Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/12.1TBMGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
CONVENÇÃO ARBITRAL
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 31/86 DE 29/8, LEI Nº 38/03 DE 8/3, ARTS.288, 494 CPC
Sumário: 1. Ao tribunal judicial apenas é permitido, para decidir da procedência ou improcedência da excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral, apreciar tão só dos casos de manifesta nulidade, ineficácia, inexistência ou inexequibilidade da convenção arbitral.

2. A manifesta nulidade, ineficácia original ou superveniente ou inexequibilidade da convenção de arbitragem é aquela que se apresente ao julgador de forma evidente e que carece de qualquer produção de prova para ser apreciada.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- RELATÓRIO



         1. Os AA., RA (…) e mulher AI (…) instauraram no Tribunal de Mangualde a presente acção sob a forma de processo sumário que veio a ser distribuída ao 2º Juízo do referido Tribunal contra os RR. JJ (…) e mulher AA (…) pedindo que os RR. sejam condenados a eliminar os defeitos que a mesma apresenta alegados no Art. 32º da P.I. e ainda a pagar aos AA. uma quantia de pelo menos € 750,00 a título de indemnização pelos danos morais com juros à taxa legal desde a citação.

         Fundamentam os AA. tal pedido na celebração de um contrato de prestação de serviços entre os mesmos e o R. marido, contrato esse celebrado por escrito e datado de 29 de Março de 2004 e que juntam com a P.I., nos termos do qual o R. marido se obrigou à construção de uma moradia unifamiliar, obra essa que foi concluída pelo R. marido, mas na qual os AA. detectaram os defeitos que alegam ter denunciado ao R. marido, alguns dos quais ainda este tentou, sem êxito reparar, defeitos esses que se mantêm actualmente e que têm causado incómodos vários na procura da resolução do assunto, pelo que andam nervosos, abatidos e tristes por não verem este problema resolvido.

        

         2. Regularmente citados, os RR. apresentaram contestação na qual, para além de requererem a intervenção principal da sociedade N (…) & C (…) Lda., enquanto fornecedora da telha aplicada na moradia dos AA,, e, entre o mais que para a decisão do presente recurso não releva, invocaram a incompetência do Tribunal de Mangualde para dirimir a questão  suscitada pelos AA. na presente acção, alegando que tal questão se prende com o contrato firmado entre AA. e RR. junto com a P.I. sob o documento nº1, no qual definiram que os litígios emergentes do mesmo – como é o caso dos autos – seriam resolvidos por comum acordo, o que não foi possível, e que se não fosse possível o acordo, o assunto seria resolvido por arbitragem, o que os AA. não fizeram, pelo que, só na necessidade de resolução por via judicial – o que não é o caso, pois ainda não recorreram à arbitragem – estipularam exclusiva competência ao Tribunal da comarca de Mangualde.

        

            3. Igualmente a interveniente N (…) & C (…), Lda. na contestação que apresentou nos autos invocou, entre o mais, que do contrato de prestação de serviços celebrado entre o A. marido e o R. marido junto a fls. 4, a que a mesma é totalmente alheia, está claramente exposto na cláusula 5ª que se não for possível o acordo, o assunto será resolvido por arbitragem, pelo que, no entender da interveniente, as partes deveriam ter recorrido a tribunal arbitral para dirimir o litígio em questão, sob pena de violarem a cláusula compromissória atributiva de competência, sendo, por isso, incompetente para apreciar o mérito da causa o Tribunal da comarca de Mangualde.

         4. Na resposta que apresentaram nos autos, vieram os AA., a respeito da excepção assim invocada pelos RR. e pela interveniente, pugnar pela não aplicação da referida clausula 5ª do referido contrato por não estar em causa a “ interpretação e aplicação do protocolo “, pugnando assim, em relação à mesma pela respectiva improcedência.

            5. Foi elaborado despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral, relegando-se para a sentença final a apreciação da excepção peremptória de caducidade também invocada e do mérito da causa, apreciando-se nele, ainda, no sentido da respectiva regularidade, os demais pressupostos processuais e seleccionando-se a matéria de facto assente e controvertida.

6. Inconformado com o assim decidido a propósito da excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral, recorreram os RR. JJ (…) e esposa AA (…) encerrando o recurso de apelação interposto com as seguintes conclusões:

         “I - Os autores/recorridos não põem em causa a existência e validade do contrato de empreitada do qual consta a convenção de arbitragem, não o fazem nem a petição inicial, nem na resposta, aceitando-o como tendo sido efectivamente celebrado, não pondo em causa qualquer uma das suas cláusulas.

         II - Daí que, deveria ter sido considerado pelo tribunal a quo que a cláusula constante de tal contrato, referente à convenção de arbitragem (e que os réus/recorrentes também não puseram em causa), vinculava todas as partes do presente processo, sem excepção, e, assim concluindo, deveria ter julgado verificada a excepção de preterição do tribunal arbitral e absolvido os réus/recorrentes da instância.

         III - O princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, designado em idioma germânico por Kompetenz-kompetenz, impõe, na sua vertente negativa, a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais judiciais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes que o tribunal arbitral tenha a oportunidade de sobre essa questão decidir, pelo que, no caso presente, sempre deveria o tribunal a quo ter absolvido os réus/recorrentes da instância pelas apontadas razões.

         IV - E ainda que se entendesse que a autora e a ré não foram partes naquela convenção de arbitragem, porque não assinaram o contrato de empreitada em causa, tal só pode significar somente que não poderão ser partes no processo arbitral que venha a ter lugar, nada mais! Continuando plenamente válida a convenção de arbitragem constante do contrato de empreitada em causa, celebrado entre autor e réu, pelo que, por aqui também deveriam os réus/recorrentes ter sido absolvidos da instância.

         V - Não tendo decidido da apontada e peticionada forma, violou o tribunal a quo as disposições dos artigos 493º e 494º, do CPC e artigo 18º, n.º 1 da Lei de Arbitragem Voluntária (actual Lei n.º 63/2011; artigo 21º, n.º 1 da anterior Lei n.º 31/86). “

         Rematam os recorrentes pugnando pela substituição da sentença recorrida por outra que absolva os réus/recorrentes nos termos peticionados.



         7. Não foram apresentadas contra-alegações.

         Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.



II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso ( Arts. 684º, nº 3, 685º-A e 660º, nº 2, do CPC ), são as seguintes as questões a decidir:

- saber se se verifica a excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral.

III – FUNDAMENTAÇÃO

A) DE FACTO

         Os factos relevantes para apreciação das questões suscitadas no recurso e de acordo com as respectivas conclusões são os constantes do relatório supra e, ainda, que:

         1. No contrato em causa nos autos, epigrafado de “ Contrato de Prestação de Serviços “ junto com a P.I. figuram  o A. marido e o A. marido,  os quais também o assinam.

         2. Em tal contrato figura a cláusula 5ª, a qual tem a seguinte redacção:

            “ Os litígios emergentes da interpretação e aplicação do presente Protocolo serão resolvidos por comum acordo entre o Primeiro Outorgante e o Segundo Outorgante. Se não for possível o acordo, o assunto será resolvido por arbitragem. Na necessidade de resolução por via judicial foca desde já estipulada a exclusiva competência do foro da Comarca de Mangualde com renúncia expressa a qualquer outro “.

         B) DE DIREITO

         A Lei n.º 31/86, de 29.8 (Lei da Arbitragem Voluntária – LAV -, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 38/03, de 8.3), contém o regime da arbitragem voluntária.

         Preceitua-se no Art. º Nº1 de tal diploma legal que “desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros”.

         Já no Nº2 do mesmo Art. 1º se  explicita que “a convenção de arbitragem pode ter por objecto um litígio actual, ainda que se encontre afecto a tribunal judicial (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória).”

         Conforme impõe o Art. 2º Nº1 do regime legal da LAV a convenção de arbitragem deve ser reduzida a escrito

         O compromisso arbitral deve determinar com precisão o objecto do litígio; a cláusula compromissória deve especificar a relação jurídica a que os litígios respeitem (n.º 3 do art.º 2.º).

         A parte que pretenda instaurar o litígio no tribunal arbitral deve notificar desse facto a parte contrária, por carta registada com aviso de recepção indicando a convenção de arbitragem e precisando o objecto do litígio (caso ele não resulte já determinado da convenção de arbitragem), sem prejuízo da sua ampliação pela parte contrária (n.ºs 1 a 3 do art.º 11.º).

         Os trâmites processuais da arbitragem deverão respeitar rigorosamente os princípios da igualdade das partes e do contraditório (art.º 16.º).

         A decisão arbitral forma caso julgado e tem a mesma força executiva que a sentença do tribunal judicial de 1.ª instância (art.º 26.º).

         Ou seja, o tribunal arbitral (voluntário) assenta na autonomia da vontade, na iniciativa das partes, que acordam em submeter a resolução de um litígio a uma estrutura de natureza privada a que a lei reconhece poderes jurisdicionais.

         Na síntese formulada por Francisco Cortez, A arbitragem voluntária em Portugal: dos ricos homens aos tribunais privados, in O Direito, ano 124.º, 1992, IV, pág. 535), “em suma, a arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado”.

         Por força de uma cláusula compromissória – como é o caso da cláusula 5ª acima transcrita – as partes de um contrato podem cometer à decisão de árbitros litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (art. 1, nºs 1 e 2, da Lei 31/86, de 29/08), pelo que, excepto se também tiverem previsto uma competência concorrente, os litígios em causa não podem ser submetidos a um tribunal estadual ( cfr. Arts. 494º j) e 288º Nº1e), ambos do CPC).

         De acordo com o entendimento perfilhado no Ac. do STJ de 10.03.2011, disponível em www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto "...ao apreciar a referida excepção dilatória devem os tribunais judiciais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insusceptível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada (justificando-se, então, por evidentes razões de economia e celeridade e, face à evidência da questão, a imediata definição da competência para dirimir o litígio, de modo a dispensar a prévia instalação do tribunal arbitral sobre os pressupostos da sua própria competência ) “ . E, na esteira de outros arestos do STJ e, bem assim, na linha de uma jurisprudência que se vem afirmando como maioritária, acrescenta o mesmo acórdão: que “...vigora, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, designado em idioma germânico por Kompetenz-Kompetenz e que, na acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral do julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral".

            Tal entendimento resulta da conjugação dos artºs 21º e 12º, nº4, da citada LAV dos quais se vê que o nosso legislador sufragou o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, razão porque, ao tribunal judicial apenas é permitido, para decidir da procedência ou improcedência da excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral, apreciar tão só dos casos de manifesta nulidade, ineficácia, inexistência ou inexequibilidade da convenção arbitral.

            Daí que, conforme se salienta nos Acs. da Rel. de Lisboa, de 04-10-2011 e de 14-06-2011, disponíveis em www.dgsi.pt, apenas nos casos em for manifesta a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, pode o Juiz do tribunal judicial declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção, sendo que, nos restantes casos, tal aferição incumbe em primeira linha ao tribunal arbitral.

         A sustentação de tal entendimento, para além dos contributos doutrinários e jurisprudenciais que já o ancoravam, encontra-se agora reforçada através da consagração pelo legislador da nova Lei da Arbitragem Voluntária actualmente em vigor, aprovada Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, que, apesar de não ser aplicável ao caso dos autos em face do disposto no Art. Artigo 4º da mesma, veio pôr fim à controvérsia existente sobre tal questão, estatuindo no respectivo artigo 5.º, n.º 1, com a epígrafe “efeito negativo da convenção de arbitragem”, que: «O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível».

         Devendo, pois, ser desta forma entendida a competência dos tribunais judiciais para apreciarem a competência dos tribunais arbitrais, há que dizer, como o defendem Mariana França Gouveia e Jorge Morais Carvalho, in Convenção de Arbitragem em contratos múltiplos. Anotação ao citado Ac. do STJ de 10-03-2011, publicada no n.º 36 dos Cadernos de Direito Privado, págs. 44, cumpre que a manifesta nulidade, ineficácia original ou superveniente ou inexequibilidade da convenção de arbitragem é aquela que se apresente ao julgador de forma evidente, não carecendo de qualquer produção de prova para ser apreciada.

         Volvendo-nos sobre o caso em apreço, importa desde logo reconhecer, por que inquestionável, que no âmbito de contrato de prestação de serviços em discussão nos autos outorgado em 24/03/2004, pelas respectivas partes nele outorgantes ( o autor marido e o réu marido ) foi nele incluída uma cláusula compromissória, pois que referente a litígios eventuais - potenciais ou futuros - emergentes de uma determinada relação jurídica.

         Todavia, é também manifesto que quer a A. mulher que juntamente com o A. marido instaura a presente acção, quer a R. mulher que juntamente com o R. Marido nela é demandada, não tiveram intervenção na celebração do referido contrato no qual se mostra incluída a referida cláusula compromissória.

         Da mesma forma que é também manifesto que a interveniente Nunes & Cabral, Lda., que veio a ser chamada aos autos pelos RR., não teve qualquer intervenção na celebração do contrato em que se clausula tal compromisso arbitral.

         Donde decorre, sem necessidade de produção de qualquer prova, que a A. mulher, a R. mulher e a mencionada interveniente não aderiram por acordo aquela convenção arbitral e, como tal, não estão vinculadas à convenção de arbitragem, a qual, por isso, é ineficaz em relação às mesmas, sendo que, também de acordo com o entendimento doutrinário que vem sendo seguido, um dos cônjuges não tem legitimidade para celebrar convenções de arbitragem que possam ter reflexos sobre a esfera do outro – neste sentido, vide entre outros, Rute Luísa Pereira dos Santos, Requisitos formais e materiais da Convenção de Arbitragem, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Pós graduação em Arbitragem, in laboratorioral.fd.unl.pt/media/files/trabalho_rute_santos.doc, assim também citado na decisão recorrida.

         Bem andou, pois, o tribunal recorrido ao julgar improcedente a excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral que os RR. e a interveniente invocaram.

         IV- Sumário

         1. Ao tribunal judicial apenas é permitido, para decidir da procedência ou improcedência da excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral, apreciar tão só dos casos de manifesta nulidade, ineficácia, inexistência ou inexequibilidade da convenção arbitral.

         2. A manifesta nulidade, ineficácia original ou superveniente ou inexequibilidade da convenção de arbitragem é aquela que se apresente ao julgador de forma evidente e que carece de qualquer produção de prova para ser apreciada.



         V- Decisão

         Nesta conformidade e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelos recorrentes.

                                                

                                               Maria José Guerra (Relatora)

                                               Albertina Pedroso

                                               Virgílio Mateus