Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1861/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO;
ALTERAÇÃO; MATÉRIA DE DIREITO; MÁ FÉ; IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 06/22/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática: PROCESSO CIVIL
Legislação Nacional: ARTS. ART.º 612º DO CC, 646º, Nº 4 DO CPC, 261º, Nº 3 DO CÓD. DAS SOC. COMERCIAIS
Sumário: 1. Por isso que todas as reacções e manifestações comportamentais -decisivas para a emissão de um seguro e fiável juízo de valor àcerca das declarações produzidas em audiência -, não resultam acessíveis à frieza de meios mecânicos, como sejam os registos escritos ou magnetofónicos, ao Tribunal da Relação apenas e só é dado alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa decisão.
2. Tal será o caso, notadamente, de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas -v.g. por distracção-, determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.
3. Os juízos de facto podem nuns casos ser matéria de facto e noutros matéria de direito.
4. Com efeito, há que distinguir nesses juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família, do “homo prudens”, do homem comum e aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador.
5. Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto; os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei...”
6. Daí que se algum dos juízos de valor sobre factos (ou seja, sobre matéria de facto) for indevidamente incluído no questionário, a resposta do Colectivo a esses quesitos não deve ser tida por não escrita, visto não se tratar de verdadeiras questões de direito.
7. Em sede de impugnação pauliana, para se afirmar da consciência do prejuízo por parte dos outorgantes não é necessário formular qualquer raciocínio de ordem jurídica ou apelar essencialmente para a formação especializada do julgador, razão por que esse juízo conclusivo, assentando em critério de carácter prático do homem comum, situa-se no domínio da matéria de facto.
8. O requisito da má fé (consilium fraudis), para efeitos de impugnação pauliana, não exige uma actuação dolosa, com intenção ou desígnio de prejudicar o credor –concertação do devedor e do adquirente para atentar contra o direito daquele-, se bem que se não baste também com o simples conhecimento da precária situação patrimonial do devedor.
9. Necessário –mas também suficiente-, é que o devedor e o adquirente tenham a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, estado psicológico esse que se basta com a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso em consequência da conduta, que o mesmo é dizer, negligência consciente.
10. O momento em que se deve aferir da má-fé dos intervenientes é o da celebração do acto impugnado, ou seja, aquele mediante o qual se efectivou a alienação do bem ou a transmissão do direito determinantes da impossibilidade de o credor obter a execução judicial do crédito.
11. Sendo um desses intervenientes uma sociedade, basta a consciência ou noção do prejuízo que o acto causa ao credor por parte de um qualquer dos seus gerentes –“conhecimento por um dos gerentes reputa-se conhecimento pela sociedade”-, e isso independentemente da previsão do pacto social, ainda que no sentido da intervenção de dois (ou mais) gerentes em ordem à válida vinculação da sociedade.
Decisão Texto Integral: A, intentou, no Tribunal de Círculo de Anadia, a presente acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária, contra B, e C., pedindo que seja julgada procedente a impugnação da venda do prédio feita pela 1ª Ré à 2ª Ré, reconhecendo-se-lhe o direito à restituição desse prédio na medida do seu interesse, assim como o direito de o executar no património das Rés e praticar todos os actos de conservação de garantia patrimonial, cancelando-se quaisquer ónus ou encargos feitos após a venda e que onerem o prédio.
A fundamentar tal pretensão, alega –em síntese-, que a venda impugnada foi feita com o fim de a 1ª Ré não pagar ao A. o que lhe devia, facto de que a compradora tinha perfeito conhecimento.
As Rés apresentaram defesa por impugnação, no essencial negando a 1ª que o fim da venda fosse o de evitar pagar ao A. e a 2ª Ré, por seu turno, que tivesse conhecimento de tal fim, bem como da dívida invocada pelo Autor; concluíram, ambas, pela improcedência da acção.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente.
Em recurso para ele interposto, este Tribunal da Relação de Coimbra veio, no entanto, a anular o julgamento, impondo a respectiva repetição mediante ampliação da matéria de facto.
Seguindo os autos os seus termos, foi uma vez mais proferida sentença, nos termos da qual a acção foi julgada procedente quanto a todos os formulados pedidos, com excepção daquele relativo ao cancelamento dos registos.

2.- Irresignada com o assim decidido, interpôs a Ré “Sabre, Ldª” o presente recurso de apelação, consignando, em remate das suas doutas alegações, as seguintes conclusões:
1ª - As respostas aos quesitos 5°, 6°, 9°, 10° e 11° da base instrutória deveriam ter sido negativas { não provadas) , caso se tivesse feito uma correcta análise crítica da prova produzida, designadamente, conjugando a versão dos factos apresentados pelo autor/recorrido, o depoimento substancialmente diferente da testemunha do autor/recorrido, Armando Conceição, o depoimento da testemunha da recorrente Vera Lúcia, o próprio depoimento pessoal de um gerente da recorrente, Aníbal Pires de Almeida, os documentos que se encontram diferente testemunha do nos autos, designadamente, a certidão de descrição do imóvel transmitido e a certidão do Centro Regional de Segurança Social do Centro, bem como as mais elementares regras da experiência comum do homem médio ;
2ª - A testemunha Armando Conceição afirmou que foi a casa do gerente da recorrente apenas com o autor/recorrido, enquanto este afirma na sua aliás douta petição inicial que foi avisar o gerente da recorrente juntamente com o Armando e com outra pessoa.
3ª - O depoimento de parte prestado em sede de audiência de julgamento pelo gerente da recorrente não pode ser desconsiderado pelo facto de não ter confessado os factos que a parte contrária pretendia que o fossem. Pois, no entendimento da recorrente, o depoimento de parte, apesar de não ter havido confissão, terá de ser valorado em conjugação com toda a outra prova, mesmo que tal lhe seja favorável. Toda a prova admissível em direito não pode ser unicamente unilateral, terá que valer para qualquer das partes em litígio - artigos 552° e ss do Código de Processo Civil e artigos 352° e ss. do Código Civil.
4ª - Por outro lado, a resposta ao quesito 5° também deveria ser negativa, pelo facto de conter matéria conclusiva, pois afirmar que " tinham a perfeita noção e consciência do prejuízo que causava ao credor " - artigo 612°, nº2 do C.C. - é conclusão dos factos que a patenteiam, pura matéria de facto, pois que atinente à descoberta da real intenção ou estado de espírito das partes ao emitir a declaração negocial - o chamado animus contrahendi – (Recurso de Revista n° 1221- de 28.06.01- 2a secção do Supremo tribunal de Justiça) -.
5ª - Assim, a resposta ao quesito deverá ser considerada nula, o que se requer e invoca para todos os efeitos legais, ou caso assim não se entenda, deverá ser anulado o julgamento de modo a que a 1ª instância proceda à ampliação da base instrutória e sejam introduzidos factos articulados pelas partes com vista a extrair tal conclusão.
6ª - No modesto entendimento da recorrente, a resposta ao quesito 6° deveria ser - não provada -, pois dizer que com a transmissão do imóvel a garantia patrimonial foi reduzida ter-se-ia que começar por saber qual a efectiva garantia que o credor tinha à data da transmissão.
7ª - Na verdade sobre o prédio transmitido estavam registadas penhoras e uma hipoteca legal para garantir o montante máximo de 69.527.810$00, sendo que o preço pelo qual foi vendido de 20.000.000$00 não foi impugnado. Assim o imóvel de valor de 20.000.000$00 estava a garantir o pagamento de cerca de 70.000.000$00, sendo que o recorrido não tinha qualquer registo eficaz sobre o mesmo.
8ª - Ou seja, a garantia patrimonial do credor no momento da transmissão era nula, pelo que não poderia ser reduzida.
9ª - Por outro lado, a ré Crina L.dª teve de vender esse imóvel para fazer face a essa oportunidade única de pagando cerca de 7.000.000$00 deixar de pagar cerca de 70.000.000$00, ou seja, a sua única intenção foi de fazer uma óptima gestão dos seus recurso, como faria qualquer gestor médio. Foi sobretudo um óptimo acto de gestão empresarial e da garantia patrimonial estava a de cerca de não houve diminuição do crédito do autor / recorrido.
10ª - Do lado da recorrente e caso não outorgasse a escritura pública poderia ser responsabilizada pelos prejuízos que daí adviessem - artigo 798° do Código Civil -, eventualmente o pagamento de indemnização à Crina L.dª da quantia de 70.000.000$00, pois estava ela obrigada, por contrato promessa de compra e venda, que se encontrava registado, a outorgar a dita escritura.
11ª - Ainda, a fundamentação das respostas aos quesitos 5° e 6°, quanto ao gerente da Crina L.dª, Sr. Francisco Santos, não pode proceder, visto que não se encontram especificados os motivos que foram decisivos para a convicção do julgador. Pois dizer que a resposta a tais quesitos" é evidente " viola o disposto no artigo 653°, n.º 2 do C.P.C..
12ª - Deste modo, a recorrente invoca a nulidade, para todos os efeitos legais, das respostas aos quesitos 5° e 6° no que tange ao gerente da ré Crina L.da.
13ª - Sem prescindir, questão essencial é saber qual o momento em que se deve aferir da má-fé dos intervenientes, se no momento em que se celebrou o contrato promessa de compra e venda, em 07.11.96, cuja outorga, por parte da promitente compradora, foi efectuada por pessoas totalmente distintas das que outorgaram a escritura pública de compra e venda, tituladora desse contrato ou no momento em que houve a cessão da totalidade do capital social para os novos sócios e gerentes - 30.12.98 - e que vieram a outorgar a escritura pública de compra e venda ou no momento em que se outorgou esta última - 27-01-1999? O animus contrahendi na celebração do contrato promessa de compra e venda aconteceu exactamente com a celebração do contrato promessa de compra e venda.
14ª - Caso assim não se entenda e no que diz respeito aos intervenientes da escritura em representação da Sabre L.da o animus contrahendi aconteceu exactamente no dia em que esses intervenientes adquiriram a totalidade do seu capital social e assumiram a gerência, ou seja, no dia 30.12.98.
15ª - Ou seja, a recorrente no momento em que assumiu a obrigação de comprar o dito imóvel não tinha a consciência do prejuízo que com tal acto causaria ao credor .
16ª - Se a recorrente não outorgasse a escritura pública de compra e venda poderia vir a ser responsabilizada pelos prejuízos que tal negação causasse à promitente vendedora, incluindo o pagamento da quantia de cerca de 70.000.000$00. Ou seja, a intenção da recorrente ao outorgar a escritura foi de cumprir uma obrigação anteriormente assumida.
17ª - Ou seja, a intenção da recorrente nunca foi em prejudicar o credor / recorrido / autor.
18ª - A recorrente, por fim, entende que a eventual má-fé de um gerente não contamina a boa-fé de um outro gerente, sempre que a sociedade apenas se vincule com a intervenção de dois gerentes. Ou seja, para que houvesse má-fé da recorrente seria necessário estar provado, o que efectivamente não aconteceu, que todos os gerentes outorgantes da escritura pública estivessem imbuídos de má-fé.

3. O Apelado apresentou, por sua vez, contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
4. Colhidos que se mostram os competentes vistos legais, cumpre decidir.

II – DOS FACTOS
Na douta sentença ora sob recurso foi considerada provada a seguinte factualidade:
1 - A ré Crina, L.da, é uma sociedade comercial que se encontra matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Águeda sob o n.º 558/770621, tendo por objecto a indústria de cofres monobloco, cofres de parede, portas-fortes, sistemas de segurança e mobiliário metálico, possuindo sede e estabelecimento em Travassô, deste conselho de Águeda ( docs. fls. 17 a 21 ). –al. A).
2 - A ré Sabre, L.da, é uma sociedade comercial que se encontra matriculada na mesma Conservatória sob o n.o 1898/950323, tendo por objecto o fabrico de mobiliário metálico industrial, componentes metálicos de suspensão e acondicionamento de ferramentas, peças e acessórios industriais, mobiliário metálico de segurança e estantes metálicas, tendo como únicos sócios Bruno Alexandre Alves dos Santos e Carlos Orlando Alves dos Santos, solteiros, maiores, cada um com uma quota de 1.250.000$ (doc. fls. 23 a 25). –al. B).
3 - O Carlos Orlando nasceu a 21/7/76 e o Bruno Alexandre nasceu a 22/4/75, e são filhos de Francisco António dos Santos e Maria Clementina Alves da Costa dos Santos (assentos de nascimento de fls. 336 e 337). –al. B1).
4 - No dia 10/9/93, o autor comunicou à ré Crina, L.da, através de carta registada com a/r, a sua intenção de fazer cessar o contrato de trabalho, com efeitos a partir de 20/9/93, alegando falta de pagamento de retribuições ( doc. fls. 13 a 15). –al. C).
5 - Em 16/5/94, o autor intentou acção, com processo ordinário, contra a mesma ré, que correu termos, com o n.º 303/94, pela 1ª secção do Tribunal de Trabalho de Aveiro, em que pedia a condenação da ré a pagar-lhe o montante de 2.234.056$, referente a retribuições, férias, subsídio de férias e indemnização pela rescisão do contrato de trabalho por falta de pagamento pontual da retribuição (doc. fls. 7 a 9). –al. D).
6 - A ré nessa acção foi citada por carta registada com a/r enviada em 19/5/94, tendo sido recebida em 27/5/94, e ali constituiu mandatária, por procuração datada de 20/6/94 (doc. fls. 10 a 12). –al. E).
7 - Por sentença de 22/6/95, tal acção foi julgada parcialmente procedente e a ali ré condenada a pagar ao autor a quantia global de 978.000$ de retribuições e subsídios, acrescida de juros à taxa de 15% ao ano desde 20/9/93 até pagamento e a indemnização de 1.040.000$, acrescida de juros de mora desde 27/5/94 até pagamento (doc. fls. 13 a 15). –al. E1).
8 - A mesma ré foi notificada dessa sentença, na pessoa da sua ilustre mandatária, por carta registada de 23/6/95 ( doc. fls. 15 vº).–al. F).
9 - Por não sido efectuado o pagamento dessas quantias, o autor intentou execução de sentença em 18/6/96, que corre termos com o n.º 303-A/94, tendo nomeado à penhora um edifício de rés-do-chão destinado à industria fabril e anexo um edifício de rés-do-chão destinado a armazém, inscrito na matriz urbana sob o art. 567 da freguesia de Travassô e descrito na CRP de Águeda sob o n.º 00276/020388- Travassô (doc. fls. 27). –al. G).
10 - Foi deprecada e efectuada a penhora desse imóvel, por termo de 4/7/96, o que foi notificado à mandatária da aí executada por carta registada de 8/7/96 (doc. fls. 33 e 34). –al. H).
11 - Foi ainda deprecada a venda desse imóvel a esta comarca, mas depois foi tal carta devolvida a solicitação do tribunal deprecante, por tal penhora estar registada provisoriamente, e por despacho de 26/11/97 foi ordenada a sustação dos autos de execução por existirem penhoras, a favor da Fazenda Nacional, registadas anteriormente (doc. fls. 35 a 44). –al. I).
12 - Os únicos sócios da Crina, L.da, em 10/10/90, eram os já referidos Francisco António dos Santos e mulher Maria Clementina e Ramiro Cardoso Martins, com as quotas de 2.162.000$, 1.150.000$ e 1.288.000$, respectivamente. Em 11/10/90 este Ramiro Cardoso cedeu a sua quota aos filhos daqueles, Bruno Alexandre e Carlos Orlando, menores ( doc. fls. 17 a 21). –al. J).
13 - Nessa mesma data houve alteração do contrato de sociedade dessa ré, tendo o art. 4° passado a ter a seguinte redacção: para exercer a gerência até à assembleia geral ordinária a efectuar até 31/3/93, fica desde já nomeado gerente o sócio Francisco António dos Santos, cuja intervenção e assinatura será bastante para obrigar e vincular a sociedade em todos os seus actos e contratos (mesmo doc. ). –al. L).
14 - Em 15/6/94 aquele sócio-gerente Francisco Santos foi designado como gerente ate à assembleia geral ordinária a realizar até ao dia 31/3/96, cuja intervenção e assinatura será bastante para obrigar e vincular a sociedade em todos os seus actos e contratos (mesmo doc.). –al. M).
15 - O contrato de sociedade da ré Sabre, L.da, estabelece que "para vincular e obrigar a sociedade será necessária a intervenção do numero de gerentes que a Assembleia Geral que proceder à sua eleição deliberar" e ainda que "poderá ser deliberado que a sociedade se obrigue pela intervenção conjunta de gerente ou gerentes eleitos e ( ou) de mandatário ou mandatários constituídos pela sociedade ". Mais estabelece que " a Assembleia Geral poderá ainda deliberar que, para obrigar a sociedades seja imprescindível a intervenção ou assinatura de determinado gerente " e ainda que " os gerentes eleitos poderão livremente constituir mandatários da sociedade a quem poderão dar poderes para praticar determinados actos ou tipo de actos em representação da sociedade", bem como que "até à Assembleia Geral anual a realizar até 31/3/98 fica desde já nomeada gerente única do sociedade Maria Clementina Alves da Costa Santos, bastando a sua assinatura para obrigar a sociedade ( doc fls. 23 a 25). –al. N).
16 - Em 7/11/96, a sócia da ré Crina, L.da, Maria Clementina, cedeu a sua quota de 1.150.000$ a José Pedro Pinto de Sousa Moreira e na mesma data os sócios Alexandre e Carlos Orlando dividiram a quota de 1.288.000$ que detinham em comum nessa sociedade ré em duas quotas de 644.000$, tendo cedido uma a José Pedro Pinto de Sousa Moreira e outra a António dos Santos, seu pai ( doc. fls. 17 a 21 ). –al. O).
17 - Nesse mesmo dia 7/11/96 a ré Crina, L.da, na qualidade de promitente vendedora, e a ré Sabre, L.da, na qualidade de promitente compradora, celebraram contrato promessa de compra e venda do prédio urbano mencionado em G), sendo a primeira ré aí representada pelo seu sócio José Pedro, tendo esse contrato sido registado - Cota G-5 - Ap.25/111196 (doc. fls. 45 a 49, e 35 a 37, aqui dados como reproduzidos), –al. P).
18 - Por escritura de 30/12/98, os sócios da ré Sabre, L.da, Bruno Alexandre e Carlos Orlando cederam a quota que cada um deles detinha a Aníbal Pires de Almeida e Arménio Neves Pereira da Silva e alteraram o contrato de sociedade, eliminando as cláusulas em N) e aí declararam que todos os créditos e demais direitos que a sociedade venha a receber por facto ocorrido antes da celebração dessa escritura ficam a pertencer aos sócios cedentes ( doc. fls. 50 a 54 ). –al. Q).
19 - bem como que todos os débitos, indemnizações, impostos, multas, taxas e todas as demais despesas, dívidas e juros que existam ou surjam por facto ocorrido em data anterior à celebração desta escritura são da responsabilidade pessoal e solidária dos sócio cedentes. –al. Q1).
20 - E que caso os sócios cedentes entendam que a Sabre deva litigar judicialmente ou noutro foro apropriado, quer exigindo seus créditos ou direitos, quer impugnando quaisquer dívidas reclamadas, assim como em todos litígios pendentes, os sócios cedentes assumem, em exclusivo e pessoalmente, todas as despesas inerentes, maxime, custas, preparos, honorários de mandatário judicial e demais despesas necessárias para dirimir tal conflito, obrigando-se a diligenciar, com a máxima celeridade, a resolução judicial ou extra judicial desses conflitos –al. Q2).
21 - Ficou acordado que a sociedade seria administrada e representada, activa e passivamente em todos os negócios sociais e em juízo e fora dele por dois gerentes eleitos em assembleia geral, ficando desde ,já nomeados os actuais sócios. –al. Q3).
22 - Por escritura publica de 27/1/99, a ré Crina, L.da, vendeu à ré Sabre, L.da, o prédio urbano mencionado em G) e P), pelo preço de 20.000.000$, já recebidos (doc. de fl5.. 55 a 59). –al. R).
23 - O autor foi admitido ao serviço da ré Crina, L.da, em 5/1/81, para trabalhar sob suas ordens, direcção e fiscalização, com a categoria de escriturário de 2ª ( doc. fls. 13 a 15). –al. S).
24 - No dia 1/3/99, pelas 9h30, no lugar de Travassô, Águeda, nas instalações da Sabre, foram penhorados, nos autos de carta precatória 272/98, vinda do 2° juízo, 2ª secção, do tribunal cível de Lisboa, extraída da execução por custas 1382-A/93, em que é exequente o Ministério Público e executada a Crina, L.da, para segurança e pagamento de 161.494$, dois cofres monobloco, de 1,20m de altura, de cor bege, inacabados, avaliados, cada um, em 100.000$ (docs. de fls. 145 e 146). –al. T).
25 - A ré Crina, procedeu ao pagamento de 6.963.156$, referente a dívidas de contribuições ao Serviço Sub-Regional de Aveiro, do Centro Regional de Segurança Social do Centro, e cotizações do ex-Gabinete de Gestão de Fundo do Desemprego, na modalidade de pronto pagamento ao abrigo do artigo 4/4 do Dec. Lei 124/96, com dispensa de juros de mora vencidos e vincendos. A não se ter verificado esse enquadramento legal, àquela dívida acresceriam 63.159.871$ de juros de mora vencidos à data de 31/12/98 (doc. de fls. 151). –al. U).
26 - A ré Sabre, L.dª nunca exerceu, de facto, qualquer actividade. – resp. qt.º 1º.
27 - E foi constituída com o único objectivo de passar a existir uma entidade para a qual pudesse ser transferido o único bem imóvel pertencente à ré Crina, L.da. – resp. qt.º 2º.
28 - Os seus sócios Bruno e Carlos nunca exerceram na sociedade qualquer actividade, sendo estudantes, e limitaram-se a dar o seu nome. – resp. qt.º 3º.
29 - O sócio José Pedro nunca participou na mínima actividade da ré Crina, L.da, e sempre foi um "testa de ferro" do sócio Francisco António. – resp. qt.º 4º.
30- Francisco António dos Santos e Aníbal Pires de Almeida -intervenientes na escritura aludida em r) [supra, 22]- tinham perfeita noção e consciência de que actuavam em prejuízo do autor. – resp. qt.º 5º.
31 - Aqueles outorgantes sabiam que a ré Crina era devedora àquele e que, com aquele acto, diminuíam a sua garantia patrimonial. – resp. qt.º 6º.
32 - No dia 24/1/99, pelas 21h, o autor foi avisar Aníbal Pires de Almeida, na sua residência, que tinha um crédito sobre a ré Crina, que existia uma penhora sobre o prédio desta e que no caso de haver transmissão deste prédio intentaria acção de impugnação pauliana. – resp. qt.ºs 9º a 11º.

III – DO DIREITO
1. O âmbito do recurso, como é sabido, é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, de harmonia com o estipulado nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, circunscrevendo-se -salvo as de conhecimento oficioso-, às questões aí equacionadas.
Destarte, e tendo em mente as acima transcritas conclusões, cuidemos das questões em tal súmula suscitadas.

2. A Recorrente, em ordem a conseguir a revogação da douta sentença recorrida, começa, antes de mais, por impugnar a decisão sobre a matéria de facto, mais precisamente no tocante às respostas conferidas aos quesitos 5º, 6º, 9º, 10º e 11º da Base Instrutória, dizendo que caso se tivesse feito uma correcta análise crítica da prova produzida, essas respostas teriam sido – ao invés do que aconteceu-, todas negativas (não provadas).
Vejamos.

3. Começa a Recorrente por dizer que tendo a fundamentação da decisão quanto a esses quesitos, no que tange à pessoa de Aníbal Pires de Almeida, apenas se alicerçado no depoimento da testemunha Armando Conceição, sucede, no entanto, que tal depoimento é contraditório com o alegado pelo A./Recorrido na sua petição inicial. Com efeito, enquanto aquele (Armando Conceição) afirma que foi a casa do gerente da Recorrente apenas com o A./Recorrido, este, em tal peça, afirma que foi avisar tal gerente (da existência do seu crédito) juntamente com o Armando e com outra pessoa..
No entendimento da recorrente, tal depoimento não é credível, nem idóneo e padece de falta de isenção.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a Recorrente.

A eventual discordância entre o alegado pela parte e o afirmado por testemunha por si oferecida não leva de forma nenhuma a concluir que é no depoimento desta última que reside a desconformidade com a verdade.
Seríamos tentados a dizer que a ilação deveria ser até em sentido oposto; tal discrepância, partindo de quem não é, em princípio, pessoa interessada no desfecho da lide, significará, por norma, que são as suas afirmações que se identificam com a realidade e não as do pleiteante, a cuja iniciativa se deveu a sua (da testemunha) intervenção no processo.

Como quer que seja, no caso em apreço, porém, além de essas afirmações da testemunha Armando Conceição serem, de forma inequívoca, corroboradas pela testemunha Francisco Morais, sucede ainda que tanto do depoimento de uma como de outra dessas testemunhas deflui a provável razão para essa imprecisa, errónea alegação do aqui Autor.
É que, nesse dia, foram várias as vezes que o A. se deslocou a casa do dito gerente Aníbal Almeida. E conquanto apenas da última tenha logrado ali o encontrar e com ele falar, estando então apenas acompanhado do dito Armando Conceição, o certo é nas vezes anteriores o fez na companhia de ambas as testemunhas, não conseguindo, no entanto, os seus intentos por ausência deste último da residência.
Assim, verdade é que os três (A. e testemunhas) se deslocaram à casa do dito gerente e que o A. falou com aquele, tendo a não presença da testemunha Francisco Morais, aquando desse efectivo encontro -pela irrelevância do facto (essa ausência)-, sido certamente subestimada no quadro de recordações do Autor.
De tal sorte, além de a enfocada discrepância entre a alegação do A. e o depoimento da testemunha Armando Conceição se nos apresentar longe de anómala, e muito menos suspicaz, certo é que em nada a mesma põe em causa esse depoimento, que, diversamente daquela alegação, se mostra, ao que tudo indica, em completa sintonia com a realidade.
E, portanto, e contrariamente ao pretendido pela Recorrente, perfeitamente credível e merecedor de fé.

4. Sustenta em seguida a Recorrente que o depoimento de parte prestado pelo seu gerente (o aludido Aníbal Almeida) não pode ser desconsiderado pelo facto de não ter confessado os factos que a parte contrária pretendia, antes tem de ser valorado em conjugação com toda a outra prova, mesmo que tal lhe seja favorável.
Que dizer?

Em tese geral, concordamos inteiramente com a Recorrente.
Aliás, já o Prof. Antunes Varela ensina no seu Manual de Processo Civil, 2ª ed., C. Editora, que o depoimento de parte quando não redunde em confissão está sujeito, quanto à determinação do seu valor probatório, à regra da livre apreciação da prova pelo tribunal (pp. 553 e 573).
Mas isso não conduz a que, no caso em apreço, se deva forçosamente conferir razão à Recorrente e, em consequência, preterir o depoimento da sobredita testemunha Armando Conceição em favor das declarações do seu (da Recorrente) gerente, designadamente na parte em que aquela testemunha afirma que o A. se deslocou a casa desse gerente em 24 de Janeiro de 1999 –e portanto antes da celebração da escritura de venda das instalações- e este último que tal deslocação apenas se verificou no mês de Fevereiro seguinte e, logo, depois da realização de tal escritura.
Ouvindo ambas as declarações, assim como toda a demais prova pessoal produzida em julgamento, o Mm.º Juiz –quanto a esse facto-, outorgou plena credibilidade às declarações da dita testemunha em detrimento do depoimento do gerente Aníbal Almeida.
Terá procedido acertadamente, ou, ao invés -e conforme o pretendido pela Recorrente-, errou na sua apreciação, impondo-se, consequentemente, alterar o respectivo juízo fáctico?
Vejamos de novo.

5. Como é sabido, segundo se estipula na al. a), do n.º 1, do art. 712º, do Cód. Proc. Civil, a Relação pode alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida.
Ora, no caso em exame, essa gravação dos depoimentos emitidos em audiência teve efectivamente lugar.
Sem embargo, e antes de entrar propriamente na pretendida sindicação do julgamento fáctico realizado pelo Tribunal “a quo”, perscrutando o teor das gravações efectuadas e respectiva transcrição, importa, sobremaneira, tecer algumas e pertinentes considerações.

6. Assim é que proficientemente discorrendo sobre o novo regime introduzido pelo D.L. n.º 39/95, de 15 de Fev. –o qual, como é sabido, instituiu no nosso ordenamento a gravação da prova produzida em audiência-, consigna-se no Ac. da R.L. de 13-11-2001, Col., V, pág. 85, que “Apesar da maior amplitude conferida pela reforma de processo civil a um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, a verdade é que não se trata de um segundo julgamento, devendo o tribunal apreciar apenas os aspectos sob controvérsia. Por outro lado, malgrado a gravação magnética dos depoimentos oralmente prestados perante o Tribunal “a quo”, as circunstâncias que a este Tribunal se colocam não são inteiramente coincidentes.”.
E continuando: “Isto para concluir, afinal, que mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade.”

Em sentido equipolente, escreve-se no Ac. desta Relação de 3-10-2000, Col., IV, pág. 28, que “o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.”.
E isso porquanto –conforme no mesmo aresto também se doutrina-, “a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no art. 655º, nº 1 do C. P. Civil –o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto-, sendo que na formação dessa convicção não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio”

Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade -à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência (Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Proc. Civil”, Lex, pág. 348) -, da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que na reapreciação da matéria de facto à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.

Neste conspecto, importa ainda considerar –tomando a sábia lição de Eurico Lopes Cardoso, in Bol. 80-203 (apud António Geraldes, Temas da Reforma do Proc. Civil, II Vol., Almedina, pág. 257, nota 346)- que “os depoimentos não são palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe. O magistrado experiente sabe tirar partido desses elementos intraduzíveis e subtis. Nisto consiste a sua arte. As próprias reacções quase imperceptíveis do auditório vão-se acumulando no espírito do julgador, ávido de verdade, e vão formar uma convicção cujos motivos lhe será muitas vezes impossível explicar.”
Neste mesmo pendor se pronuncia também o Prof. A. Reis, Anotado, IV Vol., pág. 137, onde refere que “É já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no acto do depoimento.”
E é por isso, pois, que todas estas reacções e manifestações comportamentais -decisivas para a emissão de um seguro e fiável juízo de valor-, não resultam acessíveis à frieza de meios mecânicos, como sejam os registos escritos ou magnetofónicos (cfr. António Geraldes, ob. cit., pp. 257-258), que ao Tribunal da Relação apenas e só é dado alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa decisão.
Tal será o caso, como dissemos, de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas -v.g. por distracção-, determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

7. Vertidas estas considerações, feitas mister para a cabal realização do desempenho a que nos vimos remetendo, e que se sabe ser a reapreciação do julgamento fáctico efectuado pelo Tribunal recorrido, presente o confronto entre os depoimentos do gerente da Recorrente e o da sobredita testemunha Armando Conceição, retoma-se aquela formulada pergunta:
-Houve-se, ou não, o Mmº Juiz acertadamente na prevalente credibilidade que conferiu a este último depoimento, foi ou não esse seu juízo conforme com os antes mencionados cânones de razoabilidade?
Ressalvando o muito respeito por diferente opinativo, pensamos que a resposta a esta interrogação não pode deixar de ser afirmativa.

8. Na douta motivação à decisão fáctica lê-se que “: nem aquilo que o Sr. Aníbal nem aquilo que a mulher deste disseram, conseguiu criar uma dúvida razoável quanto ao depoimento da testemunha Armando que disse o que consta dos quesitos 9 a 11, do que sabe por o ter presenciado, convencendo que assim tinha sido.”
Deste teor deriva, pois, que o Mm.º Juiz conferiu inequívoco e inabalável credito ao depoimento da testemunha Armando Conceição, desde logo, por isso que ele narrou os factos constantes dos quesitos 9º a 11º [facto 32)], aos quais pessoalmente presenciou.
E na verdade, auscultando a concernente gravação, constata-se que assim é, que o depoimento da referida testemunha se reveste, efectivamente, de todo esse conteúdo que lhe é apontado: a testemunha, como já antes se consignou, refere que no dia 24 de Janeiro de 1999 acompanhou o A. à casa do gerente da Recorrente e que, uma vez lá, presenciou a conversa entre aqueles, na qual o A. informou o respectivo interlocutor do seu crédito sobre a Ré Crina.
Esse depoimento, no tocante aquela data, é, como antes também dissemos, contrariado pelo depoimento do dito gerente, bem como pelo da mulher deste, a testemunha da Ré/Recorrente Vera Lúcia Alves.
Estando todos estes três depoimentos em igualdade de valor probatório -livre apreciação-, certo é que, não se vislumbrando nada que infirme ou debilite o da enfocada testemunha, acontece até que o mesmo é corroborado, no essencial, pelo da também já mencionada testemunha Francisco Morais.
Ora, os referidos Aníbal Almeida e mulher são pessoas directamente interessadas no desfecho da presente lide, o mesmo não se passando com tais testemunhas, notadamente o Armando Conceição.
Bem se compreende e aceita, pois, a credibilidade que o Exm.º Magistrado lhe outorgou.
Como escreve o Prof. Antunes Varela, ob. cit., pág. 553, “A tendência natural das pessoas é para falarem a verdade. Se alguma inclinação vulgar se pode aditar-lhe, será a de as pessoas tenderem a distorcer a realidade em seu proveito, especialmente se entram em conflito com alguém.”
Perante os limitados meios de que dispomos, pois, a apreciação do Mm.º Juiz -efectivada no insubstituível contexto da imediação da prova-, surge-nos assim claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando por isso a respectiva alteração.
O presente caso, manifestamente, não se reconduz a um daqueles flagrantes e excepcionais em que, como vimos, essa alteração é de ocorrência forçosa.

9. Sustenta em seguida a Recorrente que a resposta ao quesito 5º -“provado apenas que Francisco António dos Santos e Aníbal Pires de Almeida – intervenientes na escritura aludida em r)—tinham perfeita noção e consciência de que actuavam em prejuízo do autor” [supra, facto 30)]- deve ser considerada nula por conter matéria conclusiva.
Sempre com o muito respeito, uma vez mais discordamos da Recorrente.

Ao desferir esse reparo quanto à referida resposta, a Recorrente mostra alinhar com aquela corrente que assimila, por analogia, as conclusões de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) às conclusões de direito, tornando assim a respectiva matéria ou conteúdo insusceptível de integrar o substracto factual base da decisão, por virtude do disposto no art.º 646º, nº 4, do CPC.
Só que, como se adverte no prestimoso estudo do Exmº Conselheiro Abel Simões Freira, in Col./STJ, 2003, III, pp. 5 e ss., os juízos de facto podem nuns casos ser matéria de facto e noutros matéria de direito.
Na verdade, e tal como ensina Antunes Varela, in RLJ, Ano 122º, pp. 220-, “Há que distinguir nesses juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum e aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador.”
E continua: “Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto... Os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei...”
Para mais à frente concluir. “Se, porém, algum dos juízos de valor sobre factos (ou seja, sobre matéria de facto) for indevidamente incluído no questionário, a resposta do colectivo a esses quesitos não deve ser tida por não escrita, por aplicação do disposto no nº 4 do art.º 646º do CPC, visto não se tratar de verdadeiras questões de direito.”
Em idêntico pendor, vem a nossa jurisprudência superior sustentando que se o apuramento de determinada realidade se efectua à margem da aplicação da lei, tratando-se apenas de averiguar factos cuja existência não depende da correcta interpretação a dar a qualquer norma jurídica, estaremos perante o domínio da matéria de facto. Porém, e diversamente, já será questão de direito tudo o que respeita `a interpretação e aplicação da lei, pelo que existirá matéria de direito sempre que para se atingir uma solução seja necessário recorrer a uma disposição legal, mesmo que se trate somente de fixar a interpretação duma simples palavra da lei (vide, i. a., Acs. do STJ de 22-2-1995 e de 8-11-95, in Col./STJ, I, pág. 279 e II, pág. 294, respectivamente.
Ora, no caso em análise –e tal como se afirma no acórdão do STJ (de 28-06-01, Rev. 1221), a cujo sumário a Recorrente, expressamente, apela-, na resposta àquele quesito 5º acha-se, sem dúvida, implícito um certo juízo valorativo ou conclusivo; só que –como no mesmo aresto também se consigna-, essa evidenciada “conclusão dos factos” (é) pura matéria de facto (sublinhado nosso), pois que atinente à descoberta da real intenção ou estado de espírito das partes ao emitir a declaração negocial -o chamado animus contrahendi.”
Ou seja- e consoante o expendido no Ac. do STJ de 3-5-2000, in Bol. 497º- 315, que decidiu exactamente a questão que ora nos ocupa-, para se afirmar da consciência do prejuízo por parte dos outorgantes “não foi necessário formular qualquer raciocínio de ordem jurídica ou apelar essencialmente para a formação especializada do julgador ..., razão por que esse juízo conclusivo, assentando em critério de carácter prático do homem comum, situa-se no domínio da matéria de facto” – no mesmo sentido, ainda, o Ac. do STJ de 15-2-2000, in Bol. 494º-307.
E como matéria de facto -acrescentaremos nós em ordem a concluir, na senda desse Ac. de 3-5-2000 -, nenhuma deficiência ou anomalia lhe pode ser assacada, nada obstando, pois, à sua plena validade e operância em vista da boa decisão da causa.

10. Demais, sustenta a Recorrente que a resposta ao quesito 6° deveria ser negativa– não provado -, pois a garantia patrimonial do Recorrido no momento da transmissão em causa era nula (inexistente), na medida em que sobre o prédio estavam registadas penhoras e uma hipoteca legal, respectivamente a favor da Fazenda Nacional e da Segurança Social, para assegurar o montante máximo de 69.527.810$00. Assim, e por isso que o preço pelo qual o dito prédio foi vendido se cifrou em 20.000.000$00, ao crédito do dito Recorrido, sem qualquer registo eficaz, nenhuma garantia efectiva assistia, pelo que também nenhuma redução nessa garantia tal transmissão –ao invés do que resulta dessa resposta ao quesito 6º-, lhe poderia ter causado.
Com ressalva do muito respeito, pensamos que não tem, uma vez mais, razão.

Antes de mais, importa dizer que a questão sobre se da venda do prédio resultou ou não efectivo prejuízo para o A./Recorrido, se bem cuidamos, nunca foi, em bom rigor, suscitada e (ou) apreciada nos autos antes da vertente impugnação.
Daí que agora estivesse desde já votada ao insucesso, por isso que, como se sabe, é jurisprudência uniforme, entre nós, a que se consubstancia no entendimento de que, em conformidade com os ditames que regem o processamento dos recursos, “ maxime” os corporizados nas disposições dos arts. 676º, nº 1, 680º, nº 1 e 690º, todos do C. P. Civil, os mesmos são meios de obter a reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não vias jurisdicionais para alcançar decisões novas – cfr., a título meramente exemplificativo, Acs. do STJ de 13- 1- 70, Bol. 193º-345, 6- 2- 87, Bol. 364º-714, 6- 1- 88, Bol. 373º-462, e de 18- 1- 94, Bol. 431º-588.

Sem embargo, sempre diremos que outras razões existem a, vitoriosamente, contraditar a tese da Recorrente –relembre-se, não assistir qualquer garantia patrimonial ao crédito do A em confronto com os demais inscritos sobre o prédio-, que, de tal sorte, não pode ser subscrita.
Desde logo, ignora-se por completo quais as precisas condições – quantitativos, posicionamento relativo, etc,- em que, no caso de venda judicial do prédio, esses créditos em concurso iriam ser verificados e graduados, assim como se ignora qual o quantitativo pecuniário que com essa venda se apuraria e, portanto, a expressão (proporção) com que o crédito do A./Recorrido participaria ou não na sequente liquidação.
Por outro lado -e decisivamente-, sucede que o crédito do A., sendo de índole laboral, tem na sua génese, na íntegra, salários e indemnização inscritos no âmbito previsivo da Lei nº 17/86, de 14 de Junho (Lei dos Salários em Atraso).
Ora, nos termos do art.º 14º, nº 1, de tal Lei, os créditos emergentes de contrato individual de trabalho por ela regulados gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral.
E quanto a este último –preceitua o nº 3, al. b), desse art.º 14º-, a sua graduação far-se-à antes dos créditos referidos no art.º 748º do Código Civil (créditos do Estado e das autarquias) e ainda de contribuições devidas à Segurança Social.
De conformidade com o nº 4, outrossim, este regime de preferência é aplicável ao crédito de juros de mora.
Ainda por outro lado, em caso de processo de falência –que seria porventura o desfecho mais previsível, considerada a precaríssima situação económico-financeira evidenciada pela alienante, Ré “Crina”-, com a sentença a declará-la, entraria “ipso facto” em funcionamento o disposto no art.º 152º do C.P.E. R.E.F., com a consequência de “...se extinguirem de imediato, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social...”.
Nestes termos, e sendo verdade que os privilégios creditórios são actuantes independentemente de registo (art.º 733º do CC), forçoso se torna, pois, concluir não ser legítimo pretender que sobre o prédio dos autos não era viável qualquer expectativa do A., objectivada à satisfação do seu crédito, pelo que de excluir seria qualquer eventual prejuízo –prático, efectivo-, com a sua operada transmissão para a esfera jurídica da ora Recorrente.
Como avançámos, também a objecção em presença é, por conseguinte, improcedente.

11. Pretende ainda a Recorrente que as respostas a esses mesmos quesitos 5º e 6º deviam ter sido negativas porquanto a única intenção da Ré “Crina, Ldª “, ao vender o imóvel, foi fazer uma óptima gestão dos seus recursos –pagando cerca de 7.000.000$00 deixar de pagar cerca de 70.000.000$00-, como faria qualquer gestor médio.
Salvo sempre o muito respeito, não concordamos, uma vez mais, com a Recorrente.

Nas respostas aos quesitos em apreço, não se assevera que por parte dos outorgantes na escritura -e entre eles, portanto, o sócio-gerente da Ré “Crina, Ldª”, Francisco António dos Santos-, houve a intenção de prejudicar quenquer que seja, nomeadamente o A. e aqui Recorrido.
O que se refere é que –supra, factos 30) e 31)-, é que aquele outorgante, bem como Aníbal Pires de Almeida tinham perfeita consciência –e não intenção, propósito-, de que actuavam em prejuízo do A., reduzindo a nada, com o acto, a sua garantia patrimonial.
Ora, aquela proclamada boa gestão, em nada obvia, se bem pensamos, a essa consciência ou noção de causar dano ao interesse ou expectativa patrimonial do Autor.

Aliás, diga-se ainda, é sabido que o requisito da má fé (consilium fraudis), para efeitos de impugnação pauliana, não exige uma actuação dolosa, com intenção ou desígnio de prejudicar o credor –concertação do devedor e do adquirente para atentar contra o direito daquele-, se bem que se não baste também com o simples conhecimento da precária situação patrimonial do devedor.
Necessário –mas também suficiente-, é que o devedor e o adquirente tenham a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (art.º 612º, nº 3, do CC), estado psicológico esse que, conforme o sustentado naqueles indicados acórdãos do STJ de 15-2- e de 3-5-2000, bem como acórdão do mesmo Alto Tribunal de 11-1-2000, in Bol. 493º-351–e certeiramente reafirmado na douta sentença sob recurso-, se basta com a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso em consequência da conduta, que o mesmo é dizer, negligência consciente –cfr., também, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Dir. das Obrigações, Vol. II, Almedina, pág. 299.

Ora, esta representação da possibilidade ou certeza do prejuízo é, como ressalta à evidência, perfeitamente independente do intuito ou finalidade subjacente à realização do negócio, pelo que, qualquer que tenha sido esse escopo, o certo é que, provando-se, como se provou, essa representação –o conhecimento de que a operação era nociva para a salvaguarda do direito de crédito do A.-, outros não podiam ter sido os pronunciamentos, se não os conferidos, aos quesitos em presença.

12. Defende ainda a Recorrente que as respostas a esses quesitos 5º e 6º deviam ter sido negativas, considerando ainda o seu lado, a sua intervenção na transacção, pois que, estando ela obrigada pelo contrato promessa de compra e venda a outorgar a escritura, poderia ser responsabilizada pelos prejuízos que daí adviessem, eventualmente o pagamento de indemnização à Ré “Crina Ldª” da quantia de 70.000.000$00.

De novo, se bem cuidamos, e sempre ressalvando melhor opinião, parece-nos que não tem razão.

Como dissemos, nesses quesitos o que se dá por demonstrado é que os intervenientes na escritura estavam perfeitamente cientes de que actuavam em prejuízo do A., por isso que com essa estipulação suprimiam por completo a sua (do A.) garantia patrimonial.
Ora, o alegado pela Recorrente, como decorre do exposto no âmbito da anterior questão, não é de forma nenhuma incompaginável como essa noção ou consciência de lesividade do acto; bem ao invés, ambos esses factos podem perfeitamente ocorrer em simultâneo, sem que um implicite a inexistência do outro.
Assim, e por isso que comprovada tal consciência –a douta motivação fáctica atesta-o de forma terminante-, inelutáveis as respostas afirmativas dadas a esses apontados quesitos.

13. A Recorrente adversa, uma última vez, as respostas a esses dois quesitos, dizendo que a respectiva fundamentação, quanto ao gerente da Ré “Crina Ldª “, Francisco Santos, não pode proceder, por isso que –dizendo-se nessa fundamentação que “a resposta a esses quesitos é evidente”-, tal significa que não se encontram especificados os motivos que foram decisivos para a convicção do julgador.
Como assim –conclui- tais respostas são nulas.
Pensamos, salvaguardando sempre o muito respeito, que não lhe cabe, novamente, razão.

Antes de mais, pondere-se que, frente ao disposto no art.º 712º, nº 5, do CPC, a consequência resultante da indevida fundamentação da decisão fáctica, traduz-se, não em qualquer nulidade ou invalidade, mas apenas no retorno dos autos à alçada do magistrado dela emissor, a fim de que este –se possível- supra tal deficiência –Lebre de Freitas, Cód. Proc. Civil Anot., C. Ed., Vol. II, pág. 628, e III, pág. 98, bem como Ac. STJ de 29-9-98, in Bol., 479º-509.
Ponto é, porém, que esse retorno e inerente suprimento sejam requeridos pela parte em tal interessada, não estando nos poderes da Relação “ex officio” determiná-los.
No caso ajuizado, a Recorrente silenciou esse indispensável requerimento, tendo-se apenas limitado a formular o sobredito reparo.
Essa falta de fundamentação –a ser existente-, nenhuma consequência implicaria pois, designadamente a nulidade reclamada pela mesma.

Mas, se bem julgamos, nem se verifica.
Como se sabe, nem toda a prova se logra obter de forma directa, havendo situações em que, provado determinado facto, ao Juiz é possível presumir ou inferir outros por recurso às regras da ciência, do raciocínio e da experiência (presunções judiciais, naturais ou de facto).
Pensamos que é neste quadro que se tem de considerar a alusão motivatória do Mm.º Juiz “a quo”, quando apela à “evidência”, em ordem a alicerçar a sua convicção probatória, no âmbito desses quesitos 5º e 6º, quanto a Francisco António dos Santos, sócio-gerente da Ré “Crina, Ldª..
E bem se compreende que assim seja, tendo em conta os factos que mereceram adesão de prova, notadamente os acima elencados em 4) a 11), 14), e 26) e 27).
Resultando deste acervo factológico que esse sócio-gerente sabia de pleno da dívida de que era titular activo o A./Recorrente em relação à dita Firma, e que para o reembolso de tal débito este último havia feito penhorar o comprovadamente único imóvel pertencente à mesma, para a transmissão do qual –e com esse exclusivo objectivo- se havia, ainda para mais, constituído a Ré “Sabre, Ldª”, sabendo-se isso tudo-dizíamos-, forçoso se torna concluir –obviamente, apodicticamente, evidentemente-, que tal sócio se achava em perfeita consciência de que, ao outorgar a alienação do prédio, agia em detrimento ou prejuízo do A./Credor, sonegando à sua alçada o único bem proficuamente exequível.

A vertente objecção e, pois, também improcedente e, na falta de outras no tocante à decisão fáctica, decide-se, sem mais, manter intocada a matéria de tal índole que, vertida na sentença, acima se inventariou.

14. Prosseguindo na sua senda crítica, a Recorrente defende que questão essencial é saber qual o momento em que se deve aferir da má-fé dos intervenientes: se no momento em que se celebrou o contrato-promessa de compra e venda, em cuja outorga, por parte da promitente compradora, foi efectuada por pessoas totalmente distintas das que outorgaram a escritura pública de compra e venda tituladora desse contrato; se no momento em que houve a cessão da totalidade do capital social para os novos sócios e gerentes – 30.12.98 – e que vieram a outorgar a escritura pública de compra e venda; ou se no momento em que se outorgou esta última compra e venda.
O “animus contrahendi” na celebração do contrato de compra e venda –acrescenta- aconteceu exactamente com a celebração do contrato-promessa de compra e venda ou, quando assim se não entenda, e no que aos outorgantes de banda da Ré Sabre, Ldª “ concerne, no dia em que adquiriram esse falado capital social e assumiram a gerência da Firma.
De novo, e sempre com a devida vénia, cremos não lhe assistir razão.

É que, tanto o contrato-promessa de compra venda, como aqueloutro contrato de cessão do capital social, não envolveram, por si sós, o desaparecimento total ou parcial da garantia patrimonial do do Autor.
Designadamente quanto ao contrato-promessa –e fazendo nossas as palavras do Ac. da R.E. de 27-6-96, in Col., III, pág. 282 -, é certo que “tendo gerado apenas a obrigação de celebrar o contrato definitivo, este sim com o efeito de transmissão da propriedade do imóvel, não constituiu acto diminuidor da garantia patrimonial do crédito do A. e não é passível de impugnação pauliana. A compra e venda é que diminuiu essa garantia.” (sublinhámos).
O apontado requisito da má fé –e o mesmo haverá que dizer quanto aos demais exigidos para a pauliana pelo art.º 610º do CC-, têm, pois, de se aquilatar –na linha do que se expende no predito Ac. do STJ de 11-1-2000-, tendo por referência o momento da celebração do acto impugnado, seja, aquele mediante o qual se efectivou a alienação do bem ou a transmissão do direito, determinantes da impossibilidade de o credor obter a execução judicial do crédito.
O que, no caso em exame, significa o contrato definitivo de compra e venda, reportado no facto 22.

15. Retomando, em parte substancial, anterior alegação (supra, item 12), sustenta a Recorrente que se não outorgasse a escritura pública de compra e venda poderia ser responsabilizada pelos prejuízos que causasse à promitente vendedora, incluindo o pagamento da quantia de cerca de 70.000.000$00.
Ou seja –adianta-, a sua intenção ao levar a efeito tal outorga foi cumprir uma obrigação anteriormente assumida, nanja prejudicar o A./Recorrido.

Como deflui do antes exposto (supra, item 11), esta objecção da Recorrente, salvo sempre o muito respeito, não logra qualquer efeito.

Consoante o exposto naquele segmento, para fins de integração desse apontado requisito da má-fé, feito mister para a procedência da pauliana, estando em causa –como “in casu” ocorre-, um acto de alienação de índole onerosa (art.º 612º, nº 1), irrelevante se apresenta o intuito ou propósito com que o devedor e o terceiro efectuaram a operação, já que, podendo “agir com outra intenção (diversa de prejudicar o credor), em busca dum outro objectivo, (ainda assim) com perfeita consciência do prejuízo que vão causar” – A. Varela, in Das Obrigações em geral, 7 ª ed., Almedina, pág. 452.
No mesmo sentido -e quiçá de forma mais impressiva-, escreve-se no Cód. Civil Anot., da autoria do mesmo insigne Mestre e do Prof. P. Lima, I Vol., 4ª ed., C. Editora, pág. 629: “Não se exige a intenção de prejudicar o credor: normalmente, mesmo, há a intenção, ou pode haver a intenção, de realizar um acto vantajoso, ou a intenção de satisfazer uma necessidade do devedor, sem o intuito de causar um dano.”
Assim sendo, qualquer que tivesse sido a intenção por parte da Recorrente, verificando-se a sua consciência do prejuízo que causava ao credor -fazendo sair do património da Ré “Crina, Ldª “ o único bem susceptível de assegurar a cobrança do seu crédito-, preenchido ficou esse requisito do consilium fraudis”, inapelavelmente indutor da sujeição do negócio ao meio tutelar em consideração.
É que –como ensina Luís Menezes Leitão, in ob. cit., pág. 306-, “a má fé simultânea do devedor e do terceiro, consistente na consciência do prejuízo causado ao credor ... leva a que essa aquisição não se possa considerar fundada numa causa legítima ..., pois implicou um desvio de bens de uma função que legalmente lhe é atribuída: a de servirem de garantia patrimonial dos créditos. Não sendo lícita a celebração desse negócio, a aquisição não tem causa justificativa...” (sublinhámos).
Em nota de rodapé –refira-se ainda-, o mesmo Mestre cita em abono desta sua posição dois autores estrangeiros, defendendo um que a “ a má fé do terceiro, no âmbito da impugnação pauliana, implica a supressão da causa jurídica, mesmo em caso de aquisição onerosa” e outro que “o consilium fraudis gera a ilicitude da causa, falando a este propósito em ‘causa com motivação ilícita’. “ (sublinhados nossos).
Como assim, não pode a Recorrente invocar o cumprimento (legítimo) de obrigação anteriormente assumida, pois, ainda assim, verificando-se a consciência do dano, sempre o acto enferma de irregularidade, ilegalidade, por virtude do seu reflexo danoso em relação ao credor.
Reflexo que, ainda para mais, os autos nos dão iniludível conta de que a ora Recorrente, desde a primeira hora, não porfiou em evitar, ao revés do que aconteceu com aquelas credoras da Ré “Crina, Ldª“, Fazenda Nacional e Segurança Social, em relação às quais -e conforme o por si alegado na sua douta contestação (“maxime” art.º 22º)-, ela “ ...desde logo, fez chegar ás mãos da promitente vendedora parte do preço convencionado para aquisição do imóvel de modo a que a Crina, pudesse efectuar o pagamento das quantias exequendas nas execuções fiscais e, ainda, da hipoteca legal que se encontrava em vigor através da inscrição C-1 “
Como bem observa o Mm.º Juiz na sua motivação fáctica, os autos “demonstram que ele (Aníbal Pires de Almeida, sócio-gerente da Recorrente) esteve a acompanhar o assunto de perto. E qualquer pessoa, nestas circunstâncias, não se bastaria com a palavra do “vendedor” de que tinha pago a dívida, ou que o assunto estava resolvido, assim, sem mais.”

Nestes termos, e como avançámos, é a objecção em presença também improcedente.

16. Por fim, a Recorrente aduz ainda que a eventual má-fé de um gerente não contamina a boa-fé de um outro gerente, sempre que a sociedade apenas se vincule –a exemplo dela, Recorrente [facto 21)]-, com a intervenção de dois gerentes.
Assim –remata-, para que houvesse má-fé da Recorrente seria necessário estar provado, diversamente do que aconteceu, que todos os gerentes outorgantes da escritura pública estavam de má-fé.
Uma vez mais, e sempre com o maior respeito, esta posição não merece o nosso aplauso.

Como insistentemente já se referiu, o requisito da má fé, para os efeitos em presença, traduz-se apenas e só na consciência ou noção do prejuízo que o acto causa ao credor.
Dos factos provados [nºs 30) e 31)] dimana que cada um dos dois sócios gerentes das outorgantes, “Crina, Ldª“ e “Sabre, Ldª”, ao firmarem o instrumento notarial pelo qual aquela vendia a esta as suas instalações, estavam, realmente, imbuídos dessa consciência ou conhecimento.
Ora, e tal como bem sustenta o Mm.º Juiz –apelando à lição do Prof. Raúl Ventura, in Sociedades por Quotas, Vol. III, Almedina, pág. 195 (no mesmo pendor veja-se, ainda, Alexandre Soveral Martins, in Os Poderes de Representação Dos Administradores de Sociedades Anónimas, Bol. Fac. Dir. Univ. Coimbra, C. Editora, 1998, pág. 32, n. 51) -“conhecimento por um dos gerentes reputa-se conhecimento pela sociedade.”
E isso –ao invés do pretendido pela Recorrente-, independentemente da previsão do pacto social, ainda que no sentido da intervenção de dois (ou mais) gerentes em ordem à válida vinculação da sociedade.
Com efeito, nos termos do nº 3, do art.º 261º, do Cód. das Soc. Comerciais -preceito subordinado à epígrafe “Funcionamento da Gerência Plural”-, as notificações ou declarações de terceiros à sociedade podem ser dirigidas a qualquer dos gerentes - determinando-se a finalizar: “...sendo nula toda a disposição em contrário do contrato de sociedade.”
Como incisivamente elucida Raúl Ventura (ob. e loc. cit.) “A obrigatoriedade do método disjunto na representação passiva constitui antes de mais uma protecção dos terceiros, cujas declarações atingem a sociedade logo que cheguem a um dos gerentes e é essa protecção que justifica a diferença entre os métodos legais de representação activa e de representação passiva. Na primeira, prevalece um interesse da sociedade, defendendo-a contra a vontade isolada de um dos gerentes e esperando que da conjugação das vontades de dois ou mais saia mais límpido o interesse da sociedade.. Quando, porém, o interesse é de terceiro, que pretende fazer chegar à sociedade o conhecimento de um facto ou a declaração da sua vontade, não podem ser invocados interesses da sociedade.“(sublinhados nossos).

Destarte, também a vertente objecção naufraga e, assim, e considerando tudo o demais explanado, o douto recurso na sua totalidade.

IV – DECISÃO
Frente ao exposto, e sem mais considerações, julgando-se a douta apelação improcedente, confirma-se, na íntegra, a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Coimbra,