Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
385/04.0TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: FALSIFICAÇÃO E BURLA
CONCURSO REAL
Data do Acordão: 06/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 256 Nº 1, ALÍNEA A), E DO ARTIGO 217 Nº 1 CP
Sumário: 1. Nos crimes, de falsificação de documento e de burla há concurso real entre os mesmos, ou se verifica consumpção.
2. Mantém-se e tem plena actualidade o Ac. do STJ nº 8/2000 de 04-05-2000 (publicado no DR II Série, de 23.05.2000), que fixou jurisprudência no sentido de que: "No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art. 256 nº 1, alínea a), e do artigo 217 nº 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes";
Decisão Texto Integral: =DECISÃO SUMÁRIA=
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Processo nº 385/04.0TACBR.C1 da 2ª Secção, Varas de Competência Mista, Tribunal da Comarca de Coimbra.
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Efectuado exame preliminar dos autos afigura-se-nos que o recurso é manifestamente improcedente –art. 420 nº 1 al. a), pelo que é de rejeitar, art. 420 nº 1 al. b), do CPP.
Assim, que se profere decisão sumária nos termos do art. 417 nº 6 al. b) do mesmo diploma.
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Decide-se no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferido acórdão que julgou procedente a acusação deduzida pelo Magistrado do Mº Pº contra o arguido:
F..., casado, empresário, residente em Coimbra.
Sendo decidido:
1 - Condenar o arguido:
a)- como autor material de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 205, n.º 1 e 4, aI. a ) e 30, n.º 2, do Código Penal na pena de dois anos e seis meses de prisão;
b)- como autor material de um crime de burla qualificada, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 217, n.º 1, 218, n.º 1 e 30, n.º 2, do Código Penal na pena de dezoito meses de prisão;
c)- como autor material, na forma continuada, de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256, n.º 1, aI. a ) e n.º 3 e 30, n.º 2, do Código Penal, na pena de quinze meses de prisão.
d)- Em cúmulo jurídico, na pena única de três anos e seis meses de prisão.
2 - Suspender a execução da pena pelo período de três anos e seis meses, com a seguinte condição:
O arguido pagará durante o período da suspensão a indemnização abaixo definida, na parte relativa ao capital.
O arguido deve mostrar neste processo, dois em dois meses os pagamentos que já fez e justificar porque razão não pagou mais, sob pena de lhe poder ser revogada a suspensão da execução da pena.
Se a lesada executar e receber a dívida considerar-se-á satisfeita a condição.
3 - Julgar procedente o pedido cível e condenar o arguido a pagar à empresa P…, Ld.ª, a quantia de €18 278,63 ( dezoito mil, duzentos e setenta e oito euros e sessenta e três cêntimos) a que acrescem juros legais de mora desde a notificação do pedido cível formulado nestes autos.
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Inconformado interpôs recurso o arguido.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do seu recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:
1- Face ao sucintamente exposto e sendo indesejável uma incerteza designadamente em normas de conteúdo criminal, haveria o tribunal "a quo" que aplicar ao recorrente o sentido interpretativo mais favorável ao arguido e nesse sentido, puni-lo apenas pelo crime de falsificação.
Foi apresentada resposta, pelo magistrado do Mº Pº que conclui:
1. O recorrente contesta o facto de ter sido condenado pela prática de um crime de burla qualificada e um crime de falsificação de documentos, ambos na forma continuada, entendendo que deveria ser condenado unicamente pela comissão do crime de falsificação;
2. Contestando, assim, indirectamente, o teor do Assento 8/2000, proferido pelo STJ em 4/5/2000, e ao qual os tribunais estão vinculados, não lhes sendo lícito recusar a aplicação;
3. Consequentemente, bem andou o tribunal “a quo", ao fazer tal aplicação, razão pela qual a decisão recorrida não merece qualquer censura;
4. Pelo que o presente recurso deverá ser julgado improcedente.
Respondeu a ofendida demandante, concluindo:
1- Os factos dados como provados, são elementos objectivos para os tipos criminais inerentes à acusação.
2- Os factos em causa são inerentes aos tipos vertidos, nos factos dados como provados:
a. Um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelo art. 205 nº I e nº 4, al. a) do C. Penal.
b. Um crime de burla, na forma continuada, p. e p. pelo art. 218, nº I e 2 do C. Penal.
c. Um crime de falsificação, na forma continuada, p. e p. pelo art. 256, n° 1, al. a) e nº 3 do C. Penal.
3- Não existe qualquer situação de consumpção, não tendo o demandante nada a dizer ao vertido pelo douto acórdão.
4- Não foram violadas quaisquer disposições legais pelo douto Acórdão.
Deve ser recusado o presente recurso, mantendo-se o douto acórdão.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, em parecer emitido, sustenta a manifesta improcedência e consequente rejeição do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.

Foi apresentada resposta na qual se mantêm os fundamentos do recurso.

Cumpre decidir.

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Conhecendo:
Em causa no presente recurso apenas questão de direito, saber se nos crimes, de falsificação de documento e de burla há concurso real entre os mesmos, ou se verifica consumpção.
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Contrariamente ao alegado na motivação do recurso e na resposta ao abrigo do art. 417 nº 2 do CPP, a Jurisprudência entende manter-se e ter plena actualidade o Ac. do STJ nº 8/2000 de 04-05-2000 (publicado no DR II Série, de 23.05.2000), que fixou jurisprudência no sentido de que: "No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art. 256 nº 1, alínea a), e do artigo 217 nº 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes";
Do Ac. do STJ de 29-04-2004 referido no art. 2º da resposta referida, da recorrente, não se colhe que a jurisprudência fixada pode estar ultrapassada, antes pelo contrário (é o nosso entendimento do teor de tal acórdão).
Nem podia julgar a jurisprudência do Acórdão nº 8/2000 ultrapassada pois que a mesma foi aí aplicada.
Nesse Ac. se manda aplicar a doutrina do “assento”.
Transcrevemos a parte do sumário desse acórdão, onde se demonstra o nosso entendimento: “1- A lei indica, com suficiente clareza, que os Acórdãos para fixação de jurisprudência têm um peso próprio, que lhes é dado pelo facto de provirem do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Há, pois, que lhes conceder o benefício, para não dizer a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto.
2- Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não "faz lei", parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Plenário do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada.
3- Tendo o tribunal recorrido usado de argumento que não é novo, pois já foi largamente ponderado pelo Supremo Tribunal de Justiça em dois Acórdãos uniformizadores com a mesma orientação, o último dos quais é demasiado recente para ser necessária qualquer reformulação, há que conformar a qualificação jurídica dos factos provados com a jurisprudência uniformizadora deste STJ”.
E, mais recente, e relatado pelo mesmo Exmº Juiz Conselheiro Dr. Santos Carvalho, a doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência é reafirmada,
Do Ac. de 18-10-2007, processo 07P3185, se extrai:
“FALSIFICAÇÃO E BURLA: CONCURSO APARENTE?
De acordo com o Ac. do STJ n.º 8/2000, de 04.05.2000, publicado DR 119 SÉRIE I-A, de 2000-05-23, a jurisprudência fixou-se assim:« o caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.°, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.°, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n." 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.»
Os Acórdãos do STJ para fixação de jurisprudência não são obrigatórios para os tribunais judiciais, mas a divergência tem de ser fundamentada (art.º 445.°, n.º 3, do CPP).
Por outro lado, o STJ pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada (art.° 446.°, n.º 3).
Ora, tratando-se de jurisprudência relativamente recente, não tendo havido entretanto mudança da lei penal neste aspecto e não avançando o recorrente com argumentos que não tivessem já sido ponderados exaustivamente naquele Acórdão, reafirma-se aqui a jurisprudência fixada.
Assim, o arguido cometeu em concurso real de infracções os crimes de burla e os de falsificação de documento por que foi condenado”.
A motivação e conclusão do recurso (fundamentos) não são de molde a pôr em causa a doutrina do Acórdão Uniformizador, nem demonstram a necessidade do reexame do mesmo por estar ultrapassado.
Assim, sendo distintos os bens jurídicos tutelados por um e outro daqueles crimes, há lugar a concurso real efectivo.
O crime de burla tutela o bem jurídico património e a falsificação de documento tutela bem jurídico diferente, a fé pública dos documentos (a verdade intrínseca do documento enquanto tal –cf. Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade), indispensável à normalidade das relações sociais –neste sentido já se entendia nos Acs. Do STJ de 14-02-1990 in BMJ 394-240 e de 18-12-1990 in BMJ 402-656.
Assim, fica demonstrada a sem razão do recorrente, sendo manifesta a improcedência do recurso, devendo o mesmo ser rejeitado.
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Decisão:
Face ao exposto decide-se em rejeitar o recurso trazido pelo recorrente F..., por ser manifesta a sua improcedência.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 6 Ucs, na qual se inclui a prevista no art. 420 nº 3 do CPP e tendo em conta o beneficio de apoio judiciário.
Coimbra, 02 de Junho de 2009