Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
195/04.4TBSBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: ACÇÃO POSSESSÓRIA
RESTITUIÇÃO
POSSE
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1251º, 1252º, 1257º, 1263º, 1265º, 1267º, 1278º, 1279º DO CC, 393º, 394º, 875º DO CC, 80º DO CÓDIGO DO NOTARIADO
Sumário: Aquele que tem a detenção da coisa – «corpus» -, que exerce o poder de facto, goza de presunção de posse, em nome próprio, pelo que, em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência do «animus».

Provando-se quem é o verdadeiro titular do direito real, se o possuidor for convencido da questão da titularidade do direito, cessa a restituição da posse, deixando a tutela possessória, de natureza provisória, destinada, unicamente, a manter determinada situação de facto, de revestir qualquer justificação.

A tradição material da coisa, concretizada através do acto de alienação, consubstancia a aquisição derivada da posse e induz a intenção do possuidor de exercer o correspondente direito de propriedade.

Não provando a ré a existência de título, nem a maior antiguidade da sua posse, que para o autor é actual e a mais antiga, não demonstrando aquela a existência de melhor posse, deve o autor ser restituído à posse do prédio.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A... propôs a presente acção, sob a forma de processo sumário, contra B..., também conhecida por C..., ambos residente em Vilar Maior, concelho do Sabugal, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a restituir, definitivamente, ao autor a posse do prédio inscrito na respectiva matriz da freguesia de Vilar Maior, sob o artigo 445, e descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n°0034/160190, invocando, para tanto, que a posse do prédio em causa lhe foi conferida, pela Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, que, por seu turno, a havia adquirido ao casal composto por D... e E....

Na contestação, a ré defende a improcedência da acção, deduzindo, também, reconvenção, onde pede que o autor seja condenado a reconhecer que o prédio, fisicamente, objecto do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, apenso, a favor do autor, foi o prédio urbano, sito na Rua da Misericórdia, constituído por casa térrea, com a superfície coberta de 35 m2, inscrito na matriz urbana da freguesia de Vilar Maior, sob o artigo 28, na titularidade de F..., o qual, desde 1933 até hoje, foi habitado, ininterruptamente, primeiro, pelo casal formado pelos pais da ré e seus irmãos, à vista de toda a gente e, também, do autor, representantes da Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, G..., H.... e marido, na convicção de que de prédio próprio se tratava e que não ofendiam, nem ofendem, direitos de terceiro, sem qualquer oposição de quem quer que fosse, a reconhecer que o referido prédio foi adquirido, por usucapião, pela herança de F..., através de posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, ao longo de 20, 30 e mais anos, a reconhecer que o referido prédio foi objecto de aquisição sucessória, por óbito de F..., ocorrida em 19 de Janeiro de 2000, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela ré/reconvinte e seus irmãos, I..., J..., L... e M..., e que as obras nele foram executadas pelo autor, na convicção de que o referido prédio não lhe pertencia.

Na resposta à contestação, o autor defende a improcedência do pedido reconvencional.

A sentença julgou improcedente, por não provado, o pedido formulado pelo autor de restituição da posse do prédio urbano, sito na Rua da Misericórdia, composto de casa térrea e curral - S.C. 40 m2 - L. 12 m2, confrontando de Norte e Poente com Manuel Marques, de Sul com José Cunha e de Nascente com rua, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 445, julgou improcedentes, por não provados, os pedidos reconvencionais formulados pela ré contra o autor e bem assim como o pedido de condenação da ré como litigante de má fé.

Desta sentença, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com uma série de conclusões, donde se extrai o pedido de reconhecimento da posse sobre o imóvel, sendo certo que, em caso de dúvida, continua, a lei sempre faria prevalecer a posse naquele que exerce o poder de facto, e este é, inequivocamente, o recorrente, pelo menos, a partir do momento em que mandou colocar no prédio um telhado novo, aliás, de valor superior ao prédio sem telhado, elemento determinante do «animus rem sibi habendi», que tem de ser imanente a despesas de vulto feitas com a coisa.

A ré não apresentou contra-alegações.

Na sentença recorrida, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando, porém, outros quatro, não subordinados a alíneas ou números, com base no disposto pelos artigos 369º, nº 1, 371º, nº 1, 373º, nº 1, 376º, nº 1, do Código Civil (CC), 659º, nº 3 e 713º, nº 2, do CPC:

Encontra-se descrito, na Conservatória do Registo Predial do Sabugal, sob o n°00034/160190, a favor de H..., por sucessão deferida por partilha extrajudicial, por óbito de G..., o prédio urbano, sito na Rua da Misericórdia, composto de casa térrea e curral - S.C. 40m2 - L.12m2, confrontando de Norte e Poente com Manuel Marques, de Sul com José Cunha e de Nascente com rua, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 445 - A) - (1).

Q... faleceu, no dia 15 de Abril de 1978 – B) – (2).

O referido Q...fez testamento, a favor de G..., instituindo-a sua universal herdeira - C) - (3).

A G... faleceu, no dia 10 de Dezembro de 1988 - D) – (4).

No dia 21 de Junho de 2004, no âmbito do processo n°72/04.9TBSBG,

do mesmo Tribunal, foi decretada a restituição provisória da posse do prédio urbano, referido em A), ao ora autor - E) – (5).

F... faleceu, no dia 19 de Janeiro de 2000 - F) – (6).

Encontra-se descrito, na Conservatória do Registo Predial do Sabugal, sob o n°00361/040206, em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de I..., J..., L..., B... e M...., por sucessão hereditária, por óbito de F..., o prédio urbano, sito na Rua da Misericórdia, composto de casa térrea, com 35 m2, confrontando de Norte com Joaquim da Cruz, do Sul com rua, do Nascente com João Jarmelo e do Poente com Manuel Bárbara, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 28 - G) – (7).

No dia 13 de Fevereiro de 1990, foi outorgada, no Cartório Notarial do Sabugal, escritura de "partilha" entre N... e marido, O..., P..., representada pela primeira, e e marido, D..., onde acordaram que o prédio, referido em A) - (1), ficaria para H... e marido, D... - 5o – (8).

O casal D... e H... utilizava o prédio, referido em A) - (1), como adega – 6º - (9).

O referido casal viveu em França – 7º - (10).

Há mais de dez anos, entregaram o prédio, verbalmente, e, a título gratuito, à Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior - 8o - (11).

O autor entregou à Santa Casa €250,00 - 12° - (12).

O autor procedeu à colocação de um telhado novo na casa - 13° - (13).

E despendeu nessas obras mais de €1.500,00 - 14° - (14).

O prédio, sito na rua da Misericórdia, composto de casa térrea e curral,

com as confrontações constantes da alínea G) da matéria assente, pertenceu, até cerca do ano de 1933, a Joaquina da Silva, avó da ré - 24° - (15).

Até ao início da década de 80, F... viveu, na casa descrita em G), embora depois de tal data aí se continuasse a deslocar - 26° - (16).

Aí habitaram, dormiram e retiraram as suas utilidades o casal formado

por F... e António Jacinto - 27° - (17).

A ré e seus irmãos aí foram criados e viveram - 28° - (18).

E fizeram-no na convicção de que não ofendiam, nem ofendem direitos

de terceiros - 30° - (19).

À vista de toda a gente – 31º - (20).

E, também, do autor, de G..., Q... e representantes da Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior - 32° - (21).

E sem oposição de quem quer que fosse, designadamente do autor, de G..., Q... e dos representantes da Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior - 33° - (22).

Na sequência da decisão, aludida em - E) – (5), no dia 7 de Julho de 2004, foi entregue ao autor o prédio, mencionado em A) - (1), no interior do qual se encontravam “43 vigas em cimento, de cerca de um metro, uma grade em madeira, quatro ripas velhas de madeira, doze bocados de madeira velha e três baldes de areia” – Documento de folhas 71 e verso do apenso do procedimento cautelar da restituição provisória de posse.

Com data de 10 de Setembro de 2003, a Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, através de documento assinado pelo Provedor, S...., declarou ter recebido do autor a quantia de duzentos e cinquenta euros, referente ao processo de aquisição do prédio da Rua da Misericórdia, prometido doar por D... e mulher a essa Santa Casa – Documento de folhas 8.

Com data de 27 de Outubro de 2004, a Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, com a assinatura do seu Presidente, R...., certificou que “não existe qualquer acta pela qual a Assembleia Geral dos irmãos da Santa Casa, ou a Direcção da Instituição, tenha aceite alguma doação relativa ao imóvel descrito na matriz urbana da freguesia de Vilar Maior concelho de Sabugal sob o artigo 445, mas existe um donativo em dinheiro no valor de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) referente ao processo de aquisição do referido artigo, prometido doar pelo Sr. D... e sua mulher a esta Instituição – Documento de folhas 101.

A presente acção deu entrada em juízo, no dia 16 de Julho de 2004 – Documento de folhas1.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir na presente apelação, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, consiste em saber se estão verificados os requisitos que determinam a procedência da presente acção de restituição da posse.

*

DA RESTIUIÇÃO DA POSSE

Analisando, criticamente, o essencial dos factos que ficaram demonstrados, importa considerar que o prédio urbano objecto de restituição provisória da posse, a favor do autor, determinada no dia 21 de Junho de 2004, no âmbito do processo apenso, foi entregue ao mesmo, através do respectivo auto, no dia 7 de Julho de 2004.

O prédio encontra-se descrito no registo predial, a favor de H..., por sucessão deferida em consequência de partilha extrajudicial, outorgada no dia 13 de Fevereiro de 1990, por óbito de G... a, falecida no dia 10 de Dezembro de 1988, que, por sua vez, o havia recebido, por instituição universal de herdeira de Q..., falecido a 15 de Abril de 1978.

O casal composto por D... e H... utilizava o prédio como adega, tendo-o entregue, verbalmente, há mais de dez anos, a título gratuito, à Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, pagando o autor pelo mesmo, em 10 de Setembro de 2003, 250,00€, que entregou aquela instituição de solidariedade social, tendo nele procedido à colocação de um telhado novo, despendendo nessas obras mais de 1500,00€.

O possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído, provisoriamente, à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência, através da providência cautelar da restituição provisória de posse, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1279º, do CC, e 393º, do CPC.

Com efeito, o autor foi, provisoriamente, restituído à posse do prédio em análise, na sequência de decisão judicial, materializada por acto de investidura material, real e efectiva, datado de 7 de Julho de 2004, em conformidade com o estipulado pelo artigo 394º, do CPC, sendo, pois, inquestionável que se encontra na sua posse, como, aliás, já acontecia, antes do esbulho praticado pela ré, objectivada pela colocação de um telhado novo na casa, em cujas obras despendeu mais de 1500,00€.

Ora, a fim de evitar a caducidade da providência cautelar decretada, nos termos do disposto pelo artigo 389º, nº 1, a), do CPC, o autor propôs a presente acção de restituição de posse, com vista a, na qualidade de possuidor esbulhado, ser restituído à situação anterior, enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito, em conformidade com o estipulado pelo artigo 1278º, nº 1, do CC.

A este propósito, prossegue o nº 2 deste artigo 1278º, do CC, que “se a posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser…restituído contra quem não tiver melhor posse”, acrescentando o respectivo nº 3 que “é melhor posse a que for titulada; na falta de título, a mais antiga; e, se tiverem igual antiguidade, a posse actual”.

São, assim, pressupostos desta acção de restituição de posse, a posse e o esbulho.

Será, então, que o autor tinha a posse do prédio, de que disse e, efectivamente, provou-se, através da procedência da providência cautelar da restituição provisória da posse, apensa, ter sido esbulhado?

Revertendo ao caso dos autos, registe-se que o poder do autor sobre o prédio urbano, consubstanciado nos actos materiais que praticou sobre o mesmo, manifesta-se, através de uma acção correspondente ao exercício do direito de propriedade, atento o disposto pelo artigo 1251º, do CC, isto é, traduz uma situação de posse.

Assim sendo, verificados que estão os requisitos da posse e do esbulho do prédio, resta saber se ocorre algum obstáculo à restituição da posse ao autor.

Quem está na posse da coisa, na generalidade das situações, goza do direito correspondente, razão pela qual se lhe não exige, desde logo, uma actividade probatória dirigida à demonstração do seu direito de propriedade sobre ela, sendo suficiente a prova da posse.

Por isso, a posse é um direito real provisório, porquanto os seus efeitos são independentes da circunstância de se saber quem é o titular do direito real sobre a coisa que está na esfera do possuidor, pelo que só actua, enquanto não for, definitivamente, apurado quem é o autêntico titular do direito real sobre o bem.

Quer isto dizer, portanto, que à pessoa que retém ou frui uma coisa, basta provar a posse, a qual, se for uma posse de ano e dia, ou seja, uma posse superior a um ano, nada mais se impõe que seja averiguado, nos termos do disposto pelo artigo 1278º, nº 2, do CC, não sendo, consequentemente, a contraparte admitida sequer a provar que tem melhor posse1.

A concepção subjectivista da posse, plasmada no ordenamento jurídico nacional, está integrada por dois elementos estruturais – o «corpus» e o «animus possidendi» -, objectivando-se aquele como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto que o último consiste na intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados 2.

Porém, considerando a dificuldade de demonstrar o «animus» e a consequente posse, em nome próprio, ressalvada a situação em que haja coincidência com a prova do direito aparente, consagrou-se uma presunção de posse, em nome próprio, por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa – «corpus» -, razão pela qual, quando seja necessário o «corpus» e o «animus», em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência deste, com base no disposto pelo artigo 1252º, nº 2, do CC3.

Efectivamente, a protecção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela provisória, destinada, unicamente, a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito real correspondente, razão pela qual a restituição da posse cessa, nos termos do preceituado pelo artigo 1278º, nº1, do CC, como já se disse, se o possuidor for convencido na questão da titularidade do direito, deixando, então, a tutela possessória de revestir qualquer justificação4.

De facto, o autor demonstrou que, sem embargo de não dispor de qualquer registo de inscrição do prédio, a seu favor, encontra-se na sua retenção e fruição, enquanto que ré, por seu turno, não provou a respectiva inscrição dominial, na sua titularidade, nem a existência de actos de posse sobre o mesmo.

E a posse, como já se disse, caracteriza-se pelo poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, atento o estipulado pelo artigo 1251º, adquirindo-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior proprietário e por inversão do título de posse, como resulta do preceituado pelo artigo 1263º, a), b) e d), ambos do CC.

Quanto à denominada aquisição originária da posse, importa ainda considerar que, em conformidade com o disposto pelo artigo 1257º, nº 1, do CC, esta mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, presumindo-se que continua nos mesmos termos que a caracterizavam no seu início, sem necessidade da prova da posse ulterior, como se refere no respectivo nº 2, conservando-se enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito, de tal modo que este possa renovar, querendo, a sua actuação material sobre ela, só deixando de existir o «corpus», extinguindo-se a posse, quando o poder de gozo não é exercido5.

A este propósito, ficou demonstrado que o autor executou no prédio actos de transformação, que consistiram na colocação de um telhado novo, reveladores, de forma inequívoca, da existência de uma relação de facto reiterada sobre o mesmo, dotada, como é óbvio, de manifesta visibilidade pública, que a presença de um telhado, pelo local da casa em que se situa, não pode, razoavelmente, escamotear.

O autor tem ainda retido e fruído o prédio, desde Setembro de 2003, na sequência de um negócio jurídico de compra e venda, celebrado com a Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, embora, substancialmente inválido, por falta de escritura pública, em conformidade com o preceituado pelos artigos 875º, do CC, e 80º, nº 1, do Código do Notariado, com a subsequente realização de obras, em valor superior a 1500,00€.

A tradição da coisa consiste na transmissão da detenção da mesma entre dois sujeitos de direito, sendo constituída pelo abandono do vendedor, a favor do autor do gozo do prédio, que constitui o seu elemento negativo, coadjuvado pela prática de inequívocos actos materiais que exerce sobre o prédio (a apprehensio), como seu elemento positivo6.

Assim, a tradição material, concretizada através do acto de alienação, acompanhada do abandono do prédio pela Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, consubstancia a aquisição derivada da posse e induz a intenção do autor de exercer o correspondente direito de propriedade.

Apesar de se tratar de um negócio jurídico nulo, por falta de forma, o autor agiu com «animus» de adquirente e, por isso, tem a posse de dono7.

A isto acresce que a inversão do título de posse, como forma de fazer cessar a sua precariedade, supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse, em nome próprio, a transformação da detenção em posse, e pode dar-se, em conformidade com o preceituado pelo artigo 1265º, do CC, por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.

Tendo-se demonstrado que o autor procedeu à colocação de um telhado novo no prédio, despendendo nessas obras mais de 1500,00€, não havendo a ré provado a sua oposição às mesmas, deve considerar-se invertido o título de posse, por oposição do detentor do direito.

Por outro lado, provando-se que o autor pagou à Santa Casa da Misericórdia de Vilar Maior, pela aquisição do prédio, o preço de 250,00€, este acto teve a virtualidade de transferir a posse, operando a respectiva inversão do título8.

Como assim, dependendo a procedência da acção de restituição da posse, em princípio, desta ter uma duração superior a um ano, o que não se demonstrou ter acontecido, porquanto decorreu entre 10 de Setembro de 2003 e 16 de Julho de 2004, a regra da “posse de ano e dia” já é susceptível de oposição possessória, só podendo o possuidor ser restituído contra quem não tiver melhor posse, sendo melhor posse a que for titulada, na falta de título, a mais antiga e, se tiverem igual antiguidade, a posse actual, em conformidade com o estipulado pelos artigos 1278, nºs 2 e 3 e 1267º, nº 1, d), do CC9.

Ora, não provando a ré a existência de título, nem a maior antiguidade da sua posse, que para o autor é actual e a mais antiga, não demonstrando aquela a existência de melhor posse, deve o autor ser restituído à posse do prédio urbano, sito na Rua da Misericórdia, composto de casa térrea e curral, a confrontar de Norte e Poente com Manuel Marques, de Sul com José Cunha e de Nascente com rua, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 445.

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CONCLUSÕES:

I - Aquele que tem a detenção da coisa – «corpus» -, que exerce o poder de facto, goza da presunção de posse, em nome próprio, pelo que, em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência do «animus».

II - Provando-se quem é o verdadeiro titular do direito real, se o possuidor for convencido na questão da titularidade do direito, cessa a restituição da posse, deixando a tutela possessória, de natureza provisória, destinada, unicamente, a manter determinada situação de facto, de revestir qualquer justificação.

III - A tradição material da coisa, concretizada através do acto de alienação, consubstancia a aquisição derivada da posse e induz a intenção do possuidor de exercer o correspondente direito de propriedade.

IV - Não provando a ré a existência de título, nem a maior antiguidade da sua posse, que para o autor é actual e a mais antiga, não demonstrando aquela a existência de melhor posse, deve o autor ser restituído à posse do prédio.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência da apelação, em julgar a acção, procedente por provada, e, em consequência, condenam a ré a restituir, definitivamente, ao autor a posse do prédio urbano, sito na Rua da Misericórdia, composto de casa térrea e curral, a confrontar de Norte e Poente com Manuel Marques, de Sul com José Cunha e de Nascente com rua, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 445, revogando, nesta parte, a sentença recorrida, que confirmam quanto ao demais.

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Custas, a cargo da ré.