celebrado um seguro de acidentes de trabalho quando o contrato de seguro apropriado fosse um outro qualquer.

O contrato de seguro de acidentes de trabalho formou-se validamente dele resultando direitos e obrigações para ambas as partes não havendo notícia que alguma das partes o tivesse incumprido.

Até que fosse declarado inválido por ter ocorrido um qualquer vício invalidante (sendo que no caso, a seguradora até nem pode alegar desconhecer a qualidade de estagiária da formanda J... (facto10) ou que lhe tivessem ocultado qualquer outra circunstância limitadora da sua vontade em contratar), o contrato celebrado tinha que produzir todos os seus efeitos. Não faria sentido que fosse de outra fome.

Portanto, e em conclusão, nada ocorre que possa fazer excluir a responsabilidade da seguradora pela reparação das consequências emergentes do acidente de trabalho de que trata os presentes autos.

Da prescrição:

Sobre esta questão discorreu a 1ª instância.

“Da arguida, pela Ré Seguradora, Prescrição do direito ao reembolso peticionado pelo (...) :

A prescrição dos créditos em causa, encontra-se prevista no artigo 3º do DL 218/99 de 15/6 que estatui que “Os créditos a que se refere o presente diploma prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem.”

Ora e como consta dos autos, a matéria aqui em causa, que veio a juízo em 02/09/11, - vd. folhas 1 e seguintes do 1º apenso – com a participação de alegado acidente de trabalho, efectuada pela sinistrada, cuja, veio a merecer decisão de incompetência material deste tribunal, conforme melhor consta de folhas 37 e seguintes do mesmo apenso, proferida em 14/11/11.

Consequentemente, em 12/07/12 deduziu a aqui sinistrada, Petição Inicial, junto do Tribunal Judicial da Lousã, conforme melhor consta de folhas 3 e seguintes do apenso B), processo nº ..., no âmbito do qual, veio igualmente a ser proferida decisão de incompetência em razão da matéria – vd. folhas 99 a a 102 do mesmo apenso - dando origem a conflito negativo de competência, apreciado no Tribunal da Relação de Coimbra, que determinou a competência deste tribunal do Trabalho, para a causa em questão, voltando os autos a este tribunal – vd. folhas 260 a 266 do mesmo apenso.

Ainda no âmbito do supra alegado processo nº ..., o Centro (...) , deduziu em 12/09/12, articulado superveniente, peticionando créditos, no montante de €111.130.95, (a quase totalidade dos quais - com uma diferença de €31,00, também aqui reclamados) – vd. folhas 43 a 65 do apenso B – articulado este, notificado à aqui Ré Seguradora, em 12/10/12.

Do tal articulado, bem como do pedido de reembolso destes autos, consta que o Centro (...) , prestou a assistência médica à aqui Autora/sinistrada, na sequência do acidente de viação de que esta foi vítima, nos termos melhor constantes do articulado supra aludido, que se dão, por integralmente reproduzidos, assistência essa, que se iniciou em 31/05/2010 e terminou em 25/01/2011.

Assim e atento o estatuído no normativo supra citado, conclui-se que à data da intervenção na acção ordinária supra referida, os créditos em causa, ainda não estavam prescritos, sendo que com tal intervenção processual, se interrompeu a prescrição em apreço, mo que concerne aos créditos já, anteriormente peticionados, no montante de €111.130,95, interrupção que se manteve, uma vez que as vicissitudes decorrentes do conflito negativo de competência dos tribunais em causa, são alheias ao requerente e não lhe podem ser imputadas a qualquer título, entendendo-se que o pedido de reembolso aqui formulado e ora em crise, não padece da arguida prescrição, até ao montante de €111.130,95, improcedendo assim, nessa parte, a exceção arguida pela Ré Seguradora.

(Atente-se que nos documentos juntos a folhas 46 a 64, do apenso supra referido, há varias facturas repetidas, pelo que se deram os respectivos valores, sem efeito, mas resultando das facturas enumeradas no artigo 3º do articulado que vem de referir-se, o valor global apresentado de €111.130,95 – facturas nºs 10000159, 10000189, 10000216, 10000244, 10000276, 10000302, 10000324, 11000019, 11000047, 11000304, 12000094 – 12.240,00 +12.664,20 + 12.648,00 + 12.240,00 + 13.132,75 + 12.240,00 + 12.648,00 + 13.056,00 + 10.200,00 + 31,00 + 31,00 = 111.130,95).

Entende, no entanto, a recorrente, pelas razões que aduz nas conclusões 66ª a 72ª que ocorreu a excepção peremptória de prescrição relativamente ao crédito cujo reembolso é requerido.

Aceita que o prazo se interrompeu em 12/10/2012, com a notificação à demandada do pedido formulado naquela acção.

Porém, adianta, que por decisão proferida na mesma acção, foi a demandada absolvida da instância, decisão notificada às partes em 30/11/2012; sendo assim, na data acabada de referir (30/11/2012), cessou a interrupção da prescrição e começou a correr novo prazo prescricional, nos termos do nº 2 do artº 327º do Código Civil.

Decidindo:

Nos termos do nº 1 e 3 do artº 326º do CC “a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acato interruptivo, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte”.

E nos termos do artº 327 º nº 1 do mesmo diploma se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, a interrupção é permanente e o novo prazo prescricional só começa a contar-se com o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.

O nº 2 deste preceito consagra, todavia, um desvio à regra enunciada: “quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo”.

Contudo este número tem se ser conjugado com o nº 3 do mesmo preceito que dispõe: “Se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância ou ficar sem efeito o compromisso arbitral, e o prazo da prescrição tiver entretanto terminado ou terminar nos dois meses imediatos ao trânsito em julgado da decisão ou da verificação do facto que torna ineficaz o compromisso, não se considera completada a prescrição antes de findarem estes dois meses.”

Ora, se é verdade que ocorreu uma absolvição instância por se ter verificado a excepção da incompetência em razão da matéria (além de ter havido um conflito negativo de competência que veio a ser decidido pelo Presidente desta Relação), não é menos verdade que a reclamante do reembolso em nada contribuiu para a situação, ou seja, para as vicissitudes processuais que ocorreram e mais concretamente para a decisão de absolvição da instância.

De facto, foi a autora/sinistrada que interpôs a acção do tribunal da Lousã dando origem à decisão absolvição da instância por incompetência material do tribunal.

O Centro de Medicina de Reabilitação da (...) , limitou-se, através de intervenção principal espontânea, a deduzir contra a seguradora o reembolso a que se achava com direito.

A absolvição da instância ocorreu por motivo totalmente estranho ao referido Centro, não lhe sendo por isso, imputável.

Tem aqui pela aplicação o preceituado no nº 2 do artº 327º do CC pelo que o pedido de reembolso não prescreveu, o que se decide.

IV Termos em que se delibera:

1.Julgar totalmente improcedente o recurso independente interposto pela seguradora T..., S.A.

2. Julgar o recurso subordinado interposto pela autora/sinistrada procedente e, em consequência, condenar a seguradora a pagar à sinistrada as prestações em espécie adequadas à sua reabilitação para manutenção do seu potencial funcional, a liquidar em execução de sentença.

No mais, se mantendo o decidido.

Custas em ambos os recursos a cargo da seguradora/recorrente.


Coimbra, 20 de Fevereiro de 2019

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Jorge Manuel da Silva Loureiro)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)

***



[1] A recorrente insurge-se contra a maneira como a matéria de facto foi decidida. Enfermando esta decisão de um qualquer vício, este escapa ao regime das nulidades da sentença previsto nos arts. 615º e ss do CPC, pois que dispõe de um regime próprio enunciado no art. 662º nº2, al. d) do CPC, podendo à luz deste preceito ser determinado que os autos baixem à primeira instância a fim de que a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto seja ampliada, seja quanto aos factos provados seja quanto aos não provados.

Como se sublinha no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/6/2007 (Proferido no processo n.º 07S670), a decisão proferida sobre a matéria de facto não é susceptível de enfermar das nulidades da sentença previstas no artigo 668.º do então Código de Processo Civil (actual art. 615º do NCPC) - no mesmo sentido e já ao abrigo no NCPC, decidiu este Tribunal da Relação, entre outros, nos acórdãos de 23/6/2017, proferido no processo 716/16.0T8CVL.C1, de 11/10/2017, proferido no processo 648/16.1T8CLD.C1, e de 21/1/2015, proferido no âmbito do processo 2996/12.0TBFIG.C1 (com anotação favorável de Miguel Teixeira de Sousa que pode consultar-se em https://blogippc.blogspot.pt/2015/01/jurisprudencia-69.html), os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 29/5/2014, proferido no âmbito do processo 389/12, e de 10/9/2015, proferido no processo 6615/11.4TBVNG.P1, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/12/2016, proferido no processo 1384/14.9T8FAR.E1.