Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2996/12.0TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA TESTEMUNHAL
PROIBIÇÃO
MÚTUO
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 615º E 662º NCPC; 371º, 394º E 1142º C. CIVIL.
Sumário: I – Se o decisor de facto da 1ª instância formou a sua convicção sobre a veracidade e a irrealidade dos factos cujo julgamento é impugnado no recurso, também na prova testemunhal, deve exigir-se aos documentos nos quais o recorrente funda a impugnação um valor probatório tal que imponha para os aqueles factos uma decisão diversa que não possa ser destruída por aquela prova pessoal.

II - Apesar de actualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório.

III – Realmente a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve – no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (artº 662º, nº 2 do nCPC).

IV - O documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções, mas não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.

V - A proibição de produção de testemunhas para prova de quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou dos documentos particulares, quer essas convenções sejam anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento, não exclui a possibilidade de provar por testemunhas qualquer outro elemento como o fim ou o motivo do negócio, dado que aquele fim ou este motivo não é nem contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional à declaração.

VI - Apesar de, com a conclusão do contrato de mútuo e com a entrega do dinheiro mutuado ao mutuário, este se tornar proprietário dele, não viola este direito o mutuante que, por força de uma convenção das partes sobre a finalidade ou objectivo de contracção do mútuo ou, ao menos, por consentimento ou autorização do mutuário, afecta o dinheiro mutuado à satisfação de débitos que o último e a sua empresa tinha para consigo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O autor, J…, impugna, por recurso ordinário de apelação, a sentença do Sr. Juiz de Círculo da Figueira da Foz, que julgando improcedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário pelo valor, que propôs contra o Banco A…, – na qual pede a condenação deste a creditar e a disponibilizar imediatamente a quantia de € 150.000,00, objecto do contrato de mútuo e consequentemente creditada na conta de depósito à ordem nº … e a indemnizá-lo de por todos os prejuízos que venham a decorrer da eventual situação de incumprimento do contrato-promessa – absolveu o último do pedido.

O apelante – que pede no recurso que a sentença recorrida seja declarada nula e de nenhum efeito e, por conseguinte, essa mesma sentença recorrida seja revogada e, consequentemente, o R./recorrido ser condenado a restituir ao A./recorrente a quantia de 150.000,00€ acrescida de juros à taxa legal desde a data de citação até integral pagamento, objecto do contrato de mutuo, creditando esse montante na conta de depósitos à ordem nº … em nome do A./recorrente, sem qualquer limitação, porquanto se havia apropriado indevidamente desse montante - encerrou a sua alegação com estas conclusões:


O apelante ofereceu, com a alegação, dois documentos, cuja junção o Sr. Juiz de Direito - por decisão, que não foi objecto de recurso nem de reclamação, proferida para a acta da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 20 de Janeiro de 2014, em que se encontrava presente o Exmo. Mandatário do recorrente – não admitiu.

Na resposta ao recurso, a apelada concluiu, naturalmente, pela improcedência dele.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.


2.3. O Sr. Juiz de Direito especificou, como fundamentos que foram decisivos para a sua convicção sobre a prova ou falta de prova dos factos referidos em 2.1.1. e 2.1.2., os seguintes:


3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente, expressa ou tacitamente, no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

O recurso ordinário de apelação é, por regra, um recurso de reponderação – e não de reexame – dado que visa apenas reapreciação da decisão proferida, pelo que, em regra, a Relação não pode ser chamada a pronunciar-se sobre pedidos que não foram formulados na instância recorrida.

Como o pedido – e a causa petendi - só podem ser modificados na 2ª instância no caso de haver acordo das partes – eventualidade mais que rara – o recurso interposto para a Relação visa reapreciar o pedido formulado na 1ª instância, com a matéria nela alegada.

Sublinha-se este ponto, dado que o recorrente formulou, na instância de recurso, um pedido novo - o de condenação da apelada nos juros contados – sobre a quantia de € 150 000,00 – desde a citação – pedido que não deduziu logo na instância recorrida.

E tratando-se de um pedido novo, ele não constitui objecto admissível do recurso, pelo que, ainda que este deva proceder, está inteiramente excluída a condenação da apelada naquela indemnização moratória.

A causa petendi alegada pelo recorrente como fundamento do direito à entrega da quantia de € 150.000,00, objecto do contrato de mútuo, e à reparação do dano decorrente da violação da prestação de facto jurídico positivo que para ele decorre do contrato promessa de compra e venda que concluiu com terceiros, bem pode resumir-se assim: a quantia mutuada pela apelada tinha por finalidade o financiamento de investimentos em bens imóveis; todavia, o mutuante, depois de ter tornado indisponível tal quantia, afectou-a ao pagamento de débitos, tanto do recorrente com da sociedade unipessoal de que é sócio gerente; a indisponibilidade do dinheiro emprestado importa o não cumprimento daquele contrato promessa, com perda do sinal traditado e sujeição do apelante à pena nele convencionada.

A apelada defendeu-se com a alegação de que o mútuo tinha por objectivo um operação de restruturação financeira, solicitada pelo apelante, para regularização dos débitos, tanto do recorrente como da sua da empresa, para consigo.

Sujeitos, uns e outros factos, ao exercício da prova, a sentença impugnada convenceu-se da veracidade dos que foram alegados pelo apelado – e pela irrealidade dos invocados pelo apelante - e, em estrita coerência, desamparou a pretensão de reembolso e de reparação do dano formulada pelo autor.

Mas esta conclusão, sustenta o apelante, deve-se a um lamentável error in iudicando, por erro na valoração da prova, em que incorreu o decisor da 1ª instância, já que numa sã e prudente avaliação daquela prova há que julgar provados os factos 1, 2, 6, 8, 9, 10 e 19 – declarados não provados – e, inversamente, julgar não provados os factos 6, 17 a 19, 22 a 24 – declarados provados.

Maneira que, em face do conteúdo da decisão impugnada e da alegação do recorrente, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

a) A sentença impugnada se encontra ferida com o vício da nulidade substancial, por falta de fundamentação, obscuridade e ambiguidade que tornam a decisão ininteligível, omissão e excesso de pronúncia;

b) O decisor de facto da 1ª instância incorreu, na decisão da matéria de facto, num error in iudicando, por erro na avaliação ou aferição da prova documental, e se aquela mesma decse aquelaa prova documental;cando, por erro na avaliaç 2.1. para a sua convicç. cçisão deve ser cassada por contradição entre alguns dos pontos de facto;

c) Uma vez corrigido, em consequência da reponderação das provas, o erro de julgamento dos factos materiais da causa, se a sentença  deve ser revogada e logo substituída por acordão que julgue a acção procedente.

A resolução destes problemas reclama, naturalmente, o exame, ainda que leve, das causas de nulidade da decisão e dos parâmetros dos poderes de controlo desta Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1ª instância.

Previamente, contudo, há que resolver uma outra questão: a da admissibilidade da junção dos documentos que o apelante apresentou com a sua alegação.

3.2. Junção de documentos.

O apelante ofereceu com a sua alegação dois documentos, produzidos pelo Banco de Portugal - o mapa da centralização responsabilidades de crédito relativas ao recorrente, relativo a Julho de 2008, e a respectiva nota explicativa – para prova de que não existiu qualquer pedido de restruturação financeira e que em Julho de 2008 não existia qualquer situação de incumprimento do autor para com o réu.

Qualquer destes documentos foi oferecido pelo recorrente logo na instância recorrida, mas a sua junção não foi admitida por decisão de 20 de Janeiro de 2014, que não foi objecto de recurso nem de reclamação e que, por isso, transitou em julgado (artº 628 nº 1 do CPC). Realmente, aquela decisão, dado que rejeitou um meio de prova, era autónoma e imediatamente impugnável, através de recurso ordinário de apelação, a interpor no prazo de 15 dias, contado da sua notificação (artºs 638 nº 1, 2ª parte, e 644 nº 2, d), 2ª parte, do nCPC): não o tendo sido, passou em julgado.

E por força do caso julgado formal que se constituiu sobre a decisão de não admissão daqueles dois documentos, está irrepetivelmente decidido neste processo, que a sua junção não é admissível (artºs 619 e 620 do nCPC).

Todavia, mesmo descontando o trânsito em julgado da decisão que não admitiu, logo na instância recorrida, a junção daqueles documentos, a verdade é que a sua junção, na instância de recurso, sempre se deveria ter por inadmissível.

A junção de documentos na instância de recurso obedece, compreensivelmente, a regras particularmente restritivas[1].

Com as suas alegações do recurso de apelação as partes só podem juntar documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes – i.e., cuja apresentação foi impossível até ao encerramento da discussão - ou cuja junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artºs 425 e 651 nº 1, 2ª parte, do nCPC). Mas é claro que esta faculdade não compreende, em hipótese alguma, o caso de a parte pretender oferecer um documento que poderia – e deveria – ter oferecido naquela instância[2].

A superveniência pode ser objectiva ou subjectiva: é objectiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjectiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento.

A parte que pretenda, nas condições apontadas, oferecer o documento deve, portanto, demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, i.e., alegando e demonstrando o carácter objectiva ou subjectivamente superveniente desse mesmo documento.

No tocante à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância, já que isso abriria, de par em par, a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar – e provar[3] - a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento.

A superveniência objectiva é facilmente determinável: se o documento foi produzido depois do encerramento da discussão em 1ª instância, ele é necessariamente superveniente. Todavia, mesmo nos casos em que o documento é objectivamente superveniente, deve exigir-se ao apresentante a prova de que a sua produção só foi possível depois do encerramento da discussão. Assim, por exemplo, se se junta uma certidão emitida depois do encerramento da discussão, deve reclamar-se do apresentante a prova de que pediu a sua emissão em momento anterior àquele encerramento.

 Nos casos em que só a superveniência subjectiva pode justificar a admissibilidade da junção coloca-se o problema delicado da aferição dessa superveniência, dado que, pressupondo aquela superveniência a ignorância não culposa do documento, importa verificar em que condições se pode dar relevância ao desconhecimento do documento pela parte.

Assim, há que determinar o grau de culpa que é incompatível com a superveniência subjectiva e que, por isso, impede que a parte possa alegar o documento como superveniente, já que pode entender-se que qualquer desconhecimento negligente é incompatível com aquela superveniência ou que só a negligência grave no desconhecimento do documento obsta à sua alegação como superveniente.

Apesar do carácter delicado da questão, não parece razoável exigir que a parte assuma na procura das provas documentais relevantes para a defesa dos seus interesses em juízo uma diligência maior do que aquela que a lei exige que ela tenha perante a contraparte: como a litigância de má fé pressupõe a actuação com negligência grave, isso mostra que a negligência leve é desculpável e, por isso, processualmente irrelevante (artº 542 nº 2, proémio, do CPC).

Assim, só o desconhecimento tempestivo da existência do documento assente numa negligência grave deve obstar à sua alegação como documento subjectivamente superveniente.

Portanto, sempre que a parte desconheça sem negligência grave um documento e, por esse motivo, não o tenha oferecido no momento próprio, a sua junção não fica irremediavelmente precludida e aquele documento pode ser invocado como documento subjectivamente superveniente.

Em qualquer caso, a parte deve alegar e demonstrar que o desconhecimento do documento não ficou a dever-se uma negligência sua, já que só desse modo o documento pode ter-se por subjectivamente superveniente.

Na espécie sujeita, é patente, de um aspecto, que todos os documentos oferecidos pela apelante não são objectivamente supervenientes, dado que foram todos produzidos antes do encerramento da discussão em 1ª instância, que coincide com ao fim dos debates sobre a matéria de facto e de direito (artº 604 nº 3 al. c) do nCPC).

Portanto, a admissibilidade da junção só poderia fundar-se no facto de a apresentação ser necessária por virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artº 651 nº 1, 2ª parte, do nCPC).

Mas deve ter-se por certo que, no caso, se não verifica um tal fundamento – seja qual for o entendimento que, relativamente a ele, se deva ter por exacto.

Segundo alguma doutrina, a junção do documento será admissível, parece, sempre que a decisão de baseie numa norma jurídica com cuja aplicação as partes não tivessem contado[4].

De harmonia com outra, porém, a admissibilidade da junção dos documentos, pela razão apontada, está ordenada por esta finalidade: contraditar, pelo documento, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a pesar na decisão, que determinem, embora não necessariamente de forma exclusiva, o seu sentido[5]; em face da liberdade do tribunal no tocante à indagação, interpretação das regras de direito é mais exacto – diz-se - assentar em que a junção é admissível sempre que a aplicação da norma jurídica com que as partes justificadamente não contavam seja o reflexo da introdução no processo, pelo juiz, de um meio de prova com que as partes foram, inesperadamente, surpreendidas (artº 5 nº 3 do CPC). Quando isso suceda, a junção será sempre possível; se, pelo contrário, a aplicação, pela sentença, de norma com que as partes não contavam, não resulta da consideração de um novo meio de prova, a apresentação deve ter-se por inadmissível.

Enfim, outra doutrina salienta que manifestamente o legislador quis cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário fazer a prova de um facto ou factos com cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, contar antes do proferimento da decisão[6]. Há, no entanto, um ponto em que todas estas orientações são acordes: o de que aquela previsão não abrange o caso de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da causa e visar, com esse fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e de deveria ter oferecido na 1ª instância[7].

No caso que constitui o universo das nossas preocupações, a junção mostra-se nitidamente ordenada para a prova de factos controvertidos, oportunamente seleccionados para a base instrutória – e para a demonstração do erro do seu julgamento em que incorreu o tribunal a quo.

Abstraindo deste último ponto – que será objecto de apreciação no momento julgamento do recurso - já antes da decisão da matéria de facto, a recorrente tinha, consabidamente, consciência quer da relevância daqueles factos, quer do seu carácter controvertido e, como tal, carecidos de prova, tanto assim que se apresentou a oferecer os documentos considerados antes do julgamento daquela matéria. Dito doutro modo: os apontados factos não se tornaram relevantes apenas com a decisão da matéria de facto ou com a sentença: já antes, notoriamente, o eram. Depois, a prova daqueles factos não foi realizada por meio de esclarecimento ou convicção com que o recorrente não contava. Bem pelo contrário: a demonstração daquele facto foi feita por recurso a provas relativamente às quais a recorrente exerceu o seu inalienável direito de audiência e contraditório (artºs do nCPC). Enfim, aqueles factos não foram subsumidos, i.e., integrados ou incluídos, numa norma com cuja aplicação no caso concreto o apelante, confiada e fundadamente, não contava, ou sujeitos a um enquadramento jurídico diferente daquele que era perspectivado por essa mesma parte.

É claro que o tribunal da audiência pode ter incorrido, no julgamento daqueles factos, num error in iudicando, por equívoco na valoração da prova produzida. Simplesmente, esse erro não autoriza a produção, na instância de recurso, de provas documentais novas, devendo ser corrigido pela simples reponderação da força probatória das provas – dessa ou doutra espécie - já produzidas e que foram objecto de apreciação na instância recorrida.

 O que torna admissível a junção do documento não é o erro da decisão por erro na aferição das provas, mas a influência exercida nessa decisão – de harmonia com os diversos entendimentos do problema - por uma prova, pela relevância de um facto, ou pela aplicação de uma norma jurídica com que as partes, justificadamente, não contavam. E, nitidamente, não é esse o caso do recurso.

De resto, os apontados documentos – como que o recorrente visava provar que não existiu qualquer pedido de restruturação financeira e que em Julho de 2008 não existia qualquer situação de incumprimento do autor para com a ré – estão bem longe de inculcar a realidade de qualquer destes factos.

Em primeiro lugar, deles apenas se pode extrair que em Julho de 2008 – data a que informação é referida – não tinha sido comunicada ao Banco de Portugal qualquer situação de incumprimento de responsabilidades bancárias do recorrente. Depois, esses mesmos documentos não impedem, evidentemente, que se conclua a constituição dessa situação de incumprimento em data posterior a Julho de 2008: convém recordar a este propósito que o contrato de mútuo cuja finalidade se discute foi concluído em Abril de 2009.

Além disso, aqueles documentos respeitam apenas á responsabilidades do recorrente e não também às da sociedade unipessoal de que era sócio e gerente, para cuja regularização foi também afectado o dinheiro mutuado.

Por último, é o próprio autor que confessa – em carta assinada pelo seu punho, recebida pelo apelado em 29 de Agosto de 2008 – ter conhecimento do meu incumprimento perante a vossa instituição e comprometer-se a efectuar um depósito no valor de 40.000,00, na quinta-feira dia 4 de Setembro de 2008, afim de regularizar todos os valores que se encontram em atraso. E é também o próprio recorrente em carta – assinada pelo seu punho – recebida pelo apelado em 12 de Novembro de 2008, que solicita que me sejam restruturados os contratos que tenha perante a vossa instituição, e que para tornar tal operação possível, poderia hipotecar dois bens livres de ónus e encargos.

O recorrente alega, agora, no recurso, que dado os seu estado de nervosismo assinou um tal documento de cruz, não o tendo lido. Mas nem tais factos estão demonstrados nem eles tolheriam a força probatória da declaração nele contida.

Independentemente da exactidão destas considerações, importa, pois, recusar a junção dos documentos oferecidos pelo apelante, determinar que sejam desentranhados e lhe sejam restituídos, e condená-lo, por virtude desse facto, em pena processual de multa, cujo valor se julga adequado fixar em 1 UC (artº 443 nº 1 do nCPC e 27 nº 1 do RC Processuais).

3.3. Nulidade substancial da sentença impugnada.

O recorrente assaca à sentença o vício da nulidade substancial, valor negativo que radicaria na falta de fundamentação, na omissão e no excesso de pronúncia e na ambiguidade ou obscuridade que tornam ininteligível a respectiva decisão.

A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais, embora se deva notar que apenas a ausência absoluta de qualquer fundamentação – e não a fundamentação, avara, insuficiente ou deficiente - conduz à nulidade da decisão[8] (artº 208 nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 154 nº 1 do nCPC).

Isto é assim, dado que uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do seu bom fundamento. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes.

Compreende-se facilmente este dever de fundamentação, pois que os fundamentos da decisão constituem um momento essencial não só para a sua interpretação – mas também para o seu controlo pelas partes da acção e pelos tribunais de recurso[9].

A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial, e nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita - de garantia do direito ao recurso.

Portanto, o dever funcional de fundamentação não está orientado apenas para a garantia do controlo interno - partes e instâncias de recurso - do modo como o juiz exerceu os seus poderes. O cumprimento daquele dever é condição mesma de legitimação da decisão.

Na motivação da decisão o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as boas razões que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para toda a comunidade jurídica. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração e, portanto, de forma imparcial[10]. Dito doutro modo: a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão[11].

A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade.

Essa exigência de fundamentação decorre da necessidade de controlar a coerência interna e a correcção externa da decisão.

Apesar de actualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório[12].

Realmente a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de lugar à actuação por esta Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662 nº 2 c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve – no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (artº 662 nº 2 do nCPC).

Salienta-se este ponto, dado que, segundo o apelante, a nulidade da sentença decorreria, no caso, da falta de fundamentação da decisão da matéria de facto. Ora, nem a falta de fundamentação da decisão da questão de facto constitui causa de nulidade da sentença, nem, no caso, se verifica uma tal omissão. Uma leitura ainda que meramente oblíqua da sentença impugnada mostra que o Sr. Juiz de Círculo tornou patentes, com a suficiência exigível, as razões que foram decisivas para a sua convicção sobre a prova ou falta de prova dos factos controvertidos, com as quais procurou convencer as partes da correcção ou da bondade da sua decisão. Na fundamentação da decisão da questão de facto o Sr. Juiz indicou o conteúdo das diversas provas, determinou a sua relevância e procedeu à sua valoração. A acusação da falta de fundamentação da decisão da matéria de facto é, a um tempo, injusta e infundada.

É claro que o decisor da 1ª instância pode ter-se equivocado na avaliação das provas: mas esse equívoco redunda num error in iudicando daquela matéria e não num error in procedendo, por omissão de fundamentação, como é caracteristicamente aquele que constitui causa de nulidade da sentença.

A sentença deve ser motivada também através da exposição dos fundamentos de direito, que respeitam à escolha, à interpretação e aplicação, aos factos apurados, das normas jurídicas adequadas para enquadrar o caso concreto. Ora a sentença impugnada contém a indicação as normas jurídicas aplicáveis, no seu ver, ao caso e a razão de direito de que extraiu a improcedência da acção: não ter o réu violado o que acordara com o autor.

Não há, pois, a mínima razão para, por falta de fundamentação, ter a sentença impugnada por nula.

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[13]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 615 nº 1 d), 1ª parte, do nCPC). Note-se, porém, que o tribunal não tem que se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes: desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa, está afastada aquela causa de nulidade.

Dado que, uma vez celebrado o mútuo e entregue – ainda que só simbólica ou electronicamente - a coisa ao mutuário, este se torna proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando, a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade, a questão que a sentença tinha de resolver era a de saber se a apelada, ao afectar o dinheiro emprestado à satisfação de dívidas do apelante e da respectiva sociedade unipessoal violara aquele direito e se constituiu no dever de reparar o dano que, para o autor, emergia do eventual não cumprimento das prestações, resultantes para o último, do contrato promessa que o vincula relativamente a terceiros. E uma tal questão foi inteiramente resolvida pela sentença apelada, não interessando, para o caso, se bem se mal.

Nula é também a decisão quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, portanto, quando esteja viciada por excesso de pronúncia (artº 615 nº 1 d), 2ª parte, do nCPC). Por força deste corolário do princípio da disponibilidade objectiva, verifica-se um tal excesso, por exemplo, sempre que o juiz utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou absolve num pedido não formulado. O excesso de pronúncia é meramente parcial ou qualitativo se o tribunal conhece de pedido que é quantitativa ou qualitativamente diverso do que foi formulado pela parte (artº 615 nº 1 e) do nCPC).

No caso, é patente que a sentença não decidiu nem apreciou qualquer questão diversa das que foram suscitadas pelas partes nem condenou em pedido distinto do formulado pelo autor – nem, aliás, o recorrente indica ou concretiza o excesso.

Da nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia é, pois, coisa de que, em boa verdade, se não pode falar.

A nulidade da sentença pode também decorrer da sua obscuridade ou ambiguidade que torne a decisão ininteligível (artº 615 nº 1, c), 2ª parte, do nCPC). A obscuridade traduz-se num dificuldade de percepção do sentido da expressão ou da frase: a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; a ambiguidade resolve-se na possibilidade de atribuir vários sentidos a uma expressão ou frase: a decisão é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes[14]. No primeiro caso não se sabe o que o juiz ou juízes quiseram dizer; no segundo, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos – embora, em última análise, a ambiguidade seja uma forma especial de obscuridade, dado que se dado passo do acordão é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento dos juízes.

Como quer que seja, a obscuridade ou a ambiguidade só produzem nulidade se forem causa de ininteligibilidade da decisão – sendo certo, em boa lógica, que se a sentença é são obscura é porque contém algum passo cujo sentido seja ininteligível.

Também não são patentes as razões pelas quais a recorrente acha que a sentença padece de uma falta de clareza que torne a decisão ininteligível. Em todo o caso, devendo notar-se que a nulidade acusada só se verifica quando a decisão seja ininteligível, na espécie sujeita – dado que no dispositivo, a sentença se limitou secamente a julgar a acção improcedente – a probabilidade da sua ininteligibilidade seria deveras remota.

Feitas todas as contas, a conclusão a tirar é, assim, de que pelo lado da nulidade substancial da sentença impugnada, o recurso não tem bom fundamento.

3.4. Error in iudicando da matéria de facto.

3.4.1. Finalidade e parâmetros dos poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da questão de facto da 1ª instância.

A actuação pela Relação dos seus poderes de controlo relativamente ao julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se os factos tidos como assentes a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (artº 662 nº 1 do CPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[15]. O recurso ordinário de apelação não perde, mesmo neste caso, a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Depois, essa reponderação tem por finalidade e é actuada sob o signo dos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 607 nº 5 do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[16];

f) O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis tem menor probabilidade de não ser a correcta.

De outro aspecto, a Relação deve usar, mesmo oficiosamente, de poderes de rescisão ou cassatórios, e consequentemente, anular a decisão da matéria de facto da 1ª instância, sempre, por exemplo, que não constando do processo todos os elementos que permitam modificar aquela decisão, entenda que ela é, no tocante a alguns pontos de facto, contraditória (artº 662 nº 2 b) do CPC).

3.4.2. Contradição da decisão da matéria de facto.

Um dos erros em que, na fixação dos factos materiais, no ver do apelante, a sentença impugnada incorreu, consiste na contradição entre os factos, julgados provados, com os nºs 13 - O autor declarou ainda, por «fax», após celebrar a escritura de mútuo, no mesmo dia, que não autorizava nenhuma movimentação da quantia mutuada, a creditar na sua conta no Banco A…, sem que para tal desse a necessária autorização por escrito – e nº 23º - O capital que se disponibilizava ao A. por via do empréstimo titulado pela escritura de 03.04.2009, estava exclusivamente afecto à regularização e liquidação das responsabilidades do A. e da sua empresa S… – nº 24 -  o Banco … disponibilizou a quantia de €150.000,00 ao autor, apenas para regularizar e liquidar de imediato responsabilidades contraídas e já vencidas perante o Banco.

Todavia, a verdade é aquele e estes factos não colidem entre si e, portanto, não há, por isso, lugar a qualquer actividade de harmonização das respostas correspondentes.

Realmente, não há qualquer colisão entre a finalidade em vista do qual foi contraído o mútuo e a que foi afectada ou consignada a quantia mutuada e a declaração do autor em que proíbe à apelada qualquer movimentação da conta sem a sua autorização escrita. Aquele facto e estes não são logicamente incompatíveis ou incongruentes: a contradição verifica-se, isso sim – a ter-se por exacta a apontada finalidade da conclusão do contrato de mútuo – entre as condutas do autor que, depois de convencionar ou de consentir naquela finalidade, procurou obstar à sua prossecução, proibindo a movimentação da conta na qual a quantia mutuada foi lançada. De resto, esta atitude de recesso do autor só se compreende em vista daquela finalidade, dado que aquela proibição só se explica pela consciência do apelante de que a quantia mutuada lhe não seria efectivamente disponibilizada, antes seria consumida pelo mutuante na satisfação de débitos do recorrente e da sua empresa para com esse mesmo mutuante.

Não há, pois, qualquer contradição, incompatibilidade ou colisão entre os factos apontados que esta Relação deva desfazer.

3.4.2. Reponderação do julgamento dos factos impugnados.

Os factos que o recorrente reputa de mal julgados, por erro na avaliação das provas, são os que, na sentença impugnada, surgem identificados com os números 6, 17 a 19, 22 a 24 que foram julgados provados e os 1, 2, 6, 8, 9, 10 e 19 dos julgados não provados. Segundo o apelante, resposta exacta, a uns e outros factos, numa apreciação da prova com o uso da prudência, é justamente a resposta inversa.

Um dos aspectos da impugnação empreendida pelo apelante contra a decisão da matéria de facto que logo fere a atenção respeita às provas que, no seu ver, impõem, para os factos objecto de controversão, decisão diversa da encontrada pelo decisor da 1ª instância. Essa prova resume-se à prova documental – mais exactamente aos documentos 1 a 5 oferecidos pelo apelante logo com o articulado de petição inicial, e ao documento nº 1, apresentado pela apelada com o articulado em que deduziu a defesa. É nessa prova – e só nessa prova – que o apelante funda o error in iudicando que imputa á decisão impugnada, alegando mesmo que não se torna necessário fazer referência ao registo da gravação do depoimento das testemunhas, que não foi posto em causa.

Simplesmente, uma leitura ainda que pouco detida da motivação adiantada pelo Sr. Juiz de Círculo para fundamentar a decisão da matéria de facto, torna patente que uma das provas que exerceu no seu espírito uma influência considerável, foi a prova testemunhal, mais precisamente, os depoimentos das testemunhas …, produzidas pela apelada.

Ora, tendo o decisor de facto da 1ª instância formado a sua convicção sobre a veracidade e a irrealidade dos factos apontados também na prova testemunhal, então aos documentos no qual o recorrente funda a impugnação deve exigir-se um valor probatório tal que imponha para os apontados factos uma decisão diversa que não possa ser destruída por aquela prova pessoal (artº 662 nº 1 do nCPC). Estará nessas condições, o documento ou a declaração confessória que façam prova plena de qualquer daqueles factos, que o decisor da 1ª instância tenha desconsiderado (artºs 371 nº 1, 376 nº 1, 377, 352 e 358 nº 1 do Código Civil).              

O recorrente acha que a escritura pública e o respectivo documento complementar, que documentam, designadamente, a celebração do contrato de mútuo e a constituição da hipoteca voluntária destinada a assegurar a restituição do capital mutuado e da remuneração convencionada, prova – plenamente, aliás – que o mútuo se destinou ao financiamento de investimentos múltiplos, não especificados, em bens móveis.

Mas a verdade é que em lado nenhum tal documento autêntico se lê tais palavras. Ao que parece – como decorre da fundamentação da decisão da matéria de facto – uma tal frase constaria das cláusulas do documento complementar da escritura que, nessa parte, não foi adquirido para o processo, já que o documento complementar junto aos autos – oferecido pelo autor - se mostra truncado, não documentando tais cláusulas.

Aquela escritura pública e do documento que a complementa não documentam pois a finalidade com que, em última extremidade, o mútuo foi contraído, o destino ou o objectivo a que, em última análise, a quantia mutuada foi consignada ou afectada.

Mas ainda que da escritura constasse uma tal finalidade nem por isso se deveria ter por plenamente provado o facto correspondente.

A força probatória do documento consiste no valor ou na fé que, como meio de prova a lei lhe confere. Esse valor pode referir-se do documento em si mesmo; ao seu conteúdo. No primeiro caso, têm-se em vista a força probatória formal do documento, a sua autenticidade ou genuinidade; no segundo, a sua força probatória material.

A força probatória formal do documento diz, desde logo, respeito à proveniência dele, à pessoa de que emana. No tocante à proveniência do documento, estabelece a nossa lei substantiva civil fundamental uma presunção de autenticidade: desde que o documento se mostre subscrito pelo autor, com assinatura reconhecida notarialmente ou com o selo do respectivo serviço, presume-se que provêm da autoridade ou oficial público a quem é atribuído (artº 370 nºs 1 e 2 do Código Civil).

No tocante à força probatória material do documento, quer dizer, quanto às declarações ou narrações de que é continente, em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (artº 371 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

Assim, por exemplo, quando o notário afirma no documento que o leu em voz alta perante o testador, que lhe explicou o seu conteúdo e os direitos que adquiria e as obrigações que contraíam tal afirmação há-de ter-se por verdadeira; tem de admitir-se como certo que o notário praticou o acto que, no instrumento, diz ter praticado: a fé pública de que goza o documentador garante a veracidade desse facto.

Depois, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (artº 371 nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Este ponto – que é, de resto, o mais delicado da eficácia probatória do documento autêntico – deve ser entendido com habilidade. O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram[17].

De outro aspecto, os juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do juiz (artº 371, 2ª parte, do Código Civil). Se o notário, por exemplo, declarar que lhe parece estar o testador no uso das suas faculdades mentais, isso só vale como elemento sujeito à livre apreciação do juiz.

Mas se o documento prova plenamente os factos atestados que se passaram na presença do documentador, v.g., as declarações, já não prova de pleno a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídicas, pois de uma coisa e de outra não pode aperceber-se a entidade documentadora. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

Assim, por exemplo, se numa escritura pública de compra e venda, o vendedor declara ao notário que já recebeu o preço, aquele documento só faz prova plena de que aquele outorgante fez aquela declaração negocial; não prova, porém, que tal afirmação corresponde à verdade[18].

Portanto, o documento no qual sejam plasmadas, por exemplo, as declarações de vontade do testador, integrantes do negócio jurídico unilateral em que o testamento se resolve, prova plenamente que ele produziu essas declarações – mas não prova que estas não se encontram feridas com um qualquer vício na formação da vontade.

A prova plena feita pelo documento autêntico é uma prova plena qualificada, dado que só cede pela prova do contrário, mas uma tal prova em contrário tem na lei um regime especial: o da falsidade (artºs 347 e 372 nº 1 do Código Civil).

No tocante à falsidade há que fazer um distinguo entre a falsidade ideológica e a falsidade material. A primeira verifica-se se no documento se atestar como tendo sido objecto da percepção do documentador qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela autoridade ou oficial público qualquer acto que na realidade não o foi; a falsidade material ocorre se depois da formação do documento, este for alterado no seu conteúdo[19]. Este distinguo mostra que a falsidade ideológica não se confunde com a falta de autenticidade ou de genuinidade do documento: se, por exemplo, o notário refere que reconheceu a identidade do testador o que, na realidade, não aconteceu, o documento é genuíno embora falso.

Assim, se o documentador refere como praticado um determinado facto que não praticou ou atesta um facto que se não se verificou perante ele – falsidade ideológica – o documento é falso e pode ser atacado mediante a arguição da respectiva falsidade (artº 373 nºs 1 e 2 do CC); inversamente, se o documentador atesta um facto que perante ele foi declarado, embora a declaração não corresponda à verdade, o documento tem um conteúdo não verdadeiro – mas não pode ser qualificado de falso: nesta hipótese, a impugnação do conteúdo do documento não pode ser feita através da alegação da falsidade do documento, consistindo o fundamento mais comum dessa impugnação a invocação da falta ou de um vício da vontade do declarante, para a prova dos quais pode ser utilizado qualquer meio de prova (artº 393 nº 2 do Código Civil).

É exacto que a prova testemunhal, admitida juxta scripturam, i.e., para efeitos interpretativos, já não o é, porém, em princípio, contra ou praeter scripturam – i.e., para prova de quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou dos documentos particulares, quer essas convenções sejam anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento (artº 394 nº 1 do Código Civil).

Todavia, o âmbito desta proibição de produção prova testemunhal é mais restrito do que aparenta à primeira vista.

Em primeiro lugar, a proibição de produção daquela prova pessoal apenas se refere às convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento – e não a simples declarações - não excluindo, portanto, a possibilidade de provar por testemunhas qualquer outro elemento como o fim ou o motivo do negócio, dado que aquele fim ou este motivo não é nem contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional à declaração[20].

Depois, a inadmissibilidade da prova testemunhal, em contrário ou além do conteúdo do documento, não se refere à prova dos vícios da vontade ou da divergência entre a vontade e a declaração. Admite-se, portanto, sem qualquer restrição, aquela prova para demonstração, por exemplo, do erro, do dolo, da coacção, etc.[21].

Finalmente, não falta doutrina de incontestável valia científica, que sustenta que princípio da não admissibilidade daquela prova não é, nos casos apontados, absoluto. Assim, logo no contexto dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, sustentava-se a admissibilidade daquela prova, quando seja acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção que com ela se quer demonstrar[22], ou – no caso de prova da simulação pelos simuladores - quando tenha em vista fazer valer a ilicitude do contrato dissimulado ou, melhor, quanto está em jogo um interesse público que deva prevalecer sobre o das partes[23]. E já na vigência do Código Civil, continua a sustentar-se uma interpretação restritiva da proibição apontada, por parecer razoável que a prova testemunhal seja admitida quando, em consequência, das circunstâncias do caso concreto, for verosímil que a convenção foi feita, ou quando a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias e a prova testemunhal se limitou a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias[24], não tendo esta doutrina das restrições à admissibilidade daquela prova, sido formulada expressis verbis no Código, por isso se ter considerado desnecessário[25], e que as excepções que estes códigos fazem à regra da inadmissibilidade da prova testemunhal contra ou além do conteúdo do documento parecem igualmente verdadeiras no nosso direito, apesar do silêncio do Código acerca delas[26].

O objectivo da inadmissibilidade daquela prova é o de afastar os perigos que a sua admissibilidade seria susceptível de originar: quando uma das partes – ou ambas – quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio poderia socorrer-se de testemunhas para demonstrar que o negócio foi simulado, destruindo assim, mediante uma prova insegura ou pouco fiável, a eficácia do documento[27]. Tal objectivo, porém, só se compreende à luz da regra de experiência de harmonia com a qual, se as partes reduzem a escrito um determinado conjunto de declarações, é de presumir que também o façam relativamente a cláusulas contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento. Pretendeu-se, portanto, acautelar a justiça da decisão do caso, subtraindo-a à acção de litigantes e testemunhas menos escrupulosas, existindo documento – meio de prova tido por mais fiável – com força probatória plena. O legislador não terá, porém, desejado proteger situações que não merecem tutela, beneficiando quem, efectivamente, acordou verbalmente contra ou para além do documento, e na acção judicial, pretendendo subtrair-se ao cumprimento da palavra dada, alegue a inadmissibilidade da prova testemunhal[28].

Maneira que, no nosso caso, ainda que da escritura pública através da qual foi concluído o contrato de mútuo e constituída a hipoteca voluntária constasse que as partes declararam que a quantia mutuada se destinou ao financiamento de investimentos múltiplos, não especificados, em bens móveis, a única coisa que se poderia ter por plenamente provado foi que as partes produziram uma tal declaração – mas não que tal declaração correspondesse à verdade, fosse sincera.

De outro aspecto, a apelada não estava inibida de demonstrar, mesmo por recurso à prova testemunhal, que o fim ou o motivo do mútuo consistiu na regularização e liquidação das responsabilidades do A. e da sua empresa S..., que disponibilizou a quantia de €150.000,00 ao autor, apenas para regularizar e liquidar de imediato responsabilidades contraídas e já vencidas perante o Banco --- , dado que tal finalidade ou motivação não é nem contrária ao conteúdo da escritura, nem constitui uma cláusula adicional à declaração nela contida.

De resto, sempre seria de admitir a prova testemunhal para prova de tal facto, dado que outra prova documental disponibilizava um início de prova da sua veracidade: as cartas assinadas pelo apelante, dirigidas à apelada, nas quais, respectivamente, reconhece a situação de incumprimento e pede, justamente, a restruturação dos créditos, e restruturação dos contratos, através da constituição de hipoteca sobre dois bens.

Quer dizer: mesmo abstraindo da prova disponibilizada pelos depoimentos das testemunhas … – que, de harmonia com a fundamentação da decisão da matéria de facto, desfavorecem o ponto de vista do apelante - a verdade é que os documentos nos quais funda a impugnação da decisão da questão de facto estão bem longe de demonstrar a finalidade da contracção do mútuo que alegou, antes convencem que essa finalidade foi a alegada pela apelada e julgada provada pelo tribunal de 1ª instância.

E essa finalidade é, decerto, o único facto relevante, segundo a única solução plausível da questão de direito – a violação pela apelada do direito de propriedade do apelante sobre o dinheiro mutuado – i.e., segundo o único enquadramento jurídico possível do objecto da causa, pelo que a reponderação da exactidão dos demais pontos de facto objecto da impugnação é mesmo inútil e, como tal proibida (artº 130 do nCPC).

Obiter dicta, deve notar-se o seguinte.

O recorrente acha que deve julgar-se não provado que não solicitou expressamente que o mútuo tivesse por finalidade a alegada pela recorrida e não se verificava qualquer situação de incumprimento.

Em duas cartas dirigidas ao apelado, assinadas pelo apelante, que aquele recebeu em Agosto e Novembro de 2008, este declara entre outras coisas, o seguinte: que tem conhecimento do seu incumprimento, que vem dar a justificação perante esse incumprimento, que se compromete a efectuar um depósito no valor de € 40.000,00 no dia 4 de Setembro de 2008, a fim de regularizar todos os valores que se encontram em atraso, que lhe seja concedida um restruturação dos créditos, já solicitada na agência, e, solicita a restruturação dos contratos e que, para tornar possível a operação poderia hipotecar dois bens livres de ónus e encargos.

Quanto à força probatória dos documentos assinados pelo autor, tais documentos, quando genuínos, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao autor dele (artºs 374 nºs 1 e 376 nº 1 do Código Civil).

Em concreto, quanto aos documentos assinados pelo seu autor, a lei institui um sistema gradativo ou sucessivo de ilações.

Em primeiro lugar, a genuinidade da assinatura e, portanto, da autoria do documento: invocado um documento assinado, fica assente, por prova bastante, que a assinatura é genuína: se a parte não impugnar a veracidade da assinatura, ela tem-se por demonstrada (artº 374 nº 1 do Código Civil).

Da genuinidade da assinatura conclui-se a genuinidade do texto do documento: o documento cuja autoria seja reconhecida nos termos apontados faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (artº 376 nº 1 do Código Civil).

No caso, a declaração de admissão da situação de incumprimento e o pedido de restruturação dos débitos constam daquelas cartas, portanto, de documentos particulares.

Dado que o apelante não impugnou a assinatura do referido documento considera-se como certa e inatacável a sua autenticidade; a autenticidade do contexto ou do corpo do documento resulta, por sua vez, do estabelecimento da autenticidade da assinatura (artº 374 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Uma vez estabelecida a autenticidade do documento – a da assinatura e do contexto – está provado que a apelante emitiu aquelas declarações e, como o facto compreendido nessa declaração é evidentemente contrária aos seus interesses, tem de se dar como plenamente provado que o apelante estava em incumprimento e solicitou a apontada restruturação do passivo (artº 376 nºs 1 e 2 do Código Civil).

É claro que a força probatória material que se atribuir ao documento não obsta a que as declarações nele insertas sejam impugnadas com fundamento em qualquer vício a que a lei associe a ineficácia lato sensu do negócio – v.g., erro, dolo, coacção, etc. Qualquer de tais vícios pode ser provado por qualquer meio, incluindo a prova testemunhal[29].

E a demonstração da genuinidade do texto do documento transforma o documento em confessório, i.e., os factos nele relatados consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, o que, todavia, não impede que o autor do documento possa demonstrar a inveracidade desses factos[30] (artº 376 nº 2 do Código Civil).

A confissão caracteriza-se como uma declaração ou reconhecimento – declaração de ciência – e contradistingue-se pelo seu objecto: um facto desfavorável ao declarante – confitente – e favorável à parte contrária: com a declaração confessória, o confitente contra se pronuntiatio (artº 352 do Código Civil). A confissão é extrajudicial quando é feita por modo diferente da confissão judicial (artº 355 nº 4 do Código Civil).

A confissão extrajudicial segue a regra segundo a qual a confissão tem o valor probatório do meio pelo qual é comunicado ou adquirido pelo tribunal. Assim, se for comunicada por documento autêntico ou documento particular genuíno e tiver sido feita à parte contrária, tem força probatória plena (artº 358 nº 2 do Código Civil)[31].

De tudo isto pode bem pode retirar-se esta proposição conclusiva: os factos contrários aos interesses do declarante, compreendidos na declaração, constante de documento particular genuíno consideram-se verdadeiros, embora possam não o ser, por aplicação das regras da confissão, podendo, porém, o declarante, de acordo com as regra desta, valer-se dos meios de impugnação. Pode, por isso, provar que a sua declaração não correspondeu à sua vontade ou que foi afectada por algum vício de consentimento (artºs 376 nº 2 e 359 do Código Civil)[32]. O que, todavia, não é lícito ao declarante é utilizar, contra meio de prova plena, i.e., para prova de factos plenamente provados por documentos ou outro meio de prova – v.g., confissão – a prova testemunhal, dada a pouca fiabilidade deste meio de prova (artº 393 nº 2 do Código Civil). Assim, a prova testemunhal não é admissível – i.e., ocorre uma proibição de produção desta prova - para provar declaração contrária àquela que está coberta pela força probatória plena decorrente do reconhecimento ou não impugnação da letra e da assinatura pela parte contra quem o documento é apresentado[33] (artº 376 nºs 1 e 2 do Código Civil). Neste caso, mesmo que não se trate de acto sujeito a forma especial, por lei ou convenção das partes, a simples circunstância de encontrar plenamente provado, impede a que contra ele se recorra a prova testemunhal (artº 393 nº 2 do Código Civil)[34].

Portanto, os factos relativos ao incumprimento e ao pedido de restruturação das dívidas devem considerar-se plenamente provados.

O facto relativo à aprovação, pelo apelado, da restruturação e a comunicação dessa aprovação por carta de 19 de Dezembro de 2008, demonstra-se – através do escrito correspondente, oferecido pelo apelado logo com a contestação, e que o apelante não impugnou.

Nenhum dos documentos particulares oferecidos pelo autor – a telecópia com a proibição de movimentação da conta sem a sua autorização escrita ou os extractos da consulta dos respectivos movimentos – prova ou sequer deixa a dúvida, por mais infundada que seja, sobre a veracidade dos factos julgados provados pelo tribunal de 1ª instância.

Em absoluto remate: a prova na qual o recorrente funda a impugnação – mesmo abstraindo da prova testemunhal de que se socorreu o decisor de facto da 1ª instância no julgamento dos factos discutidos – não inculca que, na decisão deles, o Sr. Juiz de Círculo tenha incorrido, por violação de qualquer regra de experiência, da lógica ou da ciência, no error in iudicando alegado.

Não há, pois, razão, para modificar esse julgamento.

E, em face dos factos materiais que devem ter por definitivamente apurados, a improcedência da acção e do recurso, são meramente consequenciais.

3.5. Concretização.

Não vem oferecida qualquer dúvida, por mais leve que seja, que a escritura pública outorgada pelo apelante e pelo apelado, documenta a celebração entre aquele e este de um contrato de mútuo (artº 1142 do Código Civil)[35]. Desde que, de harmonia com a alegação da apelada, este entregou ao apelante – uma dada quantidade de espécies monetárias, rectior, dinheiro – ficando o último adstrito ao dever de as restituir, é indiscutível que concluíram entre si um contrato de mútuo – e um contrato de mútuo oneroso dado que se convencionaram juros como retribuição do mútuo (artº 1145 do Código Civil).

O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato[36]. Trata-se de uma concepção em clara regressão: de todo o modo, não haverá dificuldades em admitir, ao lado do mútuo típico real – que é aquele que surge regulado no Código Civil - mútuos meramente consensuais[37].

No caso, porém, deve assentar-se na natureza real quoad constitutionem do contrato de mútuo, devendo, por isso, exigir-se para a sua verificação a traditio – e a acceptio – da coisa mutuada.

Relativamente à sua formação, o contrato de mútuo está sujeito às regras gerais (artº 224 e ss do Código Civil). Como, porém, o contrato é real quoad constitutionem, é necessária a tradição da quantia mutuada para o mutuário para que se considere efectivamente constituído: ainda que as partes tenham acordado sobre todas as condições do contrato, antes da traditio, não há mútuo. Mas também não há mútuo – apesar da tradição de uma coisa fungível – na ausência da prova da emissão das declarações de vontade integrantes deste tipo contratual: a tradição é um acto jurídico bilateral, dado que exige a intervenção de ambas as partes na relação contratual - o autor e o receptor das coisas mutuadas - e, por isso, participa da estrutura negocial da facti species que integra, devendo ser cumprida, não apenas com a consciência e a vontade de praticar o acto – mas ainda com a intenção específica de dar e receber a título de mútuo as coisas que constituem o seu objecto.

Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando, a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.

Na espécie do recurso, o apelado entregou – ainda que electrónica e simbolicamente - ao apelante a quantia mutuada, creditando-a na conta deste, mas do mesmo passo, tornou-a indisponível ou mobilizável, e terminou para a afectar à satisfação débitos, do apelante e da sociedade unipessoal de que este é socio e gerente, para consigo. Mas isso deve-se a uma convenção das partes sobre a finalidade ou objectivo de contracção do mútuo ou, ao menos, a um consentimento ou autorização do apelante: justamente a satisfação dos apontados débitos.

Sendo isto assim, não há motivo para que se deva concluir que o apelado violou o direito de propriedade do apelante sobre as quantias mutuadas e, portanto, para a julgar vinculada ao dever de lhas restituir e, bem assim, de reparar o dano que para o recorrente decorre do eventual não cumprimento das obrigações que contraiu através do contrato promessa que concluiu com terceiros.

A improcedência do recurso é, à luz destas considerações, meramente consequencial.

Síntese recapitulativa:

a) Se o decisor de facto da 1ª instância formou a sua convicção sobre a veracidade e a irrealidade dos factos cujo julgamento é impugnado no recurso, também na prova testemunhal, deve exigir-se aos documentos nos quais o recorrente funda a impugnação  um valor probatório tal que imponha para os aqueles factos uma decisão diversa que não possa ser destruída por aquela prova pessoal;

b) o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções, mas não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram;

c) A proibição de produção de testemunhas para prova de quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou dos documentos particulares, quer essas convenções sejam anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento, não exclui a possibilidade de provar por testemunhas qualquer outro elemento como o fim ou o motivo do negócio, dado que aquele fim ou este motivo não é nem contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional à declaração;

d) Apesar de, com a conclusão do contrato de mútuo e com a entrega do dinheiro mutuado ao mutuário, este se tornar proprietário dele,  não viola este direito o mutuante que, por força de uma convenção das partes sobre a finalidade ou objectivo de contracção do mútuo ou, ao menos, por consentimento ou autorização do mutuário, afecta o dinheiro mutuado à satisfação de débitos que o último e a sua empresa, tinha para consigo.

 As custas do recurso serão satisfeitas, em razão da sua sucumbência, pelo apelante (artº 527 nºs 1 e 2 do nCPC),

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:

a) Determina-se o desentranhamento e a devolução ao apelante, J…, dos documentos que ofereceu com a sua alegação, e condena-se aquele na pena processual de multa de 1 UC;

b) Nega-se provimento ao recurso.

                                                                                                                                            

                                                                                                                             15.01.20

                                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                             Isabel Silva

                                                                                                                             Alexandre Reis

[1] Ac. da RC de 15.06.10, www.dgsi.pt.

[2] Ac. do STJ de 03.03.89, BMJ nº 385, pág. 545, e João Espírito Santo, O Documento Superveniente para Efeitos de Recurso Ordinário e Extraordinário, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 47 a 53.

[3] João Espírito Santo, O Documento Superveniente para efeito de recurso ordinário e extraordinário, cit., pág. 47.

[4] Antunes Varela, RLJ, Ano 115, pág. 95.

[5] João Espírito Santo, O Documento Superveniente para efeito de recurso ordinário e extraordinário, cit., pág. 50. No sentido que a admissibilidade da junção só se verifica quando a necessidade dela tenha sido criada, pela primeira vez, pela sentença da 1ª instância, necessidade que é criada tanto no caso de aquela sentença se ter baseado num meio de prova não oferecido pelas partes, como no caso de se ter fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes, justificadamente, não contavam, cfr. os Ac. do STJ de 26.09.12, www.dgsi.pt., e de 12.01.94, BMJ nº 433, pág. 467.

[6] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 533 e 534.

[7] A jurisprudência, por seu lado, é terminante em recusar a junção de documentos para prova de factos que, já antes da decisão recorrida, era patente estarem sujeitos a prova – assim, v.g., Acs. do STJ de 27.06.00, CJ, II, pág. 131 e de 18.02.03, CJ, STJ, I, pág. 103 e da RC de 11.01.94, CJ, I, pág. 16 – não autorizando a junção a mera surpresa quanto ao resultado do exercício da prova – Ac. do STJ de 03.03.89, BMJ nº 385, pág. 545.

[8] Ac. da RP de 06.01.94, CJ, 94,I, pág. 197

[9] Ac. do STJ de 09.12.87, BMJ nº 372, pág. 369.

[10] Michele Tarufo, Páginas sobre justicia civil, Marcial Pons, 2009, pág. 53.

[11] Michele Tarufo, cit., págs. 36 e 37.

[12] V.g., Acs. do STJ de 31.01.91, BMJ nº 403, pág. 382 e de 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558.

[13] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.

[14] Ac. da RC de 07.06.94, BMJ nº 438, pág. 569.

[15] Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.

[16] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.

[17] Vaz Serra, RLJ Ano 111, pág. 302.

[18] Ac. do STJ de 18.06.69, BMJ nº 189, pág. 246.

[19] Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, 2ª Edição, Actualizada, 2013, Almedina, Coimbra, págs. 132 a 135.

[20] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, Coimbra, 1987, pág. 343, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Coimbra, 1984, pág, 317, e Ac. do STJ de 04.03.97, www.dgsi.pt.

[21] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 275, e Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 618, e Almeida Costa, RLJ Ano 129º, pág. 361.

[22] Vaz Serra, Provas. BMJ nº 112, pág. 193.

[23] Vaz Serra, Provas, BMJ nº 112, págs. 197 e 198.

[24] Vaz Serra, RLJ Ano 103º, pág. 13.

[25] Vaz Serra, RLJ Ano 107º, pág. 311.

[26] Vaz Serra, RLJ, Ano 107º, pág. 312 e, Ano 110, pág. 383 e ss, Ano 111, pág. 3 e ss. e 115, págs. 121 e ss. No mesmo sentido, Mota Pinto, CJ, 85, III, pág. 102, e os Acs. da RL de 18.05.99, CJ, III, pág. 102 e de 02.07.09, www.dgsi.pt.

[27] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, cit., pág. 344, e Ac. do STJ de 02.11.10, www.dgsi.pt.

[28] Ac. da RL de 02.07.09, cit.

[29] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 232, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra, 1987, pág. 332 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pág. 525 e Ac. do STJ de 16.10.08, www.dgsi.pt.

[30] Ac. do STJ de 28.05.09, www.dgsi.pt.

[31] Antunes varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., págs. 552 e 554; Acs. do STJ de 09.07.14 e de 06.12.11

[32] Vaz Serra, RLJ, Ano 110, pág. 81.

[33] Ac. do STJ de 13.09.12, www.dgsi.pt.

[34] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit., págs. 274 3 275, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, cit., pág. 342 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit. págs. 525, nota 3, e 617.

[35] João Redinha, Contrato de Mútuo, Direito das Obrigações, 3º volume, sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, 1991, págs. 187 a 190.

[36] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, cit., pág. 762.

[37] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 527 e Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almeida Coimbra, pág. 156, Vaz Serra, RLJ, Ano 93, pág. 65 e José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 497 e 498. A figura dos contratos reais é um efeito da inércia, um resquício da tradição romanista que parece não desempenhar hoje, designadamente quanto ao mútuo, qualquer função útil, i.e., não corresponde a qualquer interesse relevante, específico daquele tipo negocial. Neste sentido, Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, pág. 11 a 13. Note-se, por último, que nada impede que o mútuo seja efectuado em moeda escritural, e não em moeda legal – notas, moedas. É o que, em regra, ocorre, por exemplo, com o mútuo (mercantil) bancário em que, como é da experiência comum, o banco só raramente entrega dinheiro ao cliente – entrega material – limitando-se a creditar-lhe a soma mutuada na respectiva conta bancária – entrega electrónica ou simbólica.